quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo - O processo de Champmathieu / VIII — Entrada de favor

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Sétimo — O processo de Champmathieu


VIII — Entrada de favor

O maire de Montreuil-sur-mer, sem que mesmo o suspeitasse, tinha uma certa celebridade. Havia sete anos que a sua reputação de virtude percorria todo o Baixo Bolonnais, acabando por ultrapassar os limites de um pequeno território e espalhando-se pelas províncias vizinhas. Além do serviço que prestara à capital do distrito, restaurando ali a indústria dos vidrilhos pretos, não havia uma só das cento e quarenta comunas de Montreuil-sur-mer que lhe não devesse algum benefício. Tinha até achado o modo de ajudar e fecundar as indústrias dos outros distritos. Fora assim que ele, numa ocasião crítica, sustentara com o seu crédito e fundos a fábrica de filós de Bolonha, a fiação mecânica de linho de Prevent e a manufatura hidráulica de tecidos de Boubers-sur-Canche. Por toda a parte se pronunciava com veneração o nome do senhor Madelaine. Arras e Douai invejavam o maire da pequena mas feliz cidade de Montreuil-sur-mer. 
O conselheiro do supremo tribunal de Douai que presidia à audiência conhecia, como toda a gente, aquele nome tão profundo e universalmente respeitado. Quando o oficial de diligências, abrindo discretamente a porta que comunicava a casa do conselheiro com a sala da audiência, se inclinou por detrás da cadeira do presidente e lhe entregou o papel que lhe tinham dado, acrescentando: «Este senhor deseja assistir à audiência», o presidente fez um gesto de deferência e solicitude, pegou numa pena, escreveu algumas palavras no mesmo papel, tornou a dá-lo ao oficial de diligências, dizendo-lhe ao mesmo tempo: 

— Mande entrar.

O desgraçado de quem contámos a história ficara junto da porta da sala no mesmo lugar em que o oficial de diligências o deixara. Atrás da sua meditação ouviu que alguém lhe dizia: 

— O senhor maire dá-me a honra de me seguir? 

Era o mesmo oficial de diligências que pouco antes lhe voltara as costas e que agora o cumprimentava, curvando-se até ao chão. Ao mesmo tempo entregou-lhe o papel.
Madelaine desdobrou-o e, como se encontrava próximo do candeeiro, pôde ler: «O presidente do tribunal apresenta os seus respeitos ao senhor Madelaine».
Amarrotou o papel nas mãos, como se tivesse achado nas poucas palavras que ele continha um sabor estranho e amargo. Em seguida acompanhou o oficial de diligências.
Dali a pouco achava-se numa espécie de gabinete estucado, de aspecto severo e alumiado por duas velas, colocadas sobre uma mesa de pano verde. Tinha ainda no ouvido as palavras do oficial de diligências, que acabara de o deixar: «Aqui é a casa do conselho, não tem mais do que levantar o fecho desta porta para se encontrar na sala da audiência, por detrás da cadeira do senhor presidente».
Estas palavras confundiram-se-lhe no pensamento com uma vaga recordação dos corredores estreitos e das escuras escadas que acabava de percorrer.
O oficial de diligências deixara-o só. Chegara o momento supremo. Diligenciava recolher o espírito, mas não o conseguia. É principalmente nos momentos em que há maior necessidade de ligar às pungentes realidades da vida todos os fios do pensamento, que eles se quebram no cérebro. Achava-se no sítio em que os juízes deliberam e condenam. Observava com estúpida tranquilidade aquela casa pacífica e temível, onde se tinham destruído tantas existências, onde o seu nome ia em breve ressoar e que o seu destino atravessava naquele momento. Olhava para si e admirava-se de ser aquela uma tal casa e de ser ele quem ali se encontrava.
Havia vinte e quatro horas que não tomava alimento algum, tinha o corpo pisado pelos solavancos do carro, mas não o sentia; parecia-lhe que não sentia nada.
Aproximou-se de uma moldura preta que estava pendurada na parede e sob cujo vidro se via uma velha carta autografada de Nicolau Pache, ministro e maire de Paris, datada, decerto por engano, de 9 de Junho, do ano XI, e na qual Pache enviava à administração do conselho a lista dos ministros e deputados presos em suas casas. Quem o tivesse observado naquela ocasião, teria sem dúvida julgado que lhe causava grande interesse aquela carta, por isso que não afastava dela os olhos. Leu-a duas ou três vezes; leu-a maquinalmente e quase a seu pesar.
Naquele momento era em Fantine e em Cosette que ele pensava. No meio da sua meditação, voltou-se e viu o puxador da porta que o separava da sala da audiência.
 Quase se esquecera daquela porta. Os olhos, em princípio sossegados, fitaram-se nela, patentearam depois susto, e foram a pouco e pouco denotando o mais sombrio espanto. O suor, saindo-lhe de entre os cabelos, corria-lhe pelas fontes.
Em certo momento e com uma espécie de autoridade mesclada de rebelião, fez o gesto indescritível, que quer dizer, e diz tão bem: «Com a fortuna! Quem é que me obriga?» Depois, voltou-se de repente, viu diante de si a porta por onde tinha entrado, foi direito a ela, abriu-a e saiu. 
Já não estava naquela casa: achava-se fora dela; num corredor muito comprido e estreito, cortado de degraus e de portinhas, iluminado num e noutro ponto por lanternas, cuja luz era tão frouxa como a das lamparinas que ordinariamente alumiam os quartos dos enfermos; era o mesmo corredor que já percorrera. Respirou fundo e aplicou o ouvido; não ouviu o menor ruído de nenhum dos lados e deitou a fugir como se o perseguissem. 
Depois de ter dado diferentes voltas pelo corredor aplicou novamente o ouvido. Sempre o mesmo silêncio e as mesmas sombras em torno de si. Faltava-lhe o alento e tremiam-lhe as pernas; encostou-se então ofegante à parede, porque os seus passos eram vacilantes e trémulos como os de uma criança. Ao contato da pedra fria endireitou-se, estremecendo, com o suor gelado na fronte. 
Então, a sós, de pé, no meio daquela escuridão, tremendo de frio e de outra coisa talvez, pôs-se a pensar. Pensara em toda a noite, pensara em todo o dia, e já não ouvia senão uma voz que lhe bradava do íntimo: «Ai de ti!»
Decorreu assim um quarto de hora. Por fim, curvou a cabeça, suspirou com angústia e voltou para trás, caminhando muito vagarosamente e em extremo abatido. Parecia que alguém o encontrava em fuga e o reconduzia para o sítio donde fugira. 
Tornou a entrar na casa do conselho. A primeira coisa para que olhou foi para o puxador da porta. Este puxador, de cobre polido, resplandecia a seus olhos qual estrela sinistra. Encarou-o como um cordeiro poderia encarar o olhar de um tigre. Não podia afastar dele os olhos.
De vez em quando dava um passo e aproximava-se da porta. Se aplicasse o ouvido, ouviria o confuso murmúrio que vinha da sala vizinha, mas não escutava, não ouvia nada.
De repente, sem que soubesse como, achou-se ao pé da porta e pegou convulsivamente no puxador. A porta abriu-se.
Estava na sala da audiência.  
 
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.

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Os Miseráveis: Fantine, Livro Sétimo -  VIII — Entrada de favor

Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)

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