D. Quixote de la Mancha
Miguel de Cervantes
Vol 1
O Engenhoso Fidalgo
D. Quixote de la Mancha
Miguel de Cervantes
PRIMEIRA PARTE
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO XXIX
LIVRO QUARTO
CAPÍTULO XXIX
Que trata do gracioso artifício e ordem que se teve em tirar o nosso amorado cavaleiro da
muito áspera penitência em que se havia posto.
— Esta é, senhores, a verdadeira história da minha tragédia. Julgai agora se os suspiros e palavras que ouvistes e as minhas lágrimas, não eram ainda menos do que deveram. Pesando bem a minha desgraça, reconhecereis que por demais vos fora o tentar-lhe consolações; é mal já agora sem remédio. O que só vos peço, e com facilidade me podereis fazer, é aconselhardes-me onde poderei passar a vida, antes que de mim dê cabo o temor de ser achada pelos que me andam procurando. Eu sei, verdade seja, que o muito amor que meus pais me têm me afiançava da sua parte muito bom acolhimento; mas tamanha é a vergonha que de mim se apossa, ao pensar que lhes hei-de aparecer tão diferente do que eles esperavam, que por melhor tenho desterrar-me para sempre da sua vista, que torná-los a ver, lembrando-me que eles ao encarar-me estão sofrendo no interior pensamentos tão alheios da honestidade que de minha parte deviam esperar.
Calou-se aqui, e se lhe cobriu o rosto de uma cor, que bem claramente mostrava o sentimento e
quebranto do seu ânimo. Tanta lástima excitou nos ouvintes, como admiração por tão porfiosa
desgraça.
O cura quis logo tentar-lhe consolações e conselhos, mas antecipou-se-lhe Cardênio, dizendo:
— Com que, senhora, sois então vós a formosa Dorotéia, a filha única do rico Clenardo?
Admirada ficou Dorotéia quando ouviu o nome de seu pai, e reparou no somenos que era quem lho
proferia (já está sabido o maltrapilho que ele andava) e disse-lhe:
— E vós quem sois, irmão, que assim sabeis o nome de meu pai? porque eu até agora, se bem me
lembro, nunca na minha narrativa o nomeei.
— Sou — respondeu Cardênio — aquele sem ventura, que, segundo vós, senhora, aí dissestes,
Lucinda declarou ser seu esposo; sou o desditado Cardênio, a quem a perfídia do mesmo de quem
também sois vítima reduziu a este estado que vedes, roto, nu, falto de todo o conforto humano, e, o
que é ainda pior, falto do juízo, pois só o tenho quando nalguns breves intervalos o céu se lembra de
mo emprestar. Sou, sou eu, Dorotéia, aquele que se achou presente às infâmias de D. Fernando, e se
deteve aguardando o sim de Lucinda; sou o que não teve ânimo para esperar o desfecho do desmaio
dela e aguardar o que resultaria do papel que lhe acharam no seio. Faltou-me valor para tanto
padecimento junto; fugi da casa descorçoado, deixei a um hospedeiro meu uma carta a Lucinda para
lhe ser entregue, e corri para estas soledades determinado em acabar nelas a existência, que desde
aquele instante fiquei aborrecendo como inimiga mortal. Não aprouve porem à sorte livrar-me dela;
contentou-se com tirar-me o juízo; foi talvez a sua ideia que eu sobrevivesse para a boa ventura que
hoje tive em dar convosco, pois, sendo verdade, como acredito, o que nos haveis contado, ainda não
era impossível, que a ambos nós nos reservasse Deus melhor êxito nos nossos desastres, do que nós
supomos; porquanto, não podendo Lucinda casar com D. Fernando por ser minha, nem D. Fernando
com ela por ser vosso, tendo ela manifestado tão solenemente a verdade, bem podemos esperar que
a Providência nos restitua ainda o que nos pertence por direito incontroverso. Uma vez que temos
esta luz no futuro, e esta esperança não remota, nem fundada em quimeras, suplico-vos, senhora,
que mais acertadamente se encaminhem os vossos honrados pensamentos; outro tanto farei eu da
minha parte; sujeito-me a esperar por melhor fortuna. À fé de cavaleiro e cristão vos juro não vos
desamparar enquanto vos não veja em poder de D. Fernando; juro mais, que, se com razões o não
puder trazer ao conhecimento do que vos deve, usarei então da licença que me dá o ser cavalheiro, e
poder com justo motivo desafiá-lo pela sem-razão que vos faz, sem me lembrar então dos meus
agravos particulares, cuja vingança deixarei por conta do céu; na terra só os vossos me importam.
Com o que a Cardênio ouviu, acabou Dorotéia de se maravilhar, e por não atinar com agradecer
tamanhos oferecimentos, quis beijar-lhe os pés, no que ele não consentiu.
Respondeu entre ambos o licenciado, e aprovou a boa resolução de Cardênio; sobretudo lhes rogou,
aconselhou, e persuadiu que se fossem com ele à sua aldeia, onde se poderiam refazer de todo o
necessário, e depois se entenderia no procurar a D. Fernando, ou no levar-se Dorotéia a seus pais,
ou no que mais conveniente parecesse. Agradeceram-lhe Cardênio e Dorotéia, e lhe aceitaram o
prometido favor.
O barbeiro, que a tudo tinha estado suspenso e silencioso, fez também a sua boa prática, e se
ofereceu, com tão boa vontade como o cura, para tudo em que os pudesse servir. Contou em breves
termos a causa que os ali trouxera, e bem assim a estranha loucura de D. Quixote, acrescentando
que estavam esperando pelo escudeiro, que tinha ido à sua procura.
Deslizou na memória a Cardênio, como por sonhos, a pendência que entre ele e D. Quixote
houvera, e contou-a aos circunstantes; mas o que não atinou a explicar foi o peguilho da desavença.
Nisto ouviram vozes, e conheceram serem de Sancho Pança, o qual, por não ter achado o cura e o
barbeiro onde os deixara, vinha dando aqueles apupos de chamamento. Saíram-lhe ao encontro; e,
perguntando-lhe por D. Quixote, Sancho lhes disse como o encontrara em fralda de camisa, fraco,
amarelo, morto de fome e suspirando pela sua senhora Dulcinéia; e, apesar dele Sancho ter dito que
lhe mandava ela que saísse donde estava, e se fosse a Toboso, onde ela o ficava esperando, a sua
resposta fora que estava firme em não aparecer perante a sua formosura, sem primeiro ter feito
façanhas que o tornassem merecedor da sua graça; que, se tal cisma fosse por diante, corria perigo
de não chegar a Imperador, como estava obrigado, nem sequer a Arcebispo, que era o menos que
poderia ser; e portanto vissem o que se podia fazer para o desencovarem dali.
Respondeu-lhe o licenciado que se não afligisse, que eles, bom ou mau grado, o fariam sair. Contou
logo a Cardênio e a Dorotéia o que haviam ideado para remédio de D. Quixote, pelo menos para o
restituírem a sua casa.
Dorotéia acudiu logo, dizendo que ela representaria a donzela necessitada melhor que o barbeiro,
até porque tinha ali vestidos para fazer esse papel mui ao natural, e deixassem por sua conta o
representar a contento tudo que fosse preciso para se levar avante o empenho, pois ela era muito
lida em livros de cavalarias, e sabia perfeitamente o falar das donzelas penadas, quando suplicavam
dons aos andantes cavaleiros.
— Belo! nada mais é preciso — disse o cura; — é pormos já isso em obra. Não há dúvida, tenho
por mim a sorte, pois, quando menos o pensávamos, se vos começa a abrir caminho para vosso
remédio, meus senhores, e a nós também para se efetuar o nosso empenho.
Dorotéia tirou logo da trouxa uma saia inteira de telilha rica, e uma mantilha de outra vistosa
fazenda verde; e de um cofrezinho um colar e outras joias; com o que repentinamente se adornou,
por modo que não parecia senão uma grande e opulenta dama. Disse que tudo aquilo tinha ela
trazido de sua casa para o que desse e viesse, e que nunca até ali se lhe tinha oferecido necessidade
de o empregar.
A todos encantou a sua muita graça, donaire e gentileza, inteirados unanimemente da falta de gosto
de D. Fernando, que tantos primores desprezava; mas quem mais se admirou foi Sancho Pança, por
lhe parecer (o que era verdade), que nunca em dias de vida tinha visto perfeição igual, e perguntou
ao cura quem vinha a ser aquela tão garbosa senhora, e que andaria ela buscando por aqueles
andurriais.
— Esta formosa senhora — respondeu o cura — é, Sancho irmão, sem tirar nem pôr, a herdeira por
linha reta de varão do grande reino de Micomicão, a qual vem à procura de vosso amo para lhe
pedir um dom, que vem a ser: desfazer-lhe um torto e agravo que um malvado gigante lhe fez; e, em
consequência da fama de bom cavaleiro que vosso amo já ganhou por todo o mundo, veio de Guiné
com o empenho de o achar.
— Ditosa busca e ditoso achado! — exclamou Sancho Pança — principalmente se meu amo houver
a boa sorte de desfazer esse tal agravo e endireitar esse torto, matando o excomungado gigante que
Vossa Mercê diz, que à fé que o há-de matar, se o encontra, salvo se for fantasma, que lá contra
fantasmas não tem meu amo poder algum. Mas uma coisa, além de outras, quero eu agora suplicar a
Vossa Mercê, senhor licenciado; e vem a ser que empregue quantos meios puder para que a meu
amo se não encaixe na cabeça o ser Arcebispo, que é de que eu tenho medo, e por isso lhe aconselhe
casar-se logo com esta Princesa; assim fica impossibilitado de receber ordens arcebispais, e com
facilidade chegará a Imperador e eu ao cabo do meu empenho. Já tenho meditado isto com a devida
atenção, e cá pelas minhas contas não me convém que meu amo seja Arcebispo, porque eu para a
Igreja não sirvo; sou casado; e andar agora a diligenciar dispensas para poder receber rendas
eclesiásticas, tendo, como tenho, mulher e filhos, seria um nunca acabar; e portanto, senhor, o fino é
que meu amo se receba o mais depressa que se possa com esta senhora, da qual por ora não sei a sua
graça, pelo que a não chamo pelo seu nome.
— Chama-se — respondeu o cura — a Princesa Micomicadela, porque, chamando-se o seu reino
Micomicão, claro está que ela se deve chamar assim.
— Está visto — respondeu Sancho — de muitos sei eu, que têm tomado o apelido e alcunha do
lugar onde nasceram; por exemplo: Pedro de Alcalá, João de Ubeda e Diogo de Valhadolid;
também se deve usar lá em Guiné as Rainhas tomarem o nome dos seus reinos.
— Por força — disse o cura — e enquanto ao casar-se o vosso amo, eu farei tudo que puder.
Do que Sancho ficou tão contente, como o cura pasmado da simpleza dele, e de ver como tinha
embutidos nos cascos não menores despautérios que o patrão, pois nenhuma dúvida punha em que
viria a ser Imperador.
Já Dorotéia estava sentada na mula do cura, o barbeiro com a barba de rabo de boi; e disseram a
Sancho que os encaminhasse para onde seu amo se achava, recomendando-lhe que não deixasse
conhecer a D. Quixote nem o licenciado nem o barbeiro, porque em os não conhecer ele é que
estava o busílis de vir o fidalgo a ser Imperador.
Nem o cura nem Cardênio quiseram acompanhar o rancho, para que D. Quixote se não recordasse
das testilhas que tivera com o desvairado moço; a presença do cura também não era necessária.
Deixaram pois ir adiante as principais figuras, e os dois foram seguindo a pé e com o seu vagar.
Ao apartarem-se ali, recordando o cura a Dorotéia o que havia de fazer, respondeu-lhe ela que disso
perdesse todo o cuidado, que tudo faria, ponto por ponto, como o pediam e pintavam os livros de
cavalaria.
Três quartos de légua teriam andado, quando descobriram a D. Quixote entre umas intrincadas
penhas, já vestido, mas ainda não armado. Assim que Dorotéia o avistou, e soube de Sancho ser o
próprio, fustigou com o chicote o seu palafrém, seguindo-a o bem barbado barbeiro. Ao chegarem
ao pé, atirou-se o improvisado escudeiro abaixo da mula, e foi para tomar nos braços a Dorotéia, a
qual, apeando-se com grande desembaraço, se foi lançar de joelhos às plantas de D. Quixote.
Forcejava ele para erguê-la; ela porém, sem consentir em levantar-se, lhe falou desta maneira:
— Não me levantarei daqui, ó valoroso cavaleiro, até que a vossa cortesia me não tenha outorgado
um dom, que redundará em crédito de vossa pessoa, e em proveito da mais desconsolada donzela
que o sol nunca viu. Se o valor do vosso forte braço se iguala à vossa imortal fama, obrigação vos
corre de favorecer à sem ventura, que de tão longes terras vem, ao cheiro do vosso famoso nome,
buscar-vos para reparo das suas desditas.
— Não vos responderei palavra, formosa senhora — replicou D. Quixote — nem ouvirei mais nada
da vossa pretensão, sem que primeiro vos levanteis.
— Não me levantarei, senhor — respondeu a afligida donzela — antes que a vossa cortesia me
outorgue o favor pedido.
— Eu vo-lo outorgo e concedo — respondeu D. Quixote — contanto que se não haja de cumprir em
detrimento e ofensa do meu Rei, da minha pátria, e daquela que do meu coração e liberdade tem as
chaves.
— Não será em prejuízo dos que dizeis, meu bom senhor — replicou a dolorida donzela.
Quando nisto iam, chegou-se Sancho ao ouvido de seu amo, e lhe disse em voz sumida:
— Bem pode Vossa Mercê, senhor meu, conceder-lhe o favor que ela pede, que é uma coisita de
nonada; é só matar a um mandrião dum gigante; e a que lhe pede é a alta Princesa Micomicadela,
Rainha do grande reino Micomicão da Etiópia.
— Seja quem for — respondeu D. Quixote — cumprirei o que sou obrigado e o que me dita a
consciência, segundo o que professado tenho.
continua na página 176...
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Leia também:
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Prólogo
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - Ao Livro de D. Quixote de la Mancha
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L1 Capitulo I
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L2 Capitulo IX
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XV
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVI
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XVII
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XXIX(a)
D. Quixote - Cervantes Vol 1 - 1ª Parte L3 Capitulo XXIX(b)
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D. QUIXOTE
VOL. I
Cervantes
D. Quixote de La Mancha — Primeira Parte
(1605)
Miguel de Cervantes [Saavedra]
(1547-1616)
Tradução:
Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (1809- 1876) Conde de Azevedo
Antônio Feliciano de Castilho (1800-1875)
Visconde de Castilho
Edição
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Fonte Digital
Digitalização da edição em papel de Clássicos Jackson, Vol. VIII Inclusões das partes faltantes confrontadas com a edição em espanhol da eBooksBrasil.com
(1999, 2005)
Copyright
Autor: 1605, 2005 Miguel de Cervantes
Tradução Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho
António Feliciano de Castilho
Capa: Honoré-Victorin Daumier (1808-1879)
Retrato de Cervantes: Eduardo Balaca (1840-1914)
Edição: 2005 eBooksBrasil.com
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