Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
Lavar, passar, varrer, descobrir os flocos de poeira escondidos sob a noite dos armários, é recusar a vida, embora detendo a morte: pois num só movimento o tempo cria e destrói; a dona de casa só lhe apreende o aspecto negativo. Sua atitude é maniqueísta. A característica do maniqueísmo não é somente reconhecer dois princípios, um bom e outro mau: é afirmar que o bem se alcança pela abolição do mal e não através de um movimento positivo; nesse sentido, o cristianismo é muito pouco maniqueísta apesar da existência do diabo, porque é dedicando-se a Deus que melhor se combate o demônio e não se ocupando deste para vencê-lo. Toda doutrina da transcendência e da liberdade subordina a derrota do mal ao progresso para o bem. Mas a mulher não é chamada a edificar um mundo melhor; a casa, o quarto, a roupa suja, o assoalho são coisas imotas: a única coisa que ela pode é expulsar os princípios maus que nelas se introduzem; ela ataca a poeira, as manchas, a lama, a imundície; combate o pecado, luta contra Satã. Mas é um triste destino ter de rechaçar continuamente um inimigo, ao invés de se voltar para metas positivas; amiúde, a dona de casa suporta-o com ódio. Bachelard pronuncia a esse respeito a palavra "maldade"; encontramo-la igualmente nos psicanalistas. Para eles, a mania doméstica é uma forma de sadomasoquismo; é próprio das manias e dos vícios comprometer a liberdade a fazer o que não quer; porque detesta ter como quinhão a negatividade, a sujeira, o mal, a dona de casa maníaca obstina-se com fúria contra a poeira, reivindicando uma sorte que a revolta. Através dos resíduos que deixa atrás de si toda expansão viva, ela ataca a própria vida. Desde que um ser vivo entre em seu domínio, acende-se em seu olhar um brilho mau. "Limpe os pés; não desarrume tudo, não bula nisso." Ela gostaria que os que a cercam não respirassem: o menor sopro é ameaça. Qualquer acontecimento implica a ameaça de um trabalho ingrato: um tombo do filho é um rasgão por consertar. Ao ver na vida só promessa de decomposição, exigência de um esforço indefinido, ela perde toda a alegria de viver; fica com olhos duros, um rosto preocupado, sério, sempre de atalaia; defende-se pela prudência e pela avareza. Fecha as janelas porque, com o sol, entrariam também insetos, germes e poeiras; demais, o sol come as sedas dos cortinados; as poltronas antigas escondem-se sob capas, embalsamadas de naftalina: a luz as desbotaria. Ela não tem sequer prazer em exibir esses tesouros às visitas: a admiração mancha. Essa desconfiança vira azedume e suscita hostilidade em relação a tudo que vive. Falou-se muito dessas burguesas provincianas que enfiam luvas brancas para verificar se não sobrou nos móveis um invisível pó: foram mulheres dessa espécie que as irmãs Papin executaram há alguns anos; seu ódio da sujeira não se distinguia de seu ódio contra os criados, contra o mundo e contra si próprias.
É nesse nervosismo, nesse rancor que se comprazem as mulheres frias, ou frustradas, as solteironas, as esposas desiludidas, as que um marido autoritário condena a uma existência solitária e vazia. Conheci, entre outras, uma velha senhora que se levantava todas as manhãs às cinco horas para inspecionar os armários e recomeçar a pô-los em ordem; parece que aos vinte anos era alegre e coquete; encerrada numa propriedade isolada, com um marido que a negligenciava e um só filho, pôs-se a "botar em ordem" como outros põe-se a beber. Em Elise, das Chroniques maritales, de Jouhandeau, o pendor pelos trabalhos domésticos provém do desejo exasperado de reinar sobre um universo, de uma exuberância viva e de uma vontade de domínio que, sem objeto, gira em falso; é também um desafio lançado ao tempo, ao universo, à vida, aos homens, a tudo o que existe
Desde nove horas, depois do jantar, ela lava. É meia-noite. Eu cochilara, mas sua coragem, como se insultasse meu repouso dando-lhe um ar de preguiça, ofendia-me.
ELISE: Para fazer limpeza, não ter primeiramente medo de sujar as mãos.
E a casa dentro em breve estará tão limpa que ninguém ousará mais habitá-la. Há leitos de repouso, mas para que se repouse ao lado, no assoalho. As almofadas são limpas demais. A gente tem receio de as sujar ou amarrotar apoiando a cabeça ou os pés e cada vez que piso num tapete uma mão me acompanha, armada de uma máquina qualquer ou de um pano que apaga as minhas pegadas
A noite:
— Pronto. Acabou.
A casa permite enfim à mulher uma fuga indefinida para longe de si mesma. Chardonne diz com justeza:
Essa fuga, esse sadomasoquismo em que a mulher se obstina ao mesmo tempo contra os objetos e contra si, tem muitas vezes um caráter precisamente sexual. "A casa que exige a ginástica do corpo, é o bordel acessível à mulher", diz Violette Leduc (L'ajfamée). É impressionante verificar que o gosto da limpeza assume uma importância suprema na Holanda, onde as mulheres são frias e nas civilizações puritanas que opõem às alegrias da carne um ideal de ordem e de pureza. Se o Sul Mediterrâneo vive numa sujeira alegre, não é somente por haver aí falta de água, o amor da carne e de sua animalidade leva a tolerar o odor humano, a sujidade e até os piolhos.
O gás e a eletricidade acabaram com a magia do fogo; mas nas zonas rurais muitas mulheres conhecem ainda a alegria de tirar chamas vivas da lenha inerte. Aceso o fogo, eis a mulher transformada em feiticeira. Com um simples movimento da mão — quando bate os ovos ou manuseia a massa — ou pela magia do fogo, ela opera a transmutação das substâncias; a matéria torna- -se alimento. Colette, ainda, descreve o encanto dessas alquimias.
Tudo é mistério, magia, sortilégio, tudo o que acontece entre o momento de pôr no fogo a panela, o caldeirão e seu conteúdo e o momento cheio de doce ansiedade, de voluptuosa esperança em que se destampa à mesa o prato fumegante...
Ela pinta com complacência as metamorfoses que se operam no segredo das cinzas quentes.
As mulheres escritoras celebraram particularmente a poesia das geleias: é um vasto empreendimento casar nos tachos de cobre o açúcar sólido e puro à mole polpa dos frutos; escumante, viscosa, ardente, a substância que se elabora é perigosa: é uma lava em ebulição que a dona de casa doma e escorre orgulhosamente nos potes. Quando os reveste de papel pergaminho e neles inscreve a data de sua vitória, ela triunfa sobre o próprio tempo: pegou a duração na armadilha do açúcar, pôs a vida em bocais. A cozinha faz mais do que penetrar e revelar a intimidade das substâncias. Modela-as de novo, recria-as. No manuseio da massa ela experimenta seu poder. "A mão, tanto quanto o olhar, tem seus devaneios e sua poesia", diz Bachelard (La Terre et les Rêveries de la Volanté). E ele fala "dessa flexibilidade macia da plenitude, dessa agilidade macia que enche a mão. que se reflete sem cessar da matéria na mão e da mão na matéria". A mão da cozinheira que amassa é uma "mão feliz" e o cozimento dá ainda à massa um valor novo. "0 cozimento é assim um devir material, um devir que vai da palidez à douração, da pasta à crosta": a mulher pode encontrar uma satisfação particular no êxito do bolo, da massa folheada, porque esse êxito não é dado a todos: é preciso ter o dom. "Nada há mais complicado do que as artes da massa, escreve Michelet. Nada que se regule menos, que se aprenda menos. É preciso ter nascido para isso. Tudo é dom da mãe."
Nesse terreno também, compreende-se que a menina se divirta apaixonadamente com imitar os mais velhos: com barro e marinho, ela brinca de fabricar sucedâneos; é mais feliz ainda quando tem por brinquedo um forno de verdade ou quando sua mãe a aceita na cozinha e lhe permite manusear a massa do bolo ou cortar o caramelo escaldante. Mas verifica-se nisso o que se verifica nos cuidados da casa: a repetição logo esgota o prazer. Entre os índios que se alimentam essencialmente de tortas, as mulheres passam metade dos dias a amassar, cozer, esquentar, amassar novamente as tortas idênticas em todas as casas, idênticas através dos séculos: quase não são sensíveis à magia do forno. Não é possível transformar todos os dias a feira em uma caça ao tesouro nem se extasiar ante o brilho da torneira. São principalmente os homens e as mulheres que escrevem que exaltam liricamente esses triunfos, porque não cuidam da casa ou o fazem raramente. Quotidiano, esse trabalho torna-se monótono e maquinai; é crivado de esperas: é preciso esperar que a água ferva, que o assado esteja no ponto, a roupa seca; mesmo em se organizando as diferentes tarefas, sobram momentos longos de passividade e de vazio; elas realizam-se na maior parte do momento em meio ao tédio; não passam de um intermediário inessencial entre a vida do presente e a vida do amanhã. Se o indivíduo que as executa é ele próprio produtor, criador, integram-se em sua existência tão naturalmente como as funções orgânicas; eis por que as corveias quotidianas são muito menos tristes quando executadas por homens; só representam para eles um momento negativo e contingente de que se apressam a se evadir. Mas o que torna ingrata a sorte da mulher-serva é a divisão do trabalho que a destina totalmente ao geral e ao inessencial; o habitai, o alimento são úteis à vida mas não lhe dão um sentido: as metas imediatas da dona de casa não passam de meios, não são fins verdadeiros e neles só se refletem projetos anônimos. Compreende-se que, para ter a coragem de enfrentar o trabalho, ela tente nele empenhar sua singularidade e revestir os resultados de um valor absoluto; tem ela seus ritos, suas superstições, faz questão de sua maneira de arranjar os talheres, de arrumar a sala, de cerzir, de cozinhar um prato; persuade-se de que em seu lugar ninguém poderia fazer tão bem um assado ou uma limpeza; se o marido ou a filha querem ajudá-la, ela arranca-lhes da mão a agulha, a vassoura. "Não és capaz de pregar um botão." Dorothy Parker (Cf. Too bad!) descreveu com uma ironia apiedada o embaraço de uma jovem mulher convencida de que deve dar uma nota pessoal ao arranjo de seu lar, mas não sabe como o fazer.
Mrs. Ernest Welton errava pelo estúdio bem arranjado, dando-lhe alguns desses pequenos toques femininos. Não era especialmente hábil na arte de dar esses toques. A ideia era bonita e excitante. Antes de casar-se imaginara que passearia docemente através de sua nova residência, deslocando uma rosa, endireitando uma flor e transformando assim sua casa num home. Mesmo agora, depois de sete anos de casamento, gostava de se imaginar entregando-se a essa graciosa ocupação. Mas embora a tentasse conscienciosamente todas as noites, logo que se acendiam as lâmpadas dos abajures cor-de-rosa, ela indagava de si mesma com algum desamparo como fazer para realizar esses pequenos milagres que transfiguram integralmente um interior... Dar um toque feminino era o papel da esposa. E Mrs. Welton não era mulher de fugir às suas responsabilidades. Com um ar de incerteza quase lamentável, tateou em cima da lareira, ergueu um vasinho japonês e ficou em pé, com o vaso na mão, inspecionando o quarto com um olhar desesperado... Depois recuou e ponderou suas inovações. Era incrível quão poucas modificações operara no cômodo.
Nessa busca da originalidade ou de uma perfeição particular, a mulher esperdiça muito tempo e esforços; é o que dá a seu trabalho o caráter de uma "tarefa meticulosa e desordenada, sem freio nem limite" que Chardonne assinala e que torna tão difícil apreciar o que representam realmente as preocupações domésticas. De acordo com um inquérito recente (publicado pelo jornal Combat em 1947 com a assinatura de C. Hébert), as mulheres casadas consagram cerca de três horas e quarenta e cinco minutos ao trabalho doméstico (casa, abastecimento etc), nos dias úteis, e oito horas nos dias de descanso, ou seja trinta horas por semana, o que corresponde a 3/4 de tempo de trabalho hebdomadário de uma operária ou uma empregada; é enorme se a tarefa se acrescenta a um ofício; é pouco se a mulher não tem outra coisa a fazer (tanto mais quanto operária e empregada perdem tempo em deslocamentos que não encontram equivalência aqui). O cuidado dos filhos, se numerosos, aumenta consideravelmente as fadigas da mulher: uma mãe de família pobre gasta suas forças ao longo de dias desordenados. Ao contrário, as burguesas que se fazem ajudar são quase ociosas; e o preço desses lazeres é o tédio. Como se aborrecem, muitas complicam e multiplicam indefinidamente seus deveres de maneira que os tornam mais exaustivos do que um trabalho qualificado. Uma amiga, que passara por crises de depressão nervosa, dizia-me que, quando estava bem de saúde, cuidava da casa quase sem pensar nisso e sobrava-lhe tempo para ocupações muito mais restringentes; quando uma neurastenia a impedia de se dedicar a esses outros trabalhos, ela deixava-se avassalar pelas preocupações domésticas e tinha dificuldade então em dar conta delas, embora consagrando-lhes dias inteiros.
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O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
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