terça-feira, 3 de janeiro de 2023

A Montanha Mágica - Da casa dos Tienappel e do estado moral de Hans Castorp

Thomas Mann


A Montanha Mágica 


Capítulo II


Da casa dos Tienappel e do estado moral de Hans Castorp


Não lhe redundou isso em desvantagem, pois o menino passou a morar na casa do cônsul Tienappel, seu tutor nomeado pelo tribunal. Nada lhe faltava ali, nem com respeito à sua pessoa, nem tampouco no referente à defesa dos seus interesses, dos quais ele ainda nada sabia. O cônsul Tienappel, tio da saudosa mãe de Hans, administrava os bens deixados pelos Castorps. Pôs à venda os imóveis, e também se encarregou de liquidar a firma Castorp & Filho, Importação e Exportação. O que conseguiu salvar eram uns quatrocentos mil marcos, que constituíam a herança de Hans Castorp. O cônsul Tienappel colocou-os em valores seguros, cobrando, não obstante os sentimentos de parente, trimestralmente, dois por cento de comissão legal sobre os juros vencidos.
A casa dos Tienappel, situada no fundo de um jardim, à Avenida de Harvestehude, dava para um gramado, no qual não se tolerava a mais mínima erva daninha. Atrás havia um roseiral público e o rio. Apesar de possuir uma bela carruagem, o cônsul caminhava todos os dias ao escritório, na cidade velha, a fim de fazer um pouco de exercício, pois às vezes sofria de ligeiras congestões cerebrais. Às cinco da tarde regressava da mesma maneira, e a seguir comia-se na casa dos Tienappel com todo o refinamento de gente culta. Era um homem cheio de corpo, que se vestia com os melhores tecidos ingleses. Tinha os olhos um tanto saltados, de um azul aquoso, que escondia atrás de óculos com aros de ouro; o nariz, de ordinário, estava coberto de espinhas. O cônsul usava barba grisalha de marinheiro e um diamante esplendoroso no curto mindinho da mão esquerda. Sua mulher já falecera havia muito tempo. Tinha dois filhos, Peter e James. O primeiro servia na marinha e passava apenas pouco tempo em casa do pai, ao passo que o outro trabalhava na firma paterna, uma casa de vinhos, sendo considerado como o futuro sucessor do chefe. A casa era dirigida desde muitos anos por Schalleen, filha de um ourives de Altona, que andava com alvos punhos engomados em volta dos pulsos roliços; cumpria a ela cuidar que na mesa de almoço e de jantar houvesse fartura de frios, camarões, salmão, enguia, peito de ganso, e tomato ketchup para o rosbife. Observava com olhos vigilantes os garçons contratados por ocasião dos banquetes, que o cônsul Tienappel dava aos seus amigos, e era ela que, na medida do possível, servia de mãe ao pequeno Hans Castorp.
Este se criou num clima abominável, entre vento e bruma. Ia crescendo, se assim se pode dizer, dentro de um impermeável amarelo. Contudo sentia-se perfeitamente bem. Desde cedo era um pouco anêmico, conforme verificou o Dr. Heidekind, que lhe prescreveu, para antes do almoço, após a aula, um volumoso copo de porter, bebida substancial, como se sabe, e considerada pelo doutor como altamente sanguificativa. Em todo caso, o porter tranquilizava apreciavelmente a vitalidade de Hans Castorp e aumentava nele de modo benéfico uma determinada tendência para a “basbaquice”, como dizia seu tio Tienappel, ou seja, aquela sua inclinação para sonhar, de boca aberta, sem pensar, e com o olhar cravado no espaço. De resto era sadio e normal, um tenista regular e um bom remador, se bem que preferisse ao manejo dos remos instalar-se numa noite de verão no terraço do clube náutico de Uhlenhorst, diante de um copo cheio, para apreciar a música e contemplar os barcos iluminados, por entre os quais os cisnes sulcavam o irisado espelho das águas. Bastava ouvi-lo falar, calma e ponderadamente, sem grande profundidade e com alguma monotonia, numa voz levemente influenciada pelo dialeto hamburguês; bastava até examinar-lhe de relance a correção loura, o perfil finamente recortado, de certo cunho antigo, e no qual uma arrogância hereditária e inconsciente se manifestava sob a forma de uma indolência um tanto árida, para verificar que, indubitavelmente, esse Hans Castorp era um produto puro e autêntico daquele solo e se enquadrava com absoluta perfeição no ambiente. Ele próprio, se se tivesse estudado sob esse aspecto, não teria experimentado a mínima dúvida quanto a isso.
A úmida atmosfera da grande cidade marítima, mescla de vida farta e mercantilismo de envergadura mundial, esse ar que enchera de prazer a vida dos seus antepassados, Hans Castorp respirava-o com profunda aprovação, saboreando-o como uma coisa natural. Com o olfato penetrado pelas emanações da água, da hulha e do alcatrão e pelos acres odores de montões de produtos coloniais, via como no cais do porto os enormes guindastes a vapor imitavam a calma, a inteligência e a gigantesca força de elefantes a serviço do homem, transportando toneladas de sacos, fardos, caixas, barris e tambores, do bojo de transatlânticos ancorados até os armazéns das docas ou os vagões da via férrea. Via os comerciantes, com impermeáveis amarelos, tal qual o
dele próprio, afluírem à Bolsa, por volta do meio-dia, onde, como ele sabia, se jogava alto, e facilmente acontecia que alguém se visse obrigado a distribuir convites apressados para um grande banquete, destinado a salvar-lhe o crédito. Via – e era este o campo em que mais tarde se concentraram os seus interesses – a multidão que fervilhava nos estaleiros; via os corpos de mamute, de vapores regressados da Ásia ou da África, do dique seco, altos como torres, com as quilhas e as hélices no ar, escorados em pontaletes grossos como árvores, monstruosos na sua paralisia, invadidos por exércitos de operários que pareciam pigmeus, ocupados em raspar, martelar e pintar; via nos picadeiros cobertos erguerem-se, envoltos numa cerração fumosa, os esqueletos de navios em construção, enquanto engenheiros, com os planos de construção e as tabelas de zonchadura na mão, davam ordens aos capatazes. Todas essas coisas eram familiares a Hans Castorp, desde a sua infância, e despertavam nele apenas a sensação confortável e habitual de fazer parte de tudo isso; impressão que culminava, quando, numa manhã de domingo, em companhia de James Tienappel ou de seu primo Ziemssen – Joachim Ziemssen – comia no Pavilhão do Alster pãezinhos quentes com carne defumada, regados por um copo de vinho velho do Porto, após o que se reclinava na poltrona, para aspirar com volúpia a fumaça de seu charuto. Pois era justamente neste ponto que Hans Castorp representava um produto genuíno da sua terra: gostava de viver bem, e apesar da sua aparência anêmica e refinada, agarrava-se com fervor e firmeza, qual um lactente deliciado pelos seios da mãe, aos prazeres físicos que a vida lhe oferecia.
Levava sobre os ombros, comodamente e com certa dignidade, a elevada civilização que a alta sociedade dessa democracia municipal de comerciantes transmite aos seus filhos. Ia lavadinho como um nenê e fazia-se vestir pelo alfaiate que gozava da confiança dos jovens da sua esfera social. O pequeno tesouro de roupa de dentro cuidadosamente marcada, que abrigavam as gavetas inglesas de seu armário, era lealmente administrado por Shalleen. Ainda quando Hans Castorp passou a estudar fora, continuava mandando regularmente a roupa branca para casa, a fim de que ali a lavassem e consertassem – afirmava ele que fora de Hamburgo ninguém sabia engomar. Um pedacinho puído no punho de uma das suas bonitas camisas de cor seria capaz de enchê-lo de violento mal-estar. Suas mãos, posto não fossem tipicamente aristocráticas, tinham a pele bem cuidada e macia, e eram adornadas pelo anel-sinete, herança do avô, e por outro anel de platina, em forma de corrente. Seus dentes, de consistência mole, haviam sofrido algumas avarias, reparadas por trabalhos de ouro.
Ao caminhar ou estar de pé, avançava um pouco o ventre, o que não dava propriamente uma impressão de energia marcial. Em compensação era impecável a sua postura à mesa. Voltava cortesmente o tronco muito teso para o vizinho com quem falava, pausadamente e com leve acento hamburguês. Os cotovelos achegavam-se ligeiramente do corpo, enquanto dissecava um pedaço de frango ou habilmente extraía, mediante o instrumento especial, a carne rosada de uma pinça de lavagante. Terminada a refeição, era sua primeira necessidade a tigelinha de água perfumada para lavar os dedos, e a segunda, o cigarro russo, sonegado ao imposto alfandegário, uma vez que Hans Castorp tinha uma fonte conveniente onde comprá-lo a contrabando. Ao cigarro seguia-se um charuto, de uma saborosa marca bremense, de nome Maria Mancini, do qual se falará mais adiante, e cujos tóxicos picantes se combinavam deliciosamente com os do café. Hans Castorp punha as suas provisões de fumo a salvo das influências prejudiciais da calefação a vapor, guardando-as no porão, aonde descia todas as manhãs, para abastecer a charuteira com a dose diária. Só com relutância teria comido manteiga que lhe servissem num bloco e não em forma de bolinhas estriadas.
Ao caminhar ou estar de pé, avançava um pouco o ventre, o que não dava propriamente uma impressão de energia marcial. Em compensação era impecável a sua postura à mesa. Voltava cortesmente o tronco muito teso para o vizinho com quem falava, pausadamente e com leve acento hamburguês. Os cotovelos achegavam-se ligeiramente do corpo, enquanto dissecava um pedaço de frango ou habilmente extraía, mediante o instrumento especial, a carne rosada de uma pinça de lavagante. Terminada a refeição, era sua primeira necessidade a tigelinha de água perfumada para lavar os dedos, e a segunda, o cigarro russo, sonegado ao imposto alfandegário, uma vez que Hans Castorp tinha uma fonte conveniente onde comprá-lo a contrabando. Ao cigarro seguia-se um charuto, de uma saborosa marca bremense, de nome Maria Mancini, do qual se falará mais adiante, e cujos tóxicos picantes se combinavam deliciosamente com os do café. Hans Castorp punha as suas provisões de fumo a salvo das influências prejudiciais da calefação a vapor, guardando-as no porão, aonde descia todas as manhãs, para abastecer a charuteira com a dose diária. Só com relutância teria comido manteiga que lhe servissem num bloco e não em forma de bolinhas estriadas.
O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos. Até mesmo uma pessoa inclinada a julgar absolutas e naturais as bases gerais e ultra-pessoais da sua existência, e que da ideia de criticá-las permaneça tão distante quanto o bom Hans Castorp – até uma pessoa assim pode facilmente sentir o seu bem-estar moral um tanto diminuído pelos defeitos inerentes a essas bases. O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe deem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultra-pessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo. Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heroico, ou então uma vitalidade muito robusta. Hans Castorp não possuía nem uma nem outra dessas qualidades, e portanto deve ser considerado medíocre, posto que num sentido inteiramente decoroso.
Tudo isso se refere à mentalidade do nosso jovem, não só durante a sua vida escolar, senão também durante os anos posteriores a ela, quando já escolhera a sua profissão civil. Quanto à sua carreira através do ginásio, cabe dizer que se viu obrigado a repetir um que outro ano. Mas, finalmente, a sua origem, a urbanidade de suas maneiras e também um belo talento, embora pouco apaixonado, pelas matemáticas, ajudaram-no a atravessar essas etapas. E concluído o curso ginasial, Hans Castorp decidiu cursar também o colégio por bem dizer, sobretudo a fim de prolongar uma situação habitual, provisória e indecisa e de ganhar tempo para refletir sobre o que desejava vir a ser; pois a princípio não o sabia com certeza, nem sequer no último ano do colégio chegou a formar uma opinião firme a esse respeito, e quando a coisa se decidiu -seria exagerado dizer que ele mesmo tomou essa decisão –, sentia o jovem muito bem que poderia ter escolhido, da mesma forma, um outro caminho.
Uma coisa, entretanto, era verdade: os navios sempre lhe haviam despertado grande interesse. Na meninice enchera as páginas das suas agendas com desenhos a lápis, de cúteres de pesca, chatas carregadas de legumes e veleiros de cinco mastros. Aos quinze anos, gozou do privilégio de assistir, de um lugar reservado, nos estaleiros de Blohm & Voss, ao lançamento de um novo paquete postal de duas hélices, o Hansa. Pintou então uma aquarela bem-feita e exata em todos os pormenores da esbelta nave. O cônsul Tienappel pendurou no seu escritório particular esse quadro, no qual o verde-garrafa transparente do mar revolto estava pintado com tanto amor e tamanha habilidade, que alguém disse ao cônsul Tienappel que nisso se revelava talento e que Hans Castorp poderia tornar-se um bom pintor de marinhas apreciação que o cônsul não se arrependeu de ter repetido ao pupilo, já que Hans Castorp a recebeu com uma boa risada, sem se preocupar um instante sequer com esse tipo de ideias excêntricas e perspectivas de vida boêmia.

– Você não tem muito dinheiro – dizia-lhe às vezes o tio Tienappel. – A parte principal de meus bens caberá um dia a James e Peter, quer dizer, fica na firma, e Peter vai receber os juros da sua quota. O que pertence a você está bem colocado e produz uma renda segura. Mas, hoje em dia, não tem graça viver de juros, a não ser que a gente possua cinco vezes mais que você. Para ser alguém nesta cidade e viver como você está acostumado, é preciso ganhar muito dinheiro. Tome nota disso, meu filho.

Hans Castorp tomou nota. Começou a procurar uma profissão que lhe permitisse sair-se airosamente perante si mesmo e aos olhos do mundo. E quando, finalmente, escolheu – obedecendo a uma sugestão do velho Wilms, da casa Tunder & Wilms, que numa noite de sábado, à mesa do uíste semanal, disse ao cônsul Tienappel: “Hans Castorp deveria estudar engenharia naval. É uma boa ideia. Então poderia entrar na minha firma, e eu cuidaria do rapaz” –, quando finalmente se decidiu, tinha a sua profissão em alto apreço e verificou que ela era complicada e trabalhosa como o diabo, mas também possuía seu aspecto nobre, importante e grandioso. Em todo caso achava-a infinitamente preferível, para o seu caráter pacífico, à do primo Ziemssen, filho duma meia-irmã de sua saudosa mãe, que queria a todo o transe tornar-se oficial. E todavia não tinha esse Joachim Ziemssen o peito muito sadio; podia ser que justamente por isso uma profissão exercida ao ar livre, e que não exigisse quase nenhuma atividade mental, fosse indicada para ele – assim pensava com leve desprezo Hans Castorp, que considerava o trabalho com o máximo respeito, ainda que a ele próprio o esforço fatigasse facilmente.
Nesse ponto insistimos sobre as reflexões que fizemos acima, sobre a questão de saber se um prejuízo que a época causa à vida individual do homem lhe pode diretamente influenciar o organismo físico. Hans Castorp respeitava o trabalho. Como poderia deixar de fazê-lo? Isto seria contrário à sua natureza. Tudo contribuía para que o trabalho se lhe apresentasse como digno do mais irrestrito respeito; no fundo não existia nada fora dele que merecesse tal respeito; o trabalho era o princípio em face do qual uma pessoa se saía bem ou malograva, era o que havia de absoluto na época, e trazia em si a sua justificativa. O respeito que Hans Castorp lhe devotava era portanto de caráter religioso e, conforme lhe parecia, indiscutível. Isso não quer, no entanto, dizer que ele amava o trabalho; disso não era capaz, por mais que o respeitasse, simplesmente pela razão de não se dar bem com ele. Um esforço intenso irritava-lhe os nervos e esgotava-o rapidamente. Com toda a franqueza Hans Castorp confessava que no seu íntimo gostava muito mais das horas de lazer, livres do lastro de chumbo das tarefas penosas, as horas que abertamente se estendiam diante dele, e não crivadas de obstáculos a serem vencidos a duras penas. Essa contradição na sua atitude perante o trabalho deveria, a bem dizer, ser resolvida. Talvez assim é que o seu corpo tanto como o seu espírito – em primeiro lugar o espírito e sob a sua influência também o corpo -se teriam dedicado ao trabalho com maior prazer e intensidade, se Hans Castorp, no âmago da sua alma, naquelas profundezas que ele mesmo ignorava, tivesse sido capaz de crer no trabalho como valor absoluto e princípio que se justificasse a si próprio, e de achar sossego nesse pensamento. Com isso chegaríamos mais uma vez à questão da sua mediocridade ou mais-do-que-mediocridade, à qual não tencionamos dar uma resposta precisa. Não nos consideramos, de forma alguma, encomiastas de Hans Castorp, e por isso não eliminamos a hipótese de que o trabalho, na sua vida, apenas estorvava um pouco o gozo perfeito do Maria Mancini.
Não foi convocado para o serviço militar. Aliás, no fundo do seu coração antipatizava com ele, e assim conseguiu evitar a convocação. Possivelmente, o médico militar, Dr. Eberding, que frequentava a vila na Avenida de Harvestehude, tivesse ouvido do cônsul Tienappel, assim de passagem, que o jovem Castorp considerava a obrigação de vestir a farda como uma interrupção sensível dos seus estudos, havia pouco encetados numa universidade do Reich.
Trabalhando com vagar e calma – até fora de Hamburgo, Hans Castorp conservava o hábito tranquilizador de tomar já de manhã uma dose de porter – o seu cérebro ia se enchendo de geometria analítica, cálculo diferencial, mecânica, projetiva e grafostática; calculava o deslocamento de navios carregados e vazios, a estabilidade, a equilibragem e o metacentro, ainda que isso às vezes lhe fosse custoso. Seus desenhos técnicos – esses contornos no meio do navio, traçados de linhas de flutuação, e seções longitudinais – não alcançavam o nível da sua representação pictórica do Hansa em alto-mar; mas, quando se tratava de explicar uma ideia abstrata por meio de uma apresentação mais acessível aos sentidos, intensificando as sombras com tinta nanquim ou colorindo os cortes transversais com tintas alegres que indicassem os materiais, então Hans Castorp superava em habilidade a maioria dos seus colegas.
Durante as férias, costumava regressar muito asseado, muito bem vestido, com um bigodinho ruivo no sonolento rosto de jovem patrício, e evidentemente a caminho de uma posição respeitável. E as pessoas que se ocupavam de questões municipais e também eram entendidas em assuntos de família e de vida social – como é o caso de quase todos, numa cidade livre e autônoma –, esses seus concidadãos, examinando-o criticamente, perguntavam-se que papel oficial o jovem Hans Castorp chegaria a desempenhar no futuro. Havia uma tradição a seu favor; seu nome era antigo e de boa reputação; e mais cedo ou mais tarde – isto parecia quase certo -seria preciso contar com a sua pessoa como fator Político. Então teria um lugar na Assembleia ou no Conselho Municipal e influiria na legislação; no exercício de um cargo honorífico, participaria das preocupações que acarreta a soberania; pertenceria a alguma repartição administrativa, à comissão de finanças talvez ou à de obras públicas, e sua voz não deixaria de ser ouvida e levada em conta. Até seria interessante saber a que partido se filiaria, mais tarde, esse jovem Castorp. As aparências podiam enganar, mas ele não tinha, propriamente, a cara duma pessoa com a qual os democratas podem contar. Era evidente a semelhança com o avô. Quem sabe se não puxaria a este, tornando-se um travão, um elemento conservador? Era muito possível, como também era possível o contrário. Afinal de contas, tratava-se de um engenheiro, futuro construtor de navios, de um homem da técnica e do tráfego universal. Assim se ventilava a outra alternativa de Hans Castorp unir-se aos radicais, chegando a ser um homem de ação, destrutor profano de edifícios antigos e belas paisagens, sem raízes no solo pátrio, qual um judeu, e sem laços de tradição, qual um ianque; talvez preferisse romper desconsideradamente com aquilo que uma veneranda história nos transmitiu, e arrastar o Estado por um caminho de audaciosas experiências, em vez de promover o desenvolvimento circunspecto das condições naturais de vida. Também isso era admissível. Estaria no seu sangue a convicção de que Suas Excelências, prudentes e sábias, às quais a dupla sentinela da Municipalidade apresentava armas, administravam tudo da melhor maneira possível, ou se inclinaria a apoiar a oposição na Assembleia? Naqueles olhos azuis sob as sobrancelhas ruivas não se podia ler nenhuma resposta a essas perguntas que a curiosidade dos seus concidadãos fazia, e parece provável que nem o próprio Hans Castorp, uma folha em branco, teria sabido satisfazê-la.
Quando empreendeu a viagem, durante a qual travamos conhecimento com ele, ainda não completara vinte e três anos. Tinha atrás de si quatro semestres de estudos na Escola Politécnica de Dantzig, e outros quatro nas escolas congêneres de Brunswick e de Karlsruhe. Recentemente passara nos exames teóricos, sem distinção nem grandes aplausos, mas com dignidade, e a essa época dispunha-se a trabalhar como engenheiro voluntário, na casa Tunder & Wilms, a fim de conseguir nos estaleiros a necessária formação prática. No entanto, ao chegar a esse ponto, o seu caminho tomou outro rumo
Para preparar-se para os exames, Hans Castorp tivera que estudar com intensidade e perseverança. Ao regressar para casa, parecia muito mais fatigado do que usualmente. O Dr. Heidekind ralhava com ele cada vez que o encontrava, e exigia uma mudança de ar, mas que fosse radical. Dessa vez, disse ele, não bastava Nordyrney, nem Werk, na ilha de Föhr. A seu ver, Hans Castorp deveria, antes de entrar nos estaleiros, passar algumas semanas nas altas montanhas.

– Muito bem – disse o cônsul Tienappel ao sobrinho-pupilo. Mas nesse caso, seria preciso veranearem em lugares diferentes, pois que nem quatro cavalos arrastariam a ele, cônsul, até às altas montanhas. Aquele ar da serra não lhe convinha; o que ele necessitava era uma pressão atmosférica razoável, para não sofrer algum ataque. Que Hans Castorp, por conseguinte, viajasse sozinho para as montanhas. Por que não visitar Joachim Ziemssen?

Era uma ideia natural. Joachim Ziemssen estava doente – não doente como Hans Castorp, mas de outro modo, realmente sério, que causara, mesmo, um grande susto a toda a família. Já antes sofria de catarros e acessos de febre, e um dia se pusera a escarrar sangue. Então partira a toda pressa para Davos, sumamente contrariado e abatido, já que acabava de atingir a meta dos seus desejos. Durante alguns semestres, a instâncias da família, estudara jurisprudência; mas, obedecendo a um impulso irresistível, mudara de profissão e se apresentara como aspirante a oficial. Já fora até admitido. E agora fazia cinco meses que se internara no Sanatório Internacional Berghof (médico diretor: Dr. Behrens, conselheiro áulico). Aborrecia-se mortalmente, conforme diziam seus cartões-postais. Se Hans Castorp, antes de assumir o seu cargo na casa Tunder & Wilms, quisesse fazer alguma coisa pela sua saúde, nada mais plausível do que ir a Davos, para visitar o coitado do primo, o que seria agradável para ambas as partes.
Era pleno verão quando Hans Castorp se decidiu a viajar. Já haviam chegado os últimos dias de julho.
Tencionava passar três semanas lá em cima.


continua pág 025...

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Leia também:

Da casa dos Tienappel e do estado moral de Hans Castorp 
Capítulo III
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.


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