quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Moby Dick: 7 - A Capela

Moby Dick



Herman Melville




6 - A Capela


Nesta mesma New Bedford há uma Capela dos Baleeiros, e são poucos os pescadores soturnos que, estando de partida para o oceano Índico ou Pacífico, deixam de fazer uma visita ao local num domingo. O certo é que não foi meu caso.
Ao voltar de meu primeiro passeio matinal, outra vez saí num arroubo com esta missão especial. O céu tinha mudado do aberto, frio ensolarado, para um nublado com neve e chuva. Embrulhado em minha capa feita da chamada pele de urso, abri caminho contra o furioso temporal. Entrando, encontrei uma pequena congregação de marinheiros e de esposas e viúvas de marinheiros. Reinava um silêncio abafado, quebrado de quando em quando pelo uivo do temporal. Cada devoto silencioso parecia estar sentado propositalmente distante do outro, como se cada aflição calada fosse isolada e incomunicável. O capelão ainda não tinha chegado; e ali aquelas ilhas silentes de homens e mulheres permaneciam sentadas, com os olhos presos às lápides de mármore, as bordas pretas, elaboradas na parede dos dois lados do púlpito. Três delas traziam, mais ou menos assim, as seguintes inscrições, que não vou fingir citar:




CONSAGRADA À MEMÓRIA DE 
JOHN TALBOT, 
QUE SE PERDEU NO MAR, COM A IDADE DE 18 ANOS, 
PRÓXIMO À ILHA DA DESOLAÇÃO, NO LITORAL 
DA PATAGÔNIA, EM 1º DE NOVEMBRO DE 1836. 
ESTA LÁPIDE FOI ERIGIDA EM 
SUA MEMÓRIA POR SUA IRMÃ. 




CONSAGRADO À MEMÓRIA DE 
ROBERT LONG, WILLIS ELLERY, NATHAN COLEMAN, 
WALTER CANNY, SETH MACY E SAMUEL GLEIG, 
QUE FORMAVAM A TRIPULAÇÃO DO 
NAVIO ELIZA, QUE SE PERDEU ARRASTADO 
POR UMA BALEIA, NO LITORAL DO PACÍFICO, 
EM 31 DE DEZEMBRO DE 1839. 
ESTE MÁRMORE FOI COLOCADO 
PELOS COMPANHEIROS DE BORDO SOBREVIVENTES. 




CONSAGRADA À MEMÓRIA 
DO FINADO CAPITÃO EZEKIEL HARDY, 
MORTO À PROA DE SEU NAVIO POR UM CACHALOTE NA 
COSTA DO JAPÃO, EM 3 DE AGOSTO DE 1833. 
ESTA LÁPIDE FOI ERIGIDA EM SUA MEMÓRIA POR SUA VIÚVA. 


Tirando a neve de meu chapéu e capa congelados, sentei-me perto da porta e virando-me para o lado fiquei surpreso de ver Queequeg perto de mim. Impressionado pela solenidade da cena, havia uma expressão de incrédula curiosidade em seu rosto. O selvagem parecia ser a única pessoa ali a notar minha entrada; porque era o único que não sabia ler e, por isso, não estava lendo aquelas frias inscrições na parede. Se entre os presentes havia algum parente dos marinheiros cujos nomes tinham sido gravados, eu não sabia; mas são tantos os acidentes sem registro na pescaria, e tão claramente algumas das mulheres que ali estavam cobriam seus rostos com os vestígios de alguma aflição inquebrantável, que tive a certeza de que diante de mim estavam reunidos corações incuráveis, para os quais a contemplação das lápides vazias fazia sangrar de novo as velhas feridas.
Oh, vós, cujos mortos jazem enterrados sob a grama verde; que em meio a flores podeis dizer – aqui, aqui jaz o meu amado; vós não sabeis a desolação que habita estes nossos peitos. Que vazio amargo esse dos mármores enegrecidos que não cobrem cinza alguma! Que desespero esse das inscrições irremovíveis! Que vácuo mortífero, que indesejada infidelidade daquelas linhas que parecem minar toda a Fé e recusam a ressurreição a seres que no deslugar pereceram sem ter túmulo. Aquelas lápides poderiam estar tanto na caverna de Elefanta como aqui.
Em que recenseamento de seres vivos estão incluídos os mortos da humanidade; por que há um provérbio que afirma que os mortos não falam, embora saibam mais segredos que Goodwin Sands; como se explica que, ao nome daquele que partiu ontem para outro mundo, nós associemos uma palavra tão significativa e inverídica, e no entanto não a associemos a ele, que parte para as Índias mais remotas; por que as companhias de seguro pagam pela morte de imortais; em que paralisação eterna e imóvel, e transe mortífero e desesperado, jaz o antigo Adão, morto há sessenta séculos; como é possível que ainda não encontremos consolo pela perda daqueles que afirmamos estar na mais completa bem-aventurança; por que todos os vivos se esforçam tanto para não mencionar os mortos; por que motivo um simples ruído num túmulo assusta uma cidade inteira? Todas essas coisas têm seu significado.
Mas a Fé, como um chacal, se alimenta por entre os túmulos, e mesmo dessas dúvidas mortais recolhe sua esperança mais vital.
É desnecessário descrever os sentimentos com que olhei para aquelas lápides de mármore, na véspera de uma viagem a Nantucket, lendo na penumbra daquele dia escuro e triste o destino dos baleeiros que haviam partido antes de mim. É, Ishmael, podes ter o mesmo destino. Mas, não sei como, senti-me de novo alegre. Estímulos agradáveis para embarcar, boas chances de promoção, parece que sim – um navio naufragado fará de mim um imortal por carta de mercê. Pois é, existe a morte neste negócio baleeiro – um modo caótico, rápido e sem palavrório de empacotar o homem para a Eternidade. Mas e daí? Parece-me que estamos profundamente equivocados a respeito dessa história de Vida e Morte. Parece-me que, olhando para as coisas espirituais, somos como ostras observando o sol através da água e achando que a água espessa é o ar mais sutil. Parece-me que meu corpo é a parte mais insignificante do meu ser. A bem dizer, levem meu corpo, levem-no, não sou eu. E então, três vivas para Nantucket; que venha um navio naufragado e um corpo naufragado, pois naufragar minha alma, o próprio Jove não pode.

Continua na página 49...

Moby Dick: 3.2 - A Estalagem do Jato 
Moby Dick: 4 - A colcha
Moby Dick: 5 - Café-da-manhã
Moby Dick: 6 - A rua
Moby Dick: 7 - A Capela
Moby Dick: 8 - O Púlpito
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melville, sobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,


O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.

O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.

A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura. 


E você com o quê se identifica?

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