sábado, 28 de outubro de 2023

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Mas, atingida por uma doença)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


Mas, atingida por uma doença que não perdoa e cujo caráter inexorável julgava conhecer, vangloriando-se de saberes médicos, temia não poder viver até lá. Pelo menos sentia-se feliz naquela noite ao pensar que todas aquelas mulheres a quem mal conhecia veriam junto dela, um de seus amigos, o jovem marquês de Beausergent, irmão da Sra. de Argencourt, que também frequentava as duas sociedades e cuja companhia as mulheres da segunda apreciavam muito ostentar aos olhos da primeira. Estava sentado atrás da Sra. de Cambremer, numa cadeira enviesada, para poder observar os demais camarotes. Conhecia todos ali e, para cumprimentar, com a arrebatadora elegância das lindas mesuras garbosas de sua cabeça loura, erguia a meio o corpo bem aprumado, com um sorriso nos olhos azuis, num misto de respeito e desenvoltura, gravando assim com precisão, no retângulo do plano oblíquo em que se achava posto, algo como uma dessas velhas estampas que mostram um grão-senhor altivo e cortesão. Muitas vezes aceitava, desse modo, ir ao teatro com a Sra. de Cambremer; na sala, e à saída, no vestíbulo, permanecia corajosamente junto dela no meio da multidão de amigas mais brilhantes do que a que lhe estava ao lado, à qual evitava falar, não querendo constrangê-las, e como se estivesse em má companhia. Se então passava a princesa de Guermantes, ligeira e bela como Diana, arrastando atrás de si uma capa incomparável, fazendo com que todas as cabeças se virassem e seguida de todos os olhares (mais pelos da Sra. de Cambremer que pelos dos outros), o Sr. de Beausergent se absorvia numa conversação com sua vizinha, não correspondia ao sorriso amistoso e deslumbrante da princesa senão por obrigação e forçado, e com a reserva bem-educada e a caridosa frieza de alguém cuja amabilidade pode se tornar momentaneamente constrangedora.

A Sra. de Cambremer, mesmo que não soubesse que a frisa pertencia à princesa, teria no entanto reconhecido que a Sra. de Guermantes era a convidada, devido ao ar de maior atenção que esta prestava ao espetáculo da cena e da sala, para ser amável com quem a convidara. Mas ao mesmo tempo que essa força centrífuga, uma força contrária desenvolvida pelo mesmo desejo de amabilidade levava a atenção da duquesa de volta à própria toalete, para a sua aigrette, o colar, o corpete, e até para o da própria princesa, de quem parecia se proclamar vassala, escrava, vinda até aqui exclusivamente para vê-la, pronta para segui-la alhures se à titular do camarote lhe desse a fantasia de ir-se embora, e só considerando um grupo de estranhos curiosos o restante da sala, onde possuía entretanto um grande número de amigos, em cujos camarotes ela se encontrava em outras semanas e para com os quais então não deixava de dar mostras da mesma lealdade exclusiva, relativista e semanal. A Sra. de Cambremer estava espantada de ver a duquesa nessa noite. Sabia que ela ficava até bem tarde em Guermantes e supunha que ali se achasse ainda. Mas contaram-lhe que, às vezes, quando se dava em Paris um espetáculo que ela julgava interessante, a Sra. de Guermantes mandava atrelar um de seus carros logo depois de tomar chá com os caçadores e, ao sol poente, partia a trote rápido através da floresta crepuscular, depois pela estrada, para tomar o trem em Combray a fim de estar à noite em Paris. "Talvez ela tenha vindo de Guermantes expressamente para ouvir a Berma", pensava a Sra. de Cambremer com admiração. E se lembrava de que ouvira Swann dizer, nesse jargão ambíguo que ele possuía em comum com o Sr. de Charlus: - A duquesa é uma das criaturas mais nobres de Paris, da elite mais requintada e escolhida. - Por mim, que fazia derivar do nome de Guermantes, do nome de Baviera e do nome de Condé a vida e o pensamento das duas primas (não podia fazer o mesmo no tocante a seus rostos, pois já os vira), preferia conhecer o seu julgamento sobre a Fedra do que o do maior crítico do mundo. Pois no julgamento delas não teria encontrado mais que inteligência, inteligência superior à minha, mas da mesma natureza. Porém o que pensavam a duquesa e a princesa de Guermantes, e que me teria fornecido um documento inestimável acerca da natureza dessas duas poéticas criaturas, eu o imaginava com a ajuda de seus nomes, aos quais atribuía um encanto irracional e, com a sede e a nostalgia de uma pessoa febril, o que eu pedia que sua opinião sobre a Fedra me desse era o encanto das tardes de verão em que eu ia passear para os lados de Guermantes.

A Sra. de Cambremer tentava distinguir que espécie de toalete usavam as duas primas. Quanto a mim, não duvidava que essas toaletes lhe fossem peculiares. Não só no sentido em que a libré de gola vermelha ou lapela azul pertencera outrora exclusivamente aos Guermantes e aos Condé, mas antes como a um pássaro a plumagem que não é apenas um ornamento de sua beleza, mas uma extensão de seu corpo. A toalete dessas duas mulheres parecia-me como uma materialização nívea ou matizada de sua atividade interior, e, como os gestos que eu vira fazer a princesa de Guermantes, e que não duvidara correspondessem a uma ideia oculta, as plumas que desciam de sua testa e o corpete esplendoroso e recamado de sua prima pareciam ter um significado, ser, para cada uma, um atributo que era apenas delas e cujo sentido gostaria de conhecer: a ave-do-paraíso me parecia inseparável de uma, como o pavão de Juno; não imaginava que uma pudesse usurpar o corpete recamado da outra como não faria com a égide cintilante e franjada de Minerva. E, quando erguia meus olhos para aquele camarote, muito mais que no teto do teatro, onde estavam pintadas alegorias, era como se avistasse, graças à abertura miraculosa das nuvens de costume, a assembleia dos Deuses ocupados em contemplar o espetáculo dos homens, debaixo de um toldo rubro, numa clareira luminosa, entre dois pilares do Céu. Eu contemplava essa apoteose momentânea com uma perturbação que mesclava a paz ao sentimento de ser ignorado pelos Imortais; a duquesa me vira uma vez com o marido, mas certamente não devia se lembrar disso, e não me era penoso que ela, pelo posto que ocupava no camarote, ficasse contemplando as madrepérolas anônimas e coletivas da plateia das primeiras filas, pois sentia com felicidade o meu ser dissolvido no meio delas, quando, no momento em que, em virtude das leis da refração, veio sem dúvida pintar-se na corrente impassível dos dois olhos azuis, a forma confusa do protozoário desprovido de existência individual que eu era, vi uma claridade iluminá-los: a duquesa, transformada de deusa em mulher e parecendo-me subitamente mil vezes mais bela, ergueu para mim a mão enluvada de branco que mantinha apoiada no rebordo da frisa, agitou-a em sinal de amizade, meu olhar se sentiu atravessado pela incandescência involuntária e pelo fogo dos olhos da princesa, que os fizera entrar em conflagração só pelo fato de movê-los para ver a quem a prima cumprimentava; e esta, que me reconhecera, fez chover sobre mim o aguaceiro fulgurante e celeste de seu sorriso. 

Agora, todas as manhãs, bem antes da hora em que ela saía, eu rumava por um longo desvio e ia me postar na esquina da rua pela qual ela costumava descer e, quando o momento de sua passagem me parecia próximo, subia com um ar distraído, olhando na direção oposta e erguendo os olhos para ela assim que chegava à sua altura, mas como se de modo nenhum esperasse vê-la. Nos primeiros dias até, para estar mais seguro de não perdê-la, eu esperava diante da casa, E, todas as vezes que o portão principal se abria (deixando passar sucessivamente tantas pessoas que não eram aquela que eu esperava), a sua agitação logo se prolongava em meu peito, em oscilações que custavam a se acalmar. Pois nunca um fanático de uma grande comediante a quem não conhece, cansando-se de esperar de pé diante de onde saem os artistas, nunca uma multidão exasperada ou idólatra, reunida para insultar ou carregar em triunfo o condenado ou o grande homem que se julga estar a ponto de passar a cada vez que se ouve um rumor vindo do interior da prisão ou do palácio, se sentiram tão emocionados como eu, esperando a saída daquela grande dama que, em sua toalete simples, sabia, pela graça de seu caminhar (bem diverso do modo de andar que exibia ao entrar num salão ou num camarote), fazer de seu passeio matinal para mim, em todo o mundo, só existia ela a passear todo um poema de elegância e o mais requintado adereço, a mais curiosa flor do bom tempo. Mas, depois de três dias, para que o porteiro não percebesse a minha manobra, fui até bem mais longe, até a um ponto qualquer do percurso habitual da duquesa. Com frequência, antes daquela noite no teatro, eu dava desse modo pequenas escapadas antes do almoço, quando fazia bom tempo; se tivesse chovido, eu descia à primeira estiagem para dar alguns passos e, de repente, vindo pela calçada ainda úmida, transformada pela luz em laca de ouro, na apoteose de uma encruzilhada coberta de pó de uma névoa que o sol curtia e dourava, avistava uma pensionista seguida de sua professora, ou uma leiteira com suas mangas brancas; eu permanecia imóvel, uma mão no peito, e o coração já se lançava para uma vida estranha; procurava lembrar-me da rua, da hora, da porta em que a menina (que às vezes eu seguia) desaparecera sem voltar a sair. Felizmente, a fugacidade dessas imagens afagadas (e que eu me prometia tentar rever) as impedia de se fixarem com força em minha lembrança. Não importa, sentia-me menos triste por estar doente, de nunca ter tido ainda coragem de me pôr a trabalhar, a começar um livro. A terra me parecia mais agradável de morar, a vida mais interessante de percorrer desde que via que as ruas de Paris, como as estradas de Balbec, estavam floridas por essas belezas ignoradas que tantas vezes eu procurara fazer surgir dos bosques de Méséglise, e o desejo voluptuoso que cada uma excitava somente ela seria capaz de saciar.

Voltando da ópera, acrescentara, para o dia seguinte, às imagens que desde alguns dias sonhava reencontrar, a da Sra. de Guermantes, grandiosa, com seu penteado alto de cabelos louros e leves, com a ternura prometida no sorriso que me endereçara da frisa de sua prima. Seguiria o caminho que Françoise me dissera que a duquesa tomava e, no entanto, trataria de não perder a saída de uma aula e de um catecismo, a fim de reencontrar duas moças que havia visto na antevéspera. Mas, à espera, de vez em quando, do cintilante sorriso da Sra. de Guermantes, a sensação de doçura que ele me proporcionara me voltava à lembrança. E, sem saber muito bem o que fazia, tentava pô-los (como uma mulher observa o efeito que faria sobre o vestido uma determinada espécie de botões de pedrarias que acabam de lhe presentear) ao lado das ideias romanescas que possuía há muito e que a frieza de Albertine, a partida prematura de Gisele e, antes disso, a separação intencional e excessivamente prolongada de Gilberte, haviam liberado (a ideia, por exemplo, de ser amado por uma mulher, de ter uma vida em comum com ela); depois, era a imagem de uma ou outra das duas moças que eu aproximava dessas ideias, às quais, logo após, tratava de adaptar a lembrança da duquesa. Junto dessas ideias, a recordação da Sra. de Guermantes na ópera era bem pouca coisa, uma estrelinha ao lado da longa cauda de seu cometa flamejante; além do mais, conhecia muito bem essas ideias longo tempo antes de conhecer a Sra. de Guermantes; a recordação, ao contrário, possuía-a imperfeitamente; escapava-me por instantes; e foi durante as horas em que, flutuando em mim na mesma qualidade das imagens de outras mulheres bonitas, ela passou aos poucos a uma associação única e definitiva exclusiva de qualquer outra imagem feminina com minhas ideias romanescas tão anteriores a ela, foi durante essas horas em que melhor a recordava que deveria ter-me ocorrido saber com exatidão em que consistia essa lembrança; mas eu não sabia então a importância que viria a ter para mim; era doce apenas como um primeiro encontro com a Sra. de Guermantes dentro de mim mesmo, era o primeiro esboço, o único verdadeiro, o único feito conforme a vida, o único que de fato foi a Sra. de Guermantes; durante as poucas horas em que tive a felicidade de a deter sem saber lhe prestar atenção, devia entretanto ser bastante encantadora essa recordação, visto que era sempre a ela, livremente ainda naquele momento, sem pressa nem cansaço, sem nada de necessário ou de ansioso, que minhas ideias de amor retornavam; a seguir, à medida que essas ideias se fixaram mais definitivamente, adquiriu delas uma força muito grande, mas tornou-se ele próprio mais vago; em breve, não consegui mais reencontrá-lo; e, nos meus devaneios, deformava-o completamente, sem dúvida, pois, cada vez que via a Sra. de Guermantes, constatava um afastamento, aliás sempre diferente, entre aquilo que havia imaginado e aquilo que via. Agora, todos os dias, certamente, no momento em que a Sra. de Guermantes desembocava no fim da rua, eu ainda avistava seu talhe alto, o rosto de olhar claro sob uma cabeleira leve, todas as coisas pelas quais estava ali; mas, em compensação, alguns segundos mais tarde, quando, tendo desviado os olhos em outra direção para fingir que não estava esperando esse encontro que viera buscar, erguia-os para a duquesa no momento em que chegava ao mesmo nível da rua que ela, e o que via então eram as marcas vermelhas, que não sabia se eram causadas pelo ar livre ou pela acne num rosto entediado que, por um sinal bastante seco e bem diverso da amabilidade da noite de Fedra, correspondia ao cumprimento que lhe dirigia diariamente com ar de surpresa e que não parecia lhe agradar. Entretanto, ao fim de alguns dias, durante os quais a lembrança das duas moças lutou com chances desiguais pelo predomínio de minhas ideias amorosas com a da Sra. de Guermantes, foi a desta, como se de si mesma, que principiou por renascer com mais frequência, enquanto suas concorrentes eram eliminadas; em suma, foi para a Sra. de Guermantes que acabei transferindo, ainda voluntariamente e como por escolha e por prazer, todos os meus pensamentos de amor. Já não sonhava com as meninas do catecismo, nem com uma certa leiteira; e, no entanto, não esperava mais encontrar na rua o que fora buscar, nem a ternura prometida no teatro por um sorriso, nem a silhueta e o rosto claro sob a cabeleira loura que só o eram assim de longe. Agora, não poderia sequer dizer como era a Sra. de Guermantes, nem como a reconhecia, pois a cada dia, no conjunto de sua pessoa, o rosto era tão diverso como o vestido e o chapéu. 

continua na página 26...
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