Simone de Beauvoir
52. Fatos e Mitos
V
STENDHAL OU O ROMANESCO DO VERDADEIRO
continuando...
A mulher, bem entendido, ignora a sedução que tem; contemplar-se a si mesma, desempenhar um papel é sempre uma atitude inautêntica; Mme Grandet comparando-se a Mme Roland prova com isso mesmo que não se assemelha a ela. Se Mathilde de la Mole permanece atraente é porque se embrulha em suas comédias e é vítima, amiúde, de seu coração, nos momentos em que se acredita governá-lo; ela nos comove na medida em que escapa à própria vontade. Mas as heroínas mais puras não têm consciência de si mesmas. Mme de Renal ignora sua graça, como Mme de Chasteller sua inteligência. Nisso reside uma das alegrias profundas do amante com quem o autor e o leitor se identificam: ele é a testemunha através da qual essas riquezas secretas são reveladas; essa vivacidade que Mme de Renal exibe longe dos olhares dos outros, esse espírito "vivo, versátil, profundo", que desconhece o ambiente de Mme de Chasteller e que ele é o único a admirar. E ainda que outros apreciem o espírito de Sanseverina, é ele quem penetra mais fundo na alma dela. Diante da mulher, o homem saboreia o prazer da contemplação; embriaga-se dela como de uma paisagem ou de um quadro; ela canta em seu coração e matiza o céu. Essa revelação revela-o a si mesmo: não se pode compreender a delicadeza das mulheres, sua sensibilidade, seu ardor sem se construir uma alma delicada, sensível, ardente; os sentimentos femininos criam um mundo de matizes, de exigências, cuja descoberta enriquece o amante. Perto de Mme de Renal, Julien torna-se diferente do ambicioso que resolve ser, faz-se de novo. Se o homem tem pela mulher apenas um desejo superficial, achará divertido seduzi-la. Mas é o verdadeiro amor que transfigura a vida: "O amor de Werther abre a alma. . . ao sentimento e ao gozo do belo sob qualquer forma que se apresente, ainda que sob um hábito de burel. Faz que se encontre a felicidade até sem riquezas..." "É um novo objetivo na vida a que tudo se prende e que muda a face de tudo. O amor-paixão joga aos olhos de um homem toda a natureza com seus aspectos sublimes como uma novidade inventada ontem." O amor quebra a rotina quotidiana, afasta o tédio, esse tédio em que Stendhal vê um mal tão profundo porque é a ausência de todas as razões de viver ou morrer; o amante tem um fim e isso basta para que cada dia se torne uma aventura. Que prazer para Stendhal passar três dias escondido na adega de Menta! As escadas de corda, as arcas sangrentas traduzem esse gosto pelo extraordinário em seus romances. O amor, isto é, a mulher, revela os verdadeiros fins da existência: o belo, a felicidade, o frescor das sensações e do mundo. Arranca a alma ao homem e dá-lhe assim a posse dela: o amante conhece a mesma tensão, os mesmos riscos que sua amante e experimenta-se mais autenticamente do que no curso de toda uma carreira calculada. Quando hesita ao pé da escada erguida por Mathilde, Julien põe em jogo todo seu destino: é nesse instante que revela sua verdadeira medida. É através das mulheres, sob sua influência, reagindo às condutas delas que Julien, Fabrice, Lucien fazem o aprendizado do mundo e de si mesmos. Provação, recompensa, juiz, amiga, a mulher é realmente em Stendhal o que Hegel em dado momento se viu tentado a considerá-la: essa consciência outra que, no reconhecimento recíproco, dá ao sujeito outro a mesma verdade que recebe dele. O casal feliz que se reconhece no amor desafia o universo e o tempo; basta-se, realiza o absoluto.
Mas isso pressupõe que a mulher não é simples alteridade; é, ela própria, sujeito. Nunca Stendhal se restringe a descrever suas heroínas em função de seus heróis: dá-lhes um destino próprio. Tentou uma empresa mais rara e que nenhum romancista, creio, jamais se propôs: projetou-se ele próprio numa personagem feminina. Não se debruça sobre Lamiel como Marivaux sobre Marianne, ou Richardson sobre Clarisse Harlow: desposa-lhe o destino como desposara o destino de Julien. Por causa disso mesmo, a figura de Lamiel permanece um pouco teórica, mas é singularmente significativa. Stendhal ergueu em torno da moça todos os obstáculos imagináveis: ela é pobre, camponesa, grosseiramente educada por pessoas imbuídas de todos os preconceitos; mas ela afasta de seu caminho todas as barreiras morais a partir do dia em que compreende o alcance destas simples palavras: "é tolo". A liberdade de seu espírito permite--lhe reconsiderar todos os movimentos de sua curiosidade, de sua ambição, de sua alegria; diante de um coração tão resoluto, os obstáculos materiais não podem deixar de se renovar; seu único problema será conquistar, em um mundo medíocre, um destino feito sob medida. Ela devia realizar-se no crime e na morte; mas é também a sorte que aguarda Julien. Não há lugar para as grandes almas na sociedade tal qual é: homens e mulheres acham-se em pé de igualdade.
E notável que Stendhal seja a um tempo tão profundamente romanesco e tão decididamente feminista; habitualmente, os feministas são espíritos racionais que adotam, em todas as coisas, o ponto de vista do universal; mas é não somente em nome da liberdade em geral como também em nome da felicidade individual que Stendhal reclama a emancipação das mulheres. O amor nada terá a perder com isso, pensa ele; ao contrário, será tanto mais verdadeiro quanto, sendo a mulher um igual para o homem, poderá entendê-lo mais completamente. Sem dúvida, algumas das qualidades que apreciamos na mulher desaparecerão, mas seu valor provém da liberdade que nelas se exprime e essa liberdade manifestar-se-á de outras maneiras e o romanesco não se dissipará do mundo. Dois seres separados, colocados em situações diferentes, defrontando-se em sua liberdade e procurando a justificação da existência, um através do outro, viverão sempre uma aventura cheia de riscos e de promessas. Stendhal confia na verdade; desde que se fuja dela, morre-se vivo; mas onde ela brilha, brilham a beleza, a felicidade, o amor, uma alegria que traz em si sua justificação. Eis por que, tanto quanto as mistificações da gravidade, ele recusa a falsa poesia dos mitos. A realidade humana basta-lhe. A mulher a seus olhos é simplesmente um ser humano: os sonhos nada poderiam forjar de mais embriagante.
continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
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Leia também:
O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado
O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo
O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe
O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia
O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...
O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente
O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo
O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)
O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)
O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)
O Segundo Sexo - 46. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (2)
O Segundo Sexo - 47. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (1)
O Segundo Sexo - 48. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (2)
O Segundo Sexo - 49. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (1)
O Segundo Sexo - 50. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (2)
O Segundo Sexo - 51. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (1)
O Segundo Sexo - 53. Fatos e Mitos: Stendhal ou o Romanesco do Verdadeiro (3)
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