volume II
À Sombra das Moças em Flor
Ao Redor da Sra. Swann
(g)
continuando...
Quando chegou o dia 1° de janeiro, a princípio fiz visitas de família com minha mãe, que, para não me cansar, classificara-as antecipadamente (com a ajuda de um itinerário elaborado por meu pai) por bairro, em vez de fazê-lo por graus de parentesco. Porém, mal entramos no salão de uma prima bem afastada, aonde íamos primeiro porque sua casa ficava bem próxima da nossa, ao contrário do seu parentesco, minha mãe ficou assombrada ao ver, trazendo seus marrons-glacês ou deguisês, o melhor amigo do mais suscetível de meus tios, ao qual contaria que não tínhamos iniciado nosso giro por ele. Esse tio ficaria seriamente ofendido; acharia natural que começássemos indo da Madeleine ao Jardim das Plantas, onde morava, antes de parar em Saint-Augustin, para ter de voltar logo à rua da Faculdade de Medicina.
Quando chegou o dia 1° de janeiro, a princípio fiz visitas de família com minha mãe, que, para não me cansar, classificara-as antecipadamente (com a ajuda de um itinerário elaborado por meu pai) por bairro, em vez de fazê-lo por graus de parentesco. Porém, mal entramos no salão de uma prima bem afastada, aonde íamos primeiro porque sua casa ficava bem próxima da nossa, ao contrário do seu parentesco, minha mãe ficou assombrada ao ver, trazendo seus marrons-glacês ou deguisês, o melhor amigo do mais suscetível de meus tios, ao qual contaria que não tínhamos iniciado nosso giro por ele. Esse tio ficaria seriamente ofendido; acharia natural que começássemos indo da Madeleine ao Jardim das Plantas, onde morava, antes de parar em Saint-Augustin, para ter de voltar logo à rua da Faculdade de Medicina.
Acabadas as visitas (minha avó nos dispensava que lá fôssemos, pois naquele dia
jantaríamos com ela), corri aos Champs-Élysées a fim de levar à nossa vendedora, que por sua
vez a entregaria à pessoa que vinha várias vezes na semana, da casa dos Swann, comprar pão
de mel, a carta que, desde o dia em que minha amiga me causara tanta mágoa, decidira lhe
enviar no dia de Ano-Novo, e na qual dizia que nossa amizade antiga desaparecia com o ano
findo, que esquecia minhas censuras e decepções e que, a partir de 1° de janeiro, era uma nova
amizade iríamos construir, tão sólida que nada a arruinaria, tão maravilhosa que esperava que
Gilberte tivesse alguma faceirice em conservar toda a sua beleza se de vez em quando, como eu
prometia fazer também, logo que ocorre um perigo capaz de destruí-la.
Voltando para casa, Françoise me fez parar na rua Royale, diante de uma venda de
mercadorias ao ar livre, onde escolheu de presente, fotos de Pio IX e de Raspail e onde, de minha
parte, com Berma. As numerosas admirações que a artista suscitava conferiam certa beleza
àquele rosto único que ela possuía para lhes retribuir, imutável e precário as roupas dessas
pessoas que não têm outra para trocar, rosto em que tinha deixado sempre a mesma ruga
pequena sobre o lábio superior, o soerguimento das sobrancelhas, outras peculiaridades físicas,
sempre as mesmas que, em suma, mercê de queimadura ou de um choque. Além disso, esse
rosto não parecido belo em si mesmo, porém dava-me a ideia e, por conseguinte, desejo de beijá-lo por causa de todos os beijos que já recebera e que, do fundo do álbum, parecia solicitar ainda
com aquele olhar de terna faceirice e o sorriso mansamente ingênuo. Pois a Berma devia
efetivamente sentir para como muitos, os desejos que confessava, sob a capa da personagem
Fedra, e que lhe é fácil satisfazer por tudo, até pelo prestígio de seu nome que se acrescentava
beleza e prorrogava-lhe a juventude. A noite caía, e parei diante de uma teatro onde estava
afixado o cartaz sobre a representação que a Berma faria dia 1° de janeiro. Soprava um vento
úmido e suave. Era um tempo bem conhecido, que eu tinha a sensação e o pressentimento de
que o dia de Ano-Novo não era diferente dos outros, que não era o primeiro de um mundo novo
em que teria podido a oportunidade ainda intacta, refazer minhas relações com Gilberte como a
da Criação, como se ainda não existisse passado, como se tivessem sido criadas, juntamente
com os indícios que delas se pudessem tirar para o decepções que ela me causara às vezes; um
novo mundo onde não sairia nada do antigo... a não ser uma coisa: meu desejo de que Gilberte
me quisesse. Compreendi que meu coração desejava tal renovação, a seu redor, de um, que não
o satisfizera, porque ele, meu coração, não havia mudado, e disse mesmo que não havia motivo
algum para que o de Gilberte tampouco houvesse mudado; senti que aquela nova amizade era a
mesma, como não são 38 dos outros por um fosso, os anos novos que o nosso desejo, sem poder
modificá-los, reveste, sem que o saibam, de um nome diferente.
Por mais que dedicasse a Gilberte aquele ano, e da mesma forma como se superpõe uma
religião às leis cegas da natureza, e tentasse imprimir ao dia do Ano-Novo a ideia que fazia dele,
era tudo em vão; sentia que ele não sabia que o chamava de Ano-Novo, que terminava no
crepúsculo de um modo que para mim não era novo; e vento suave que soprava ao redor da
coluna de cartazes, eu reconheceria ao reaparecer a matéria eterna e comum, a umidade familiar,
a ignorante dias antigos.
Voltei para casa. Acabava de viver o 1° de janeiro dos homens velhos que diferem este dia
dos jovens, não porque não lhes deem presentes, mas porque não acreditam mais no Ano-Novo.
Ganhara presentes, mas não o único que teria me alegrado, um bilhete de Gilberte. No entanto,
eu ainda era jovem, pois que lhe escrevera uma carta com a qual esperava, falando-lhe dos
sonhos solitários, da minha ternura, a fim de despertar-lhe sonhos idênticos. A tristeza dos
homens que envelheceram é a de nem sequer pensar em escrever tais cartas, de que já
conhecem a inutilidade.
Quando me deitei, os rumores da rua, que se prolongaram até mais tarde naquele dia de
festa, mantiveram-me acordado e eu pensava em todas as pessoas que acabariam a noite no
meio dos prazeres, pensava no amante; no grupo de devassos, talvez, que tinham ido procurar a
Berma ao fim daquela representação que eu vira anunciada para a noite. Nem sequer podia, para
acalmar a agitação que essa ideia fazia nascer em mim naquela noite de insônia, dizer comigo
que a Berma não pensava talvez no amor, visto que os versos que recitava, que longamente
estudara, lembravam-lhe o ato do instante como era delicioso o amor, o que aliás ela bem sabia,
tanto que mostrava muito em suas falas, conhecidas emoções; porém, dotadas de uma violência
nova e de uma doçura insuspeitada à espectadores maravilhados, os quais, entretanto, já as
haviam conhecido por si mesmos. Acendi a vela apagada para olhar ainda uma vez o seu rosto. À
ideia de que ele era, naquele instante, sem dúvida, acariciado por esses homens a quem não
podia impedir de dar à Berma, e dela receber, alegrias sobre-humanas e vagas, experimentei uma
perturbação mais cruel, por não ser voluptuosa, uma nostalgia a que veio agravar o som da
trompa, como o que se ouve na noite da Mi-Carême, e muitas vezes em outras festas e que,
como então é destituído de poesia, é mais triste, saindo de uma taberna, do que "a noite no fundo
das florestas". Nesse momento, talvez, um bilhete de Gilberte não seria o que mais me faltasse.
Nossas aspirações vão se entrecruzando na confusão da existência, e raro que uma felicidade
venha se colocar exatamente sobre o desejo que a reclamava.
Continuei a ir aos Champs-Élysées nos dias em que fazia bom tempo. Nas ruas cujas
mansões elegantes e róseas se banhavam, já que era a época da moda em voga de exposições
de aquarelistas, em um céu móvel e tênue. Mentiria se dissesse que nesse tempo os palácios de
Gabriel me pareceriam de maior beleza do que os palácios vizinhos; ou até mesmo de outra
época. Eu julgava que com mais estilo a teria achado mais antigo, senão o palácio da Indústria,
ao menos o do Trocadéro. Numa agulhada em sono agitado, minha adolescência envolvia num
mesmo sonho todo o bairro por onde o levava, e eu jamais sonhara que pudesse haver um
edifício do século XVIII na rua Royale; assim como teria ficado espantado se soubesse que a
porta de Saint-Martin e a Porta Saint-Denis, obras-primas do tempo de Luís XIV, não eram
contemporâneas dos imóveis mais recentes daqueles distritos sórdidos. Uma única vez um dos
palácios de Gabriel me fez parar longamente; é que havia caído a noite e suas colunas
desmaterializadas pelo luar, pareciam recortadas e lembrando-me um cenário da opereta Orfeu
nos Infernos, davam-me pelo menos uma vez a impressão de beleza.
Entretanto, Gilberte não voltava aos Champs-Élysées. E, contudo tinha necessidade de vêla, pois nem sequer me lembrava de seu rosto. A maneira indagadora, ansiosa, exigente com que
encaramos a pessoa amada, nossa expectativa da palavra que nos dará, ou matará a esperança
de um encontro no dia seguinte, até que tal palavra seja dita, nossa imaginação alternativa, senão
simultânea de alegria e desespero; tudo isso torna a nossa atenção, em face do ser amado
trêmula demais para que possa obter dele uma imagem bem nítida. Também, essa atividade de
todos os sentidos ao mesmo tempo; que tenta, somente com os olhares, aquilo que se encontra
além deles; seja porque a gente se entrega com demasiada indulgência para mil formas, sabores
e movimentos da pessoa viva; a todas essas coisas que de costume tornamos inerte quando não
estamos enamorados. O modelo que ao contrário, se movimenta; dele só possuímos fotografias
defeituosas. Eu, na verdade, não sabia de fato como eram os traços de Gilberte, salvo nos
momentos divinos em que eles se desdobravam para mim: só me recordava do seu sorriso. E,
não rever aquele rosto bem-amado, a todo esforço que fizesse para me lembrar, por encontrar,
desenhados em minha memória com precisão definitiva, inúteis e impressionantes do homem dos
cavalos de madeira e da vendedora de pirulitos; assim, aqueles que perderam um ente querido que
jamais torna a rever, se desesperam de encontrar sem cessar em seus sonhos tantas pessoas
insuportáveis e que já é demais terem conhecido no estado de vigília. Em sua impotência de
imaginarem o objeto de sua dor, quase se acusam de não sentir bastante dor. Quanto a mim, não
estava longe de crer que, não podendo me lembrar de Gilberte, esquecera ela própria, não a
amava mais. Por fim, ela que eu via quase todos os dias, pondo diante de mim novas coisas a
desejar, a lhe pedir para o dia seguinte e fazendo cada dia, em tal sentido, de minha ternura uma
nova. Mas uma coisa veio mudar, e de modo brusco, a maneira encontrar todas as tardes, cerca
das duas horas, se colocava o problema do meu amor. Será que o Sr. Swann havia surpreendido
a carta que escrevera à sua filha; ou Gilberte me avisava muito depois sobre um estado de coisas
já antigo, a fim de que eu fosse mais prudente? Como lhe dissesse o quanto admirava seu pai e
sua mãe, assumiu este ar vago, cheio de reticências e segredo, que apresentava somente quando
lhe falarem do que tinha de fazer, de seus passeios e visitas, e, de repente, acabam de falar:
"Sabe, eles acham você intragável!" e escorregadia como uma ondina, assim desatou a rir.
Muitas vezes o seu riso, estava em desacordo com suas palavras e parecia, como o faz a música,
descrever em outro plano uma superfície invisível. O Sr. e a Sra. Swann não pediam a Gilberte
que deixasse de jogar comigo; porém, parecia que seus pais preferiam que aquilo não tivesse
começado. Não viam favoravelmente minhas relações com ela, porque não me atribuíam grande
moralidade e imaginavam que eu só poderia exercer uma influência malsã sobre a filha. Esse tipo
de pessoas jovens e pouco escrupulosas, às quais Swann parecia comparar-me, eu as imaginava
como detestando os pais da moça a quem amava, elogiando-os em sua presença mas troçando
deles com ela, impelindo-a a desobedecê-los e, quando a conquistam, impedem-na até de vê-los.
A esses traços (que nunca são aqueles sob os quais se enxerga o maior miserável), com que
violência meu coração opunha os sentimentos de que estava animado em relação a Swann, ao
contrário, tão apaixonados que já não duvidava de que, se ele os tivesse suspeitado, se
arrependesse do julgamento a meu respeito como de um erro judiciário! Tudo o que sentia por ele,
ousei escrever numa longa carta que confiei à Gilberte, pedindo que a fizesse lhe chegar às
mãos. Ela consentiu. Ai de mim! Ele via então na minha pessoa um impostor maior ainda do que
eu imaginara; dos sentimentos que eu acreditara pintar-lhe em dezesseis páginas, com tanta
verdade, ele duvidava então: a carta que lhe escrevi, tão ardente e tão sincera como as palavras
que havia dito ao Sr. de Norpois, não alcançara maior êxito. Gilberte me contou no dia seguinte,
depois de me levar à parte para trás de um bosquete de loureiros, numa pequena alameda, onde
cada um se sentou numa cadeira, que, ao ler a carta, que ela me devolvia, seu pai dera de
ombros dizendo:
"Tudo isso não quer dizer nada, apenas mostra o quanto eu tenho razão."
Eu que conhecia a pureza de meus sentimentos, a bondade da minha alma, estava
indignado que minhas palavras nem sequer tivessem abalado o absurdo erro de Swann. Pois que
se tratava de um erro, já não tinha mais dúvidas. Sentia que descrevera com tanta exatidão certas
características irrecusáveis de meus sentimentos generosos que, para que Swann, por meio
delas, não as tivesse logo reconstituído, não me viesse pedir perdão e confessar que se
enganara, era preciso que ele jamais tivesse sentido esses nobres sentimentos, o que deveria
torna-lo incapaz de compreendê-los nos outros.
Ora, talvez Swann soubesse que a generosidade não passa, muitas vezes, do aspecto
interior assumido pelos nossos sentimentos egoístas quando ainda não os denominamos e
classificamos. Talvez reconhecesse, na simpatia que lhe apressava, um simples efeito - e uma
confirmação entusiasta - do meu amor por Gilberte, pelo qual - e não pela minha veneração
secundária por ele - seriam fatalmente dirigidos por meus atos a seguir. Não podia partilhar de
suas previsões, pois não conseguira abstrair de mim mesmo o meu amor, fazê-lo pertencer à
generalidade dos outros amores, calcular-lhe experimentalmente as consequências; estava
desesperado. - Tive de deixar Gilberte por um instante; Françoise me chamava. Foi preciso
acompanhá-la a um pequeno pavilhão com treliças verdes, bem parecido com os escritórios da
alfândega municipal da velha Paris, e onde há pouco instalaram; o que na Inglaterra se chama
lavabo e, na França, por uma anglomania mal informada, water-closet. As paredes úmidas e
velhas da entrada, onde fiquei esperando Françoise, desprendiam um odor frio de coisa fechada
que, dista logo das preocupações que acabavam de fazer nascerem mim as palavras contadas
por Gilberte, invadiu-me de um prazer que não era o mesmo dos outros, os quais nos deixam
mais instáveis, incapazes de retê-los ou possuí-los; pelo contrário, de um prazer consistente, ao
qual podia me apoiar, delicioso, rico de uma verdade duradoura, certa e inexplicável. Teria
querido, como antigamente em meus passeios pelos caminhos de Guermantes, tentar decifrar
dessa impressão que me empolgara e ficar imóvel a interrogar aquela envelhecida que me
propunha, não desfrutar o prazer que ela só me dava por acréscimo, mas a descida na realidade
que ela não me revelava. Mas a encarregada pelo estabelecimento, velha senhora de faces
excessivamente pintadas e de peruca castanha, pôs-se a falar comigo. Françoise achava-a "gente
muito boa". Sua filha havia casado com o que Françoise denominava "rapaz de família", portanto,
algum ser que ela julgava bem, mais diferente de um operário vindo de Saint-Simon o qual
considerava de um homem "saído da lama do povo". Sem dúvida a zeladora, sofrera reveses da
fortuna. Mas Françoise assegurava que ela era marquesa e pertencia à uma família de Saint-Ferréol. Essa marquesa me aconselhou que não ficasse ali ao ar fresco e me abriu um gabinete
dizendo: "Não quer entrar? Este aqui é bem limpo e pra você será grátis." Talvez o fizesse apenas
como as senhoritas do Gouache que quando íamos fazer uma encomenda, ofereciam-me um dos
bombons que tinham em cima do balcão, sob uma tampa de vidro e que mamãe infelizmente me
proibia, que eu aceitara também com menos inocência; como aquela velha florista que mamãe
levava para nos encher as "jardineiras" e que me dava uma rosa revirando os olhos muito ternos.
Em todo caso, se a "marquesa" gostava de rapazes, abrindo-lhes a porta daqueles cubos de
pedra onde os homens estão acocorados como as Esfinges, e devia procurar em sua
generosidade menos a esperança de corrompê-los; prazer que se experimenta em se mostrar
inutilmente pródigo à pessoa querida; pois, nunca vi junto dela, outro visitante que não um velho
guarda-florestal.
continua na página 30...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - g)
Volume 3Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
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