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terça-feira, 3 de outubro de 2023
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 4 (4c)
Ópera do malandro
Chico Buarque
Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran
SEGUNDO ATO
CENA 4
continuando...
GENI
Pois é, como eu ia dizendo, o Max conheceu uma putinha nova ontem e marcou encontro pra esta tarde. O Max é um cavalheiro muito distinto e é incapaz de faltar com a palavra. As mulheres também não faltam, é claro, todas elas adoram o Max. Por falar nisso, que menina sortuda a tua filha, hein, Vitória? Sabe, eu trouxe aqui um anel que é feito sob medida pra uma recém-casada. (Abre a chapeleira) É platina pura com um big solitário da índia.
VITÓRIA
Faz aí um cheque, Duran. São três contos, né?
GENI
Três? Isso faz muito tempo, meu anjo. Agora não pode ficar por menos de doze.
DURAN
O quê? Doze contos? De jeito nenhum!
VITÓRIA
Duran, o tempo tá correndo!
DURAN
Eu pago sete e fim.
GENI
É doze e fim.
CHAVES
Vamos, pessoal, vamos logo com isso!
GENI
Ah, Tigrão, eu também não me esqueci da tua filha. Coitada, ela era tarada pelo Max e ele chutou ela pra titia. Olha aqui, esses brincos vão cair lindamente numa solteirona. Bem discretos, são de marcassita. Pra você eu faço um preçinho especial: quinze contos.
CHAVES
Tá louco! Onde é que eu vou arranjar quinze contos?
GENI
Ah, Vitória, olha só esse xale. Todo bordado a mão. É da ilha da Madeira e bate com o solitário: doze contos, apenas. E pro Duran não ficar chateado, tem esse isqueiro Dupont, folheado a ouro. . .
DURAN
Eu não fumo!
GENI
Sai por dezesseis contos. Dezesseis com vinte e quatro, olha que graça, deu quarenta justinhos! Você, Tigrão, tem os quinze dos brincos, mais este chaveiro com uma figa de marfim, total: trinta e cinco contos, só porque é amigo. . .
CHAVES (Pula sobre Geni e torce-lhe o braço)
Diga já onde é que tá o Max, senão. . .
GENI
Avenida Atlântica, 120.
CHAVES
Tão vendo, seus idiotas? (Prepara-se para sair) Comigo não tem eu doce não!
GENI
Otário.
CHAVES
Como disse?
GENI
Otário.
CHAVES
Vai dizer que deu o endereço errado? Não, tu não é homem pra isso! Se o Max não tá lá nesse número, eu volto, te prendo e te mato!
GENI
Só que, quando voltar de Copacabana, às quatro e meia da tarde, com esse carnaval aí fora, você não vai ter tempo de prender ninguém. Você vai estar promovido a xerife no território do Acre! Bem, gente, eu vou andando. Agora sim, eu acredito nessa passeata. E eu não quero perder.
DURAN
Espera, Genival.
VITÓRIA
Você é burro mesmo, hein, inspetor? Puta que o pariu!
CHAVES
Genival, eu peço perdão, eu perdi o controle, desculpa!
GENI
Eu tô exausta de desculpas. Agora eu quero é quarenta contos do Duran e trinta e cinco do inspetor que aliás acabam de passar a cinquenta pra indenizar a ofensa física.
CHAVES
Mas eu não tenho esse dinheiro todo!
GENI
O teu amigo Duran empresta, né?
DURAN
Você tá me arruinando, Genival. Noventa contos é demais!
VITÓRIA
Duran, tá em cima da hora!
DURAN
Merda! (Assina o cheque)
VITÓRIA
Agora fala, Genival.
CHAVES
Pelo amor que tu tem a Cristo, fala!
GENI
Então o Max marcou encontro esta tarde com a menina. Aliás, não sei o que foi que ele viu naquela biscatinha. Mas enfim, ele é tão novidadeiro! E, ao mesmo tempo, o Max é muito metódico. O primeiro encontro com uma mulher tem que ser sempre no mesmo lugar. Diga-se de passagem que é um lugar maravilhoso. Muito bem decorado, espaçoso, confortável, cheio de tapetes, almofadas, coisa e tal. Enfim, a mulher passa horas inesquecíveis com o Max. Porque ele é insaciável. Dá uma, muda de cama, dá outra, muda de cama, ele não para quieto. E nessa agitação toda, consegue ser romântico, tão romântico. . .
CHAVES
Assim é foda!
DURAN
Toma o cheque e diz logo o endereço.
GENI (Guarda o cheque no peito, como se usasse sutiã)
Tão romântico! Mas tão romântico que me deu vontade de cantar. Vocês agora vão-se sentar direitinho pra assistir ao meu show.
CHAVES
Ai, meu saco, meus culhões, caralho. . .
VITÓRIA
Cala a boca, cretino, e senta aqui.
GENI
Ah, na hora do coro vocês cantam comigo, tá? Mas bem forte, inspetor, bem forte!
Orquestra ataca introdução
Geni canta "Geni e o Zepelim"
De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela jâ foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Foi assim desde menina
Das lésbicas, concubina
Dos pederastas, amásio
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques de ginásio
E também dá-se amiúde
Aos velhinhos sem saúde
E às viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E ê por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
COM CORO
Joga pedra na Geni
joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela ê boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geleia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo Mudei de ideia
Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniquidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir
COM CORO
Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela ê boa de cuspir
Ela dâ pra qualquer um
Maldita Geni
Mas, de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
COM CORO
Vai com ele, vai,
Geni
Vai com ele, vai,
Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dâ pra qualquer um
Bendita Geni
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
COM CORO
joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Breque na orquestra.
GENI
Acabou.
DURAN
Ah, muito bem.
VITÓRIA
Bravos!
GENI
Não vão pedir bis?
VITÓRIA
Ah, Genival!
GENI
Inspetor, não vai pedir bis?
CHAVES
Bis.
GENI
É, mas hoje eu tô muito cansada pra dar bis. Vocês voltam amanhã, tá?
DURAN
O endereço, Genival!
GENI
É Rua do Catete, 194. A Renascença, Móveis e Decorações.
CHAVES
Tu tá gozando. ..
GENI
É isso mesmo. Ele tem cópia das chaves. Todo domingo, feriado e dia santo ele festeja uma mocinha naquela garçonnière lá.
Todos saem correndo, exceto Geni que senta-se na poltrona, toma um gole de conhaque e se abana com o cheque; cai a luz em resistência.
continua pág 125 ...
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NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.
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