quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Sarau... Mulheres: A moça da cicatriz no queixo 6 (Eduardo Galeano)

Mulheres




Eduardo Galeano


022.


A MOÇA DA CICATRIZ NO QUEIXO


6

Íamos visitar o Capitão.  

O Capitão, em terra firme, estava sempre de passagem.

Sua verdadeira residência era o mar, o barco Foragido, que nos dias bons se perdia longe do horizonte.

Ele tinha armado uma barraca entre os carvalhos, para os maus dias, e ali ficava a vaguear na sombra, cercado por seus magros cachorros, pelas galinhas e porcos criados ao deus-dará.

O Capitão tinha músculos até nas sobrancelhas. 

Nunca tinha escutado uma previsão do tempo, nem consultado uma carta de navegação, mas conhecia como ninguém aquele mar.

Às vezes, ao entardecer, eu ia à praia para vê-lo chegar.

Via-o em pé na proa, com as pernas abertas e as mãos na cintura, aproximando-se da costa, e adivinhava sua voz dando ordens ao timoneiro. O Capitão subia na crista da onda brava, montava-a quando queria, cavalgava sobre ela, a domava; deixava-se levar tranquilamente, deslizando suavemente até a costa. 

O Capitão sabia executar o seu ofício, fazia-o bem, amava o que fazia e o que já havia feito. Eu gostava de ouvi-lo

Se um norte você perdeu, pelo sul ele se escondeu. O Capitão ensinou-me a pressentir as mudanças do vento. Ensinou-me também por que os tubarões, que não sabem nadar para trás e só têm olfato para o sangue, se enrolam nas redes, e como as corvinas negras comem mexilhões no fundo do mar, boca abaixo, cuspindo as cascas, e como as baleias fazem amor nos gelados mares do Sul e sobem à superfície com as caudas enroscadas.

O Capitão tinha andado pelo mundo. Escutá-lo era como fazer uma longa viagem de trás para diante, do ponto de chegada ao ponto de partida, e pelo caminho apareciam o mistério e a loucura e a alegria do mar e alguma vez, rara vez, também a dor calada. As histórias mais antigas eram as mais divertidas e eu ficava imaginando que nos anos de sua juventude, antes das feridas das quais pouco falava, o Capitão tinha sabido ser feliz até nos velórios.

Enquanto falávamos, chegavam até a barraca do Capitão o barulho ininterrupto de uma serra e os mugidos das vacas na mansidão; chegavam também as marteladas do sapateiro que amaciava couros na forma de ferro apoiada em seus joelhos.

Falava-me de minha cidade, que conhecia bem. Isto é, conhecia o porto e a baía, mas principalmente as ruelas da parte baixa da cidade e os bares. Perguntava-me sobre certos botequins e mercadinhos e eu lhe dizia que haviam desaparecido e ele se calava e cuspia tabaco.

– Eu não acredito nos tempos de hoje – dizia o Capitão.

Uma vez ele me disse: 

– Quando as paredes duram menos que os homens, as coisas não andam bem. No seu país, as coisas não andam bem 

Também falava do passado daquele povoado de pescadores, que tinha conhecido suas épocas de glória quando o fígado do tubarão valia seu peso em ouro e os marinheiros passavam as noites de temporal com uma puta francesa em cada joelho e algum anão abanando e os violeiros cantando versos de amor.

Do pique da proa, olhou Flávia com desconfiança. 

Franziu a testa e lhe falou baixinho, para que eu não ouvisse: 

– Quando este homem chegou aqui – apontando-me e mentindo para Flávia –, matou com as próprias mãos o cavalo que o trouxe. Matou-o com um tiro.

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Galeano, Eduardo, 1940-
Mulheres / Eduardo Galeano; tradução de Eric Nepomuceno.
1. Ficção uruguaia- Crônicas. I. Título. II. Série.
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Leia também: 

Sarau... Mulheres: Para inventar o mundo cada dia
Sarau... Mulheres: Amares
Sarau... Mulheres: A moça da cicatriz no queixo 6

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El peligro de publicar

En el año 2004, el gobierno de Guatemala quebrantó por una vez la tradición de impunidad del poder, y oficialmente reconoció que Myrna Mack había sido asesinada por orden de la presidencia del país.

Myrna había cometido una búsqueda prohibida. A pesar de las amenazas, se había metido en las selvas y las montañas donde deambulaban, exiliados en su propio país, los indígenas que habían sobrevivido a las matanzas militares. Y había recogido sus voces.

En 1989, en un congreso de ciencias sociales, un antropólogo de los Estados Unidos se había quejado de la presión de las universidades que obligaban a producir continuamente:

—En mi país —dijo—, si no publicas, estás muerto. 

Y Myrna dijo:

—En mi país, estás muerto si publicas.

Ella publicó.

La mataron a puñaladas. 

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