Simone de Beauvoir
51. Fatos e Mitos
V
STENDHAL OU O ROMANESCO DO VERDADEIRO
continuando...
Stendhal, desde infância, amou as mulheres sensualmente; projetou nelas as aspirações de sua adolescência; imaginava-se de bom grado salvando de algum perigo uma bela desconhecida e conquistando-lhe o amor. Chegando a Paris, o que desejava mais ardentemente era "uma mulher encantadora; nós nos adoraremos, ela conhecerá minha alma"... Velho, escreve na poeira as iniciais das mulheres que mais amou. "Creio que foi o devaneio que preferi a tudo", confia-nos ele. E são imagens de mulheres que lhe alimentaram os sonhos; a lembrança delas anima as paisagens. "A linha de rochedos aproximando-se de Arbois, creio, e vindo de Dôle pela estrada principal, foi para mim uma imagem sensível e evidente da alma de Métilde." A música, a pintura, a arquitetura, tudo o que amou, amou-o com uma alma de amante infeliz; quando passeia em Roma, a cada página, uma mulher aparece; nas saudades, nos desejos, nas tristezas, nas alegrias que elas suscitaram-lhe, conheceu o gosto do próprio coração; a elas é que deseja como juízes. Frequenta-lhes os salões, procura mostrar-se brilhante aos seus olhos, deveu-lhes suas maiores felicidades, suas penas; foram sua principal ocupação. Prefere seu amor a toda amizade e sua amizade à dos homens; mulheres inspiram seus livros, figuras de mulheres os povoam; é em grande parte para elas que escreve. "Corro o risco de ser lido em 1900 pelas almas que amo, as Mme Roland, as Mélanie Guibert..." Foram a própria subsistência de sua vida. De onde lhe veio esse privilégio?
Esse terno amigo das mulheres, e precisamente porque as ama em sua verdade, não crê no mistério feminino; nenhuma essência define de uma vez por todas a mulher; a ideia de um "eterno feminino" parece-lhe pedante e ridículo. "Pedantes repetem há dois mil anos que as mulheres têm o espírito mais vivo e os homens, mais solidez; que as mulheres têm mais delicadeza nas idéias e os homens, maior capacidade de atenção. Um basbaque de Paris que passeava outrora pelos jardins de Versalhes concluía, do que via, que as árvores nascem podadas." As diferenças que se observam entre os homens e as mulheres refletem as de sua situação. Por exemplo, por que não seriam as mulheres mais romanescas do que seus amantes? "Uma mulher com seu bastidor de bordar, trabalho insípido que só ocupa as mãos, pensa no amante, enquanto este galopando no campo com seu esquadrão é preso se faz um movimento em falso." Acusam igualmente as mulheres de carecerem de bom senso. "As mulheres preferem as emoções à razão; é muito simples: como em virtude de nossos costumes vulgares elas não são encarregadas de nenhum negócio na família, a razão nunca lhes é útil... Encarregai vossa mulher de tratar de vossos interesses com os arrendatários de duas de vossas propriedades; aposto que as contas serão mais bem feitas do que por vós." Se a História revela-nos tão pequeno número de gênios femininos é porque a sociedade as priva de quaisquer meios de expressão: "Todos os gênios que nascem mulheres (1) estão perdidos para a felicidade do público; desde que o acaso lhes dê os meios de se revelarem, vós as vereis desenvolver os mais difíceis talentos." O pior handicap que devem suportar é a educação com que as embrutecem; o opressor esforça-se sempre por diminuir os que oprime; é propositadamente que o homem recusa às mulheres quaisquer possibilidades. "Deixemos ociosas nelas as qualidades mais brilhantes e mais ricas de felicidade para elas mesmas e para nós." Aos dez anos, a menina é mais fina e viva do que seu irmão; com vinte, o moleque é homem de espírito e a moça "uma grande idiota desajeitada, tímida e com medo de urna aranha"; o erro está na formação que teve. Fora necessário dar à mulher exatamente a mesma instrução que se dá aos rapazes. Os antifeministas objetam que as mulheres cultas e inteligentes são uns monstros: todo o mal vem do fato de que estas permanecem ainda excepcionais; se pudessem todas ter acesso à cultura tão naturalmente como os homens, disso aproveitariam com a mesma naturalidade. Depois de as ter mutilado, escravizam-nas a leis antinaturais. Casadas contra sua vontade, querem que sejam fiéis e o próprio divórcio lhes é censurado como uma má conduta. Obrigam à ociosidade bom número delas, quando não há felicidade fora do trabalho. Essa condição indigna Stendhal e ele vê nela a fonte de todos os defeitos que se censuram às mulheres. Elas não são nem anjos nem demônios, nem esfinges, são seres humanos que costumes imbecis reduziram a uma semi-escravidão.
Esse terno amigo das mulheres, e precisamente porque as ama em sua verdade, não crê no mistério feminino; nenhuma essência define de uma vez por todas a mulher; a ideia de um "eterno feminino" parece-lhe pedante e ridículo. "Pedantes repetem há dois mil anos que as mulheres têm o espírito mais vivo e os homens, mais solidez; que as mulheres têm mais delicadeza nas idéias e os homens, maior capacidade de atenção. Um basbaque de Paris que passeava outrora pelos jardins de Versalhes concluía, do que via, que as árvores nascem podadas." As diferenças que se observam entre os homens e as mulheres refletem as de sua situação. Por exemplo, por que não seriam as mulheres mais romanescas do que seus amantes? "Uma mulher com seu bastidor de bordar, trabalho insípido que só ocupa as mãos, pensa no amante, enquanto este galopando no campo com seu esquadrão é preso se faz um movimento em falso." Acusam igualmente as mulheres de carecerem de bom senso. "As mulheres preferem as emoções à razão; é muito simples: como em virtude de nossos costumes vulgares elas não são encarregadas de nenhum negócio na família, a razão nunca lhes é útil... Encarregai vossa mulher de tratar de vossos interesses com os arrendatários de duas de vossas propriedades; aposto que as contas serão mais bem feitas do que por vós." Se a História revela-nos tão pequeno número de gênios femininos é porque a sociedade as priva de quaisquer meios de expressão: "Todos os gênios que nascem mulheres (1) estão perdidos para a felicidade do público; desde que o acaso lhes dê os meios de se revelarem, vós as vereis desenvolver os mais difíceis talentos." O pior handicap que devem suportar é a educação com que as embrutecem; o opressor esforça-se sempre por diminuir os que oprime; é propositadamente que o homem recusa às mulheres quaisquer possibilidades. "Deixemos ociosas nelas as qualidades mais brilhantes e mais ricas de felicidade para elas mesmas e para nós." Aos dez anos, a menina é mais fina e viva do que seu irmão; com vinte, o moleque é homem de espírito e a moça "uma grande idiota desajeitada, tímida e com medo de urna aranha"; o erro está na formação que teve. Fora necessário dar à mulher exatamente a mesma instrução que se dá aos rapazes. Os antifeministas objetam que as mulheres cultas e inteligentes são uns monstros: todo o mal vem do fato de que estas permanecem ainda excepcionais; se pudessem todas ter acesso à cultura tão naturalmente como os homens, disso aproveitariam com a mesma naturalidade. Depois de as ter mutilado, escravizam-nas a leis antinaturais. Casadas contra sua vontade, querem que sejam fiéis e o próprio divórcio lhes é censurado como uma má conduta. Obrigam à ociosidade bom número delas, quando não há felicidade fora do trabalho. Essa condição indigna Stendhal e ele vê nela a fonte de todos os defeitos que se censuram às mulheres. Elas não são nem anjos nem demônios, nem esfinges, são seres humanos que costumes imbecis reduziram a uma semi-escravidão.
(1) O grifo é de Stendhal.
É precisamente porque são umas oprimidas, que as melhores se preservam das taras que pesam sobre seus opressores; não são em si nem inferiores nem superiores ao homem; mas, por uma curiosa inversão, sua situação infeliz as favorece. Sabe-se quanto Stendhal detesta o espírito de gravidade: dinheiro, honrarias, prestígios, poder parecem-lhes tristes ídolos; em sua imensa maioria, os homens alienam-se em proveito deles; o pedante, o importante, o burguês, o marido abafam em si todo impulso de vida e de verdade; armados de preconceitos, de sentimentos convencionais, obedientes às rotinas sociais, habita-os o vazio; um mundo povoado dessas criaturas sem alma é um deserto de tédio. Há, infelizmente, muitas mulheres que vivem atoladas nesses melancólicos pantanais; são bonecas de "ideias estreitas e parisienses" ou devotas hipócritas; Stendhal sente uma "repugnância mortal pelas mulheres honestas e a hipocrisia que lhes é indispensável"; elas emprestam a suas ocupações frívolas a mesma gravidade que seus maridos, mostram-se estúpidas por educação, invejosas, vaidosas, palradoras, más por ociosidade, frias, secas, pretensiosas, maléficas, povoam Paris e a província; as vemos formigar por trás das nobres figuras de uma Mme de Rênal, de uma Mme de Chasteller. A que Stendhal pintou com mais atento ódio é, sem dúvida, Mme Grandet de que fez o negativo exato de uma Mme Roland, de uma Métilde. Bela mas sem expressão, desdenhosa e sem encanto, ela intimida por sua "virtude célebre", mas não conhece o verdadeiro pudor que vem da alma; cheia de admiração por si mesma, imbuída de seu papel, só sabe copiar, de fora, a grandeza; no fundo é vulgar e vil; "não tem caráter. . . aborrece-me", pensa Leuwen. "Perfeitamente sensata, preocupada com o êxito de seus projetos", toda sua ambição é fazer do marido um ministro; "seu espírito era árido"; prudente, conformista, sempre evitou o amor; é incapaz de um impulso generoso; quando a paixão se introduz nessa alma seca, queima-a sem a iluminar.
Basta inverter essa imagem para descobrir o que Stendhal pede às mulheres; primeiramente, não se deixarem cair nas armadilhas da gravidade; pelo fato de as coisas pretensamente importantes encontrarem-se fora de seu alcance, correm, menos do que os homens, o risco de se alienarem a elas; têm maiores possibilidades de preservar essa naturalidade, essa ingenuidade, essa generosidade que Stendhal coloca mais alto do que qualquer outro mérito; o que ele aprecia nelas é isso que chamaríamos hoje autenticidade: é o traço comum a todas as mulheres que ele amou ou inventou com amor. São todas seres livres e verdadeiros. Sua liberdade exibe-se em algumas de uma maneira brilhante: Ângela Pietragrua, "puta sublime, à italiana, à Lucrécia Bórgia" ou Mme Azur, "'puta à Du Barry. . . uma dessas francesas menos bonecas que encontrei" revolucionam abertamente os costumes. Lamiel ri-se das convenções, dos costumes, das leis; a Sanseverina atira-se com ardor à intriga e não recua diante do crime. É pelo vigor de seu espírito que outras se erguem acima do vulgar. Assim é Menta, assim é Mathilde de la Mole que critica, difama, despreza a sociedade que a cerca e quer distinguir-se dela. Em outras ainda, a liberdade assume formas negativas; o que há de notável em Mme de Chasteller é seu desapego por tudo o que é secundário; obediente às vontades do pai e mesmo a suas opiniões, nem por isso deixa de contestar os valores burgueses com a indiferença que lhe censuram como puerilidade e é a fonte de sua alegria despreocupada; Clélia Conti distingue-se também por sua reserva; o baile, os divertimentos habituais das moças são-lhe indiferentes; ela parece sempre distante "ou por desprezo do que a cerca ou por saudade de alguma quimera ausente"; julga o mundo e indigna-se com tanta baixeza. É em Mme de Renal que a independência da alma se acha mais profundamente escondida; ignora, ela própria, que se resigna mal a seu destino; sua extrema delicadeza e aguda sensibilidade é que manifestam sua repugnância pela vulgaridade de seu meio; não tem hipocrisia; conservou um coração generoso, capaz de emoções violentas e aprecia a felicidade; do fogo que mina dentro dela mal se sente o calor de fora, mas bastará um sopro para que ela se incendeie inteiramente. Essas mulheres são vivas, muito simplesmente; sabem que a fonte dos valores verdadeiros não está nas coisas exteriores e sim nos corações; é o que faz o encanto do mundo em que habitam; rechaçam-lhe o tédio pelo simples fato de que nele estão presentes com seus sonhos, desejos, prazeres, emoções e invenções. A Sanseverina, essa "alma ativa", teme o tédio mais do que a morte. Estagnar no tédio "é impedir-se de morrer, diz, não é viver"; ela está "sempre apaixonada por alguma coisa, sempre agindo, alegre também". Inconscientes, pueris ou profundas, alegres ou graves, ousadas ou secretas, todas recusam o pesado sono em que a humanidade se atola. E essas mulheres que souberam preservar por nada sua liberdade, logo que encontrarem um objeto digno delas, elevar-se-ão pela paixão até o heroísmo; sua força de alma e energia traduzem a pureza selvagem de uma participação total.
Mas somente a liberdade não bastaria para dotá-las de tantos atrativos romanescos: uma simples liberdade reconhece-se na estima mas não na emoção; o que comove é seu esforço por se realizar através dos obstáculos que a freiam, e esse esforço é nas mulheres tanto mais patético quanto mais difícil a luta. A vitória conquistada contra as coerções exteriores já basta para encantar Stendhal; em Chroniques italiennes, ele encerra suas heroínas no fundo dos conventos, ou no palácio de um esposo ciumento: cumpre-lhes inventar mil ardis para se juntarem a seus amantes; portas escondidas, escadas de corda, arcas sangrentas, raptos, sequestres, assassínios, os ímpetos da paixão e da desobediência são servidos por uma engenhosidade em que se empregam todos os recursos do espírito; a morte, as torturas ameaçadoras dão mais brilho ainda às audácias das almas arrebatadas que nos pinta. Mesmo nas obras mais maduras, Stendhal permanece sensível a esse romanesco aparente: é a figura manifesta do romanesco que nasce do coração; não se pode distingui-los um do outro, como não se pode separar uma boca de seu sorriso. Clélia reinventa o amor inventando o alfabeto que lhe permite corresponder-se com Fabrice; a Sanseverina é-nos descrita como "uma alma sempre sincera que nunca agiu com prudência, que se entrega inteiramente à impressão do momento"; é quando intriga, quando envenena o príncipe e que inunda Parma que essa alma se descobre a nós: não é outra coisa senão a aventura sublime e louca que quis viver. A escada que Mathilde de la Mole apóia à janela nada tem de um acessório de teatro: é, numa forma tangível, sua imprudência orgulhosa, seu pendor pelo extraordinário, sua coragem provocante. As qualidades dessas almas não se descobririam se elas não estivessem cercadas de inimigos: os muros da prisão, a vontade de um soberano, a severidade de uma família.
continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado
O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo
O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe
O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia
O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...
O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente
O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo
O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)
O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)
O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)
O Segundo Sexo - 46. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (2)
O Segundo Sexo - 47. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (1)
O Segundo Sexo - 48. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (2)
O Segundo Sexo - 49. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (1)
O Segundo Sexo - 50. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (2)
O Segundo Sexo - 51. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (2)
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