terça-feira, 22 de outubro de 2019

O Segundo Sexo - 52. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (2)

Simone de Beauvoir



52. Fatos e Mitos




V




STENDHAL OU O ROMANESCO DO VERDADEIRO  



continuando...



Entretanto, os obstáculos mais difíceis de transpor são os que cada um encontra em si mesmo: é então que a aventura da liberdade se faz mais incerta, mais pungente, mais excitante, É evidente que a simpatia de Stendhal por suas heroínas é tanto maior quanto mais estreitamente presas se encontram. Sem dúvida, ele aprecia as prostitutas, sublimes ou não, que uma vez por todas espezinharam as convenções; mas ele ama mais ternamente Métilde freada por seus escrúpulos e seu pudor. Lucien Leuwen compraz-se ao lado dessa mulher liberta que é Mme de Hocquincourt: mas é a Mme Chasteller, casta, reservada, hesitante que ele ama com paixão; ele admira a alma altiva da Sanseverina que não recua diante de nada, mas prefere Clélia e é a moça que conquista o coração de Fabrice. E Mme de Renal, atada por sua altivez, seus preconceitos, sua ignorância, é talvez de todas as mulheres criadas por Stendhal a que mais o espanta. Ele situa de bom grado suas heroínas na província, em um meio estreito, sob o guante de um marido ou um pai imbecil; agrada-lhe que sejam incultas e até imbuídas de idéias falsas. Mme de Renal e Mme de Casteller são ambas obstinadamente legitimistas; a primeira é de espírito tímido e sem nenhuma experiência, a segunda de inteligência brilhante, mas cujo valor desconhece; não são elas, portanto, responsáveis por seus erros mas, antes, vítimas deles tanto quanto das instituições e dos costumes; e é do erro que jorra o romanesco, como a poesia nasce do malogro. Um espírito lúcido que decide de seus atos com pleno conhecimento de causa, nós o aprovamos ou censuramos secamente; ao passo que é com temor, piedade, ironia, amor que admiramos a coragem e os ardis de um coração generoso procurando seu caminho nas trevas. É porque elas são mistificadas, que vemos florescerem nas mulheres virtudes inúteis e encantadoras tais como o pudor, o orgulho, a delicadeza exagerada; em certo sentido são defeitos; engendram mentiras, suscetibilidades, cóleras, mas explicam-se facilmente pela situação em que são colocadas as mulheres; estas são levadas a pôr seu orgulho nas pequenas coisas, ou, pelo menos, "nas coisas que só têm importância pelo sentimento", porque todos os objetos "ditos importantes" acham-se fora de seu alcance; seu pudor resulta da dependência em que se acham: porque lhes é proibido dar o que podem em seus atos, é seu próprio ser que elas põem em jogo; parece--Ihes que a consciência de outrem e em particular a de seus amantes as revelam em sua verdade; têm medo disso e tentam escapar-lhes, e, em sua fuga, suas hesitações, suas revoltas, e até em suas mentiras, exprime-se uma autêntica preocupação do valor; e é o que as torna respeitáveis. Mas esse sentimento exprime-se com embaraço, e mesmo com má-fé, e é o que as torna comoventes e até discretamente cômicas. É quando a liberdade cai em suas próprias armadilhas e trapaceia com ela mesma que é mais profundamente humana e portanto, aos olhos de Stendhal, mais atraente. As mulheres de Stendhal são patéticas quando seu coração lhes propõe problemas inesperados: nenhuma lei, nenhuma receita, nenhum raciocínio, nenhum exemplo vindo de fora pode guiá-las; cumpre que decidam sozinhas: esse abandono é o momento extremo da liberdade. Clélia é educada com ideias liberais, é lúcida e sensata: mas opiniões aprendidas, justas ou não, não são de nenhum auxílio num conflito moral; Mme de Renal ama Julien a despeito de sua moral, Clélia salva Fabrice contra sua razão. Há, nos dois casos, a mesma superação de todos os valores admitidos. É essa ousadia que exalta Stendhal; mas ela é tanto mais comovente quanto mal ousa confessar-se. Torna-se ainda mais natural, mais autêntica, mais espontânea. Em Mme de Renal, a ousadia esconde-se atrás da inocência: por não conhecer o amor, ela não sabe reconhecê-lo e cede sem resistência: dir-se-ia que por ter vivido nas trevas, não tem defesa diante da fulgurante luz da paixão; acolhe-a deslumbrada até contra Deus, contra o inferno. Quando essa fogueira se apaga, ela recai nas trevas que os maridos e os padres governam; não tem confiança em seus próprios juízos, mas a evidência a fulmina; logo que encontra Julien entrega-lhe de novo a alma. Seus remorsos, a carta que o confessor lhe arranca, permitem medir que distância essa alma ardente e sincera tinha de vencer para se arrancar à prisão em que a encerrava a sociedade e ascender ao céu da felicidade. O conflito é mais consciente em Clélia: ela hesita entre sua lealdade para com o pai e sua piedade amorosa; ela procura razões para si mesma; o triunfo dos valores em que Stendhal acredita parecer-lhe tanto mais evidente quanto é sentido como uma derrota pelas vítimas de uma civilização hipócrita; e ele se encanta vendo-as empregarem a malícia e a má-fé para fazer prevalecer a verdade da paixão e da felicidade contra as mentiras em que elas creem: Clélia prometendo à Madona não mais ver Fabrice e aceitando durante dois anos seus beijos, seus amplexos, à condição de manter os olhos fechados, é a um tempo ridículo e perturbador. É com a mesma ironia que Stendhal considera as hesitações de Mme de Chasteller e as incoerências de Mathilde de la Mole; tantas idas e voltas, tantos meandros e escrúpulos, tantas vitórias e derrotas secretas para alcançar fins simples e legítimos, constitui para ele a mais adorável das comédias; há comicidade nesses dramas porque a atriz é a um tempo juiz e parte, porque ela é sua própria vítima, porque ela se impõe caminhos complicados, quando bastaria um decreto para que o nó górdio fosse cortado; entretanto eles evidenciam a mais respeitável preocupação que possa torturar uma alma nobre: ela quer permanecer digna de sua própria estima; ela coloca seu próprio sufrágio mais alto que o dos outros e com isso se realiza como um absoluto. Esses debates solitários, sem eco, têm mais gravidade do que uma crise ministerial; quando ela se pergunta se vai ou não corresponder ao amor de Lucien Leuwen, Mme de Chasteller julga a si mesma e ao mundo: Pode-se ter confiança em outrem? Pode-se confiar no próprio coração? Qual o valor do amor e dos juramentos humanos? É loucura ou generosidade acreditar e amar? Essas interrogações põem em dúvida o próprio sentido da vida, a vida de cada um e de todos. O homem dito sério é na realidade fútil porque aceita justificações convencionais para sua vida; ao passo que uma mulher apaixonada e profunda revisa a cada instante os valores estabelecidos; conhece a constante tensão de uma liberdade sem apoio. Com isso, sente-se sem cessar em perigo: em um momento pode tudo ganhar ou tudo perder. É esse risco assumido na inquietação que dá à sua história as cores de uma aventura heroica. E a aposta é a maior que pode existir: o próprio sentido dessa existência, que é a parte de cada um, sua única parte. A aventura de Mina de Vanghel pode em certo sentido parecer absurda; mas ela empenha toda uma ética. "Foi sua vida um erro de cálculo? Sua felicidade durara oito meses. Era uma alma demasiado ardente para se contentar com o real da vida." Mathilde de la Mole é menos sincera do que Clélia ou Mme de Chasteller; ela regula seus atos mais pela ideia que faz de si mesma do que pela evidência do amor, da felicidade; haverá mais orgulho, mais grandeza em se defender de que em se entregar, em se humilhar do que em resistir a quem se ama? Ela acha-se só no meio dessas dúvidas e arrisca essa estima de si mesma de que mais faz questão na vida. É a ardente procura das verdadeiras razões de viver através das trevas da ignorância, dos preconceitos, das mistificações, na luz vacilante e febril da paixão, é o risco infinito da felicidade ou da morte, da grandeza ou da vergonha que confere a esses destinos de mulher sua glória romanesca.

A mulher, bem entendido, ignora a sedução que tem; contemplar-se a si mesma, desempenhar um papel é sempre uma atitude inautêntica; Mme Grandet comparando-se a Mme Roland prova com isso mesmo que não se assemelha a ela. Se Mathilde de la Mole permanece atraente é porque se embrulha em suas comédias e é vítima, amiúde, de seu coração, nos momentos em que se acredita governá-lo; ela nos comove na medida em que escapa à própria vontade. Mas as heroínas mais puras não têm consciência de si mesmas. Mme de Renal ignora sua graça, como Mme de Chasteller sua inteligência. Nisso reside uma das alegrias profundas do amante com quem o autor e o leitor se identificam: ele é a testemunha através da qual essas riquezas secretas são reveladas; essa vivacidade que Mme de Renal exibe longe dos olhares dos outros, esse espírito "vivo, versátil, profundo", que desconhece o ambiente de Mme de Chasteller e que ele é o único a admirar. E ainda que outros apreciem o espírito de Sanseverina, é ele quem penetra mais fundo na alma dela. Diante da mulher, o homem saboreia o prazer da contemplação; embriaga-se dela como de uma paisagem ou de um quadro; ela canta em seu coração e matiza o céu. Essa revelação revela-o a si mesmo: não se pode compreender a delicadeza das mulheres, sua sensibilidade, seu ardor sem se construir uma alma delicada, sensível, ardente; os sentimentos femininos criam um mundo de matizes, de exigências, cuja descoberta enriquece o amante. Perto de Mme de Renal, Julien torna-se diferente do ambicioso que resolve ser, faz-se de novo. Se o homem tem pela mulher apenas um desejo superficial, achará divertido seduzi-la. Mas é o verdadeiro amor que transfigura a vida: "O amor de Werther abre a alma. . . ao sentimento e ao gozo do belo sob qualquer forma que se apresente, ainda que sob um hábito de burel. Faz que se encontre a felicidade até sem riquezas..." "É um novo objetivo na vida a que tudo se prende e que muda a face de tudo. O amor-paixão joga aos olhos de um homem toda a natureza com seus aspectos sublimes como uma novidade inventada ontem." O amor quebra a rotina quotidiana, afasta o tédio, esse tédio em que Stendhal vê um mal tão profundo porque é a ausência de todas as razões de viver ou morrer; o amante tem um fim e isso basta para que cada dia se torne uma aventura. Que prazer para Stendhal passar três dias escondido na adega de Menta! As escadas de corda, as arcas sangrentas traduzem esse gosto pelo extraordinário em seus romances. O amor, isto é, a mulher, revela os verdadeiros fins da existência: o belo, a felicidade, o frescor das sensações e do mundo. Arranca a alma ao homem e dá-lhe assim a posse dela: o amante conhece a mesma tensão, os mesmos riscos que sua amante e experimenta-se mais autenticamente do que no curso de toda uma carreira calculada. Quando hesita ao pé da escada erguida por Mathilde, Julien põe em jogo todo seu destino: é nesse instante que revela sua verdadeira medida. É através das mulheres, sob sua influência, reagindo às condutas delas que Julien, Fabrice, Lucien fazem o aprendizado do mundo e de si mesmos. Provação, recompensa, juiz, amiga, a mulher é realmente em Stendhal o que Hegel em dado momento se viu tentado a considerá-la: essa consciência outra que, no reconhecimento recíproco, dá ao sujeito outro a mesma verdade que recebe dele. O casal feliz que se reconhece no amor desafia o universo e o tempo; basta-se, realiza o absoluto.

Mas isso pressupõe que a mulher não é simples alteridade; é, ela própria, sujeito. Nunca Stendhal se restringe a descrever suas heroínas em função de seus heróis: dá-lhes um destino próprio. Tentou uma empresa mais rara e que nenhum romancista, creio, jamais se propôs: projetou-se ele próprio numa personagem feminina. Não se debruça sobre Lamiel como Marivaux sobre Marianne, ou Richardson sobre Clarisse Harlow: desposa-lhe o destino como desposara o destino de Julien. Por causa disso mesmo, a figura de Lamiel permanece um pouco teórica, mas é singularmente significativa. Stendhal ergueu em torno da moça todos os obstáculos imagináveis: ela é pobre, camponesa, grosseiramente educada por pessoas imbuídas de todos os preconceitos; mas ela afasta de seu caminho todas as barreiras morais a partir do dia em que compreende o alcance destas simples palavras: "é tolo". A liberdade de seu espírito permite--lhe reconsiderar todos os movimentos de sua curiosidade, de sua ambição, de sua alegria; diante de um coração tão resoluto, os obstáculos materiais não podem deixar de se renovar; seu único problema será conquistar, em um mundo medíocre, um destino feito sob medida. Ela devia realizar-se no crime e na morte; mas é também a sorte que aguarda Julien. Não há lugar para as grandes almas na sociedade tal qual é: homens e mulheres acham-se em pé de igualdade.

E notável que Stendhal seja a um tempo tão profundamente romanesco e tão decididamente feminista; habitualmente, os feministas são espíritos racionais que adotam, em todas as coisas, o ponto de vista do universal; mas é não somente em nome da liberdade em geral como também em nome da felicidade individual que Stendhal reclama a emancipação das mulheres. O amor nada terá a perder com isso, pensa ele; ao contrário, será tanto mais verdadeiro quanto, sendo a mulher um igual para o homem, poderá entendê-lo mais completamente. Sem dúvida, algumas das qualidades que apreciamos na mulher desaparecerão, mas seu valor provém da liberdade que nelas se exprime e essa liberdade manifestar-se-á de outras maneiras e o romanesco não se dissipará do mundo. Dois seres separados, colocados em situações diferentes, defrontando-se em sua liberdade e procurando a justificação da existência, um através do outro, viverão sempre uma aventura cheia de riscos e de promessas. Stendhal confia na verdade; desde que se fuja dela, morre-se vivo; mas onde ela brilha, brilham a beleza, a felicidade, o amor, uma alegria que traz em si sua justificação. Eis por que, tanto quanto as mistificações da gravidade, ele recusa a falsa poesia dos mitos. A realidade humana basta-lhe. A mulher a seus olhos é simplesmente um ser humano: os sonhos nada poderiam forjar de mais embriagante.


continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia

O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...

O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente

O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)

O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)

O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)

O Segundo Sexo - 46. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (2)

O Segundo Sexo - 47. Fatos e Mitos: Claudel e a  serva do Senhor (1)

O Segundo Sexo - 48. Fatos e Mitos: Claudel e a  serva do Senhor (2)

O Segundo Sexo - 49. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (1)

O Segundo Sexo - 50. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (2)

O Segundo Sexo - 51. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (1)

O Segundo Sexo - 53. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (3)

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