sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (12a)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




XII – A SRTA. DE CHAULIEU À SRA. DE L’ESTORADE



Fevereiro


Esta manhã, minha bela corça, às nove horas, meu pai fez-se anunciar nos meus aposentos: eu estava de pé e vestida. Encontrei-o sisudamente sentado num canto, junto ao fogo, no meu salão, mais pensativo do que de costume; indicou-me a poltrona em frente a ele, compreendi-o, e nela mergulhei com uma gravidade que o arremedava tão bem que ele sorriu, mas com um sorriso impregnado de grave tristeza.

— Você é, pelo menos, tão espirituosa como sua avó — disse-me ele.

— Ora, meu pai, não seja cortesão aqui — respondi-lhe —; vejo que deseja pedir-me alguma coisa.

Ele levantou-se numa grande agitação e falou-me durante uma meia hora. Essa conversa, querida, mereceu ser conservada. Assim que ele se foi, sentei-me à minha escrivaninha, procurando reproduzir suas palavras. Foi essa a primeira vez que vi meu pai desenvolvendo todo o seu pensamento. Começou por lisonjear-me, no que não se saiu muito mal; eu tinha de lhe ser grata por ter-me adivinhado e apreciado.

— Armanda — disse-me ele —, você enganou-me de modo estranho e surpreendeu-me agradavelmente. Quando chegou do convento, eu a tomei por uma moça como todas as outras, sem grande alcance, ignorante, a quem se poderia aliciar com bagatelas, com um enfeite, e que pouco refletia.

— Obrigada, meu pai, em nome da mocidade.

— Oh! Não há mais mocidade! — disse ele, deixando escapar um gesto de homem de Estado. — Você tem o espírito de uma extensão incrível; julga as coisas pelo que elas valem, sua clarividência é extrema; você é muito maliciosa: pensa-se que você nada viu, e justamente você já está com a vista sobre a causa dos efeitos que os demais examinam. Você é um ministro de saias; só você aqui me compreende, e portanto só você mesma pode ser empregada contra você, se se quiser obter algum sacrifício. Por isso vou explicar-me francamente sobre os projetos que eu tinha formado e nos quais persisto. Para fazer com que você os adote, preciso demonstrar-lhe que eles se originam de sentimentos elevados. Sou, pois, forçado a entrar com você em considerações políticas do mais alto interesse para o reino e que poderiam ser enfadonhas para qualquer outra pessoa que não você. Depois de me ouvir, refletirá longamente; dar-lhe-ei meses, se assim for preciso. Você é senhora absoluta de si mesma, e, se se recusar aos sacrifícios que eu lhe pedir, submeter-me-ei à sua recusa, sem mais atormentá-la.

Ante esse exórdio, querida corça, fiquei realmente séria e lhe disse: — Fale, meu pai.

Bem, eis o que o homem de Estado expôs:

— A França, minha filha, está numa situação precária que só é conhecida pelo rei e alguns espíritos elevados; mas o rei é uma cabeça sem braços; além disso, os grandes espíritos que partilham o segredo do perigo não têm nenhuma autoridade sobre os homens que devem ser utilizados para se chegar a um resultado feliz. Esses homens, vomitados pela eleição popular, não querem ser instrumentos. Por mais notáveis que sejam, continuam a obra de destruição social, em vez de nos ajudar a consolidar o edifício. Em duas palavras, não há mais do que dois partidos: o de Mário e o de Sila; eu sou por Sila contra Mário. [123] Eis em bloco o nosso assunto. Em detalhe, a revolução continua, está implantada na lei, está escrita no solo, está sempre nos espíritos; é tanto mais formidável por parecer vencida para a maioria desses conselheiros do trono que não lhe veem nem soldados, nem tesouro. O rei é um grande espírito, [124] vê as coisas claras; mas, dia a dia, conquistado pelos adeptos do irmão, que querem ir demasiado depressa, ele não tem dois anos de vida, e esse moribundo arranja as suas cobertas para morrer tranquilo. Sabe, minha filha, quais são os efeitos mais destruidores da revolução? Jamais os suspeitaria. Ao cortar a cabeça de Luís XVI, a revolução cortou a cabeça de todos os chefes de família. Hoje não há mais família, há somente indivíduos. Ao quererem tornar-se uma nação, os franceses renunciaram a ser um império. Ao proclamarem a igualdade de direitos à sucessão paterna, mataram o espírito de família, criaram o fisco. Prepararam, pois, a fraqueza das superioridades e a força cega da massa, a extinção das artes, o reinado do interesse pessoal, e abriram caminho à conquista. Achamo-nos entre dois sistemas: ou constituir o Estado pela família, ou constituí-lo pelo interesse pessoal: a democracia ou a aristocracia, a discussão ou a obediência, o catolicismo ou a indiferença religiosa, eis a questão em poucas palavras. Pertenço ao pequeno número dos que querem resistir ao que se denomina povo, no próprio interesse deste. Não se trata mais de direitos feudais, como se diz aos ingênuos, nem de fidalguia; trata-se do Estado, trata-se da vida da França. Todo país que não se baseia no poder pátrio fica sem existência assegurada. Aí começa a escala das responsabilidades, e a subordinação que ascende até o rei. O rei somos nós todos! Morrer pelo rei é morrer por si mesmo, pela própria família, a qual não morre, da mesma forma que não morre o reino. Cada animal tem seu instinto, o do homem é o espírito de família. Um país é forte, quando se compõe de famílias ricas, cujos membros têm, todos, interesse em defender um tesouro comum: tesouro monetário, de glórias, de privilégios, de gozos; é fraco, quando se compõe de indivíduos não solidários, aos quais pouco importa obedecer a sete homens ou a um único, a um russo ou a um corso, contanto que cada indivíduo conserve seu campo; e esse infeliz egoísta não vê que um dia lho tirarão. Encaminhamo-nos para um estado de coisas horrível, em caso de insucesso. Não haverá mais senão leis penais ou fiscais, a bolsa ou a vida. O mais generoso país da terra não será mais guiado pelos sentimentos. Nele se terão desenvolvido chagas incuráveis. Acima de tudo, uma inveja universal: as classes superiores ficarão confundidas, interpretar-se-á a  igualdade de desejos como igualdade de forças; as verdadeiras superioridades reconhecidas, verificadas, serão invadidas pelas ondas da burguesia. Podia-se escolher um homem entre mil; nada se pode achar entre três milhões de ambições semelhantes, trajando a mesma libré, a da mediocridade. Essa massa triunfante não perceberá que tem contra si uma massa terrível, a dos camponeses proprietários: vinte milhões de jeiras de terra viva, que caminha, raciocina, de nada entende, querendo sempre mais, fazendo barricadas por toda parte, dispondo da força bruta...

— Mas — disse eu, interrompendo meu pai — que posso fazer pelo Estado? Não me sinto com nenhuma disposição para me tornar a Joana D’Arc [125] das famílias e perecer a fogo brando na fogueira de um convento.

— Você é uma pestezinha — disse meu pai. — Se lhe falo seriamente, você vem com gracejos; quando eu gracejo, você fala como se fosse uma embaixatriz.

— O amor vive de contrastes — respondi.

Ele riu até as lágrimas.

— Você pensará nisso que lhe acabo de explicar; repare quanta confiança e grandeza há nesse meu modo de lhe falar, e talvez os acontecimentos auxiliem os meus projetos. Sei que, quanto a você, esses projetos podem ser ofensivos, indignos; por esse motivo é que peço, menos ao seu coração e à sua fantasia do que ao seu raciocínio, uma sanção para eles; reconheci em você mais razão e bom-senso do que em outra qualquer pessoa...

— O senhor se lisonjeia — disse-lhe eu sorrindo —, visto que sou bem sua filha!

— Enfim — continuou ele —, eu não poderia ser inconsequente. Quem quer os fins quer os meios, e devemos dar o exemplo a todos. Portanto, você não deverá ter fortuna enquanto a do seu irmão mais moço não estiver assegurada, e quero empregar todos os capitais de que você dispõe, de modo a constituir um morgadio para ele.

— Mas — repliquei — o senhor não me vai proibir que viva como me aprouver e que seja feliz deixando-lhe minha fortuna?

— Ah! Contanto — respondeu-me — que a vida como você a concebe não prejudique em nada a honra, a consideração e, posso acrescentar, a glória de sua família.

— Ora essa! — exclamei. — Bem depressa o senhor me destitui de minha razão superior.

— Em França — disse ele, com amargura — não encontraremos um homem que queira desposar uma moça da mais alta nobreza, sem dote, e que lhe constitua um. Se se encontrasse esse marido, pertenceria seguramente à classe dos burgueses enriquecidos: sob esse ponto de vista pertenço ao século XI.

— E eu também — disse-lhe eu. — Mas por que desesperar-me? Não existem acaso velhos pares de França?

— Você está muito adiantada, Luísa — exclamou ele.

Depois disso deixou-me, sorrindo, e beijou-me a mão.

Eu tinha recebido tua carta naquela mesma manhã, a qual me fizera precisamente pensar no abismo no qual acreditas que eu poderia cair. Pareceu-me que uma voz bradava dentro de mim: “Tu cairás nele!”. Tomei, pois, minhas precauções. Henarez atreveu-se a olhar-me, querida, e seus olhos perturbaram-me, produzem-me uma sensação que não posso comparar a não ser com a de um profundo terror. Não se deve olhar esse homem, da mesma forma que não se deve olhar para um sapo; ele é feio e fascinante. Faz dois dias que delibero comigo mesma se direi categoricamente a meu pai que não quero mais aprender espanhol e fazer despedir esse Henarez; mas, depois das minhas resoluções viris, sinto a necessidade de ser atiçada pela horrível sensação que experimento ao ver esse homem e digo: “Ainda uma vez, e depois falarei”. Sua voz, querida, é de uma doçura penetrante, ele fala como Fodor [126] canta. Suas maneiras são simples e sem a menor afetação. E que lindos dentes! Ainda agora, ao retirar-se, ele julgou notar quanto me interessa, e fez o gesto, aliás muito respeitoso, de me segurar a mão para beijá-la; mas reprimiu-o como que assustado por sua ousadia e da distância que ia saltar. Apesar do pouco que transpareceu, eu adivinhei; sorri, pois nada é mais enternecedor do que ver o ímpeto de uma natureza inferior que recua assim sobre si mesma. Há tanta audácia no amor de um burguês por uma moça da nobreza! Meu sorriso encorajou-o, o pobre homem procurou o chapéu sem o ver, não o queria achar, e eu lho trouxe com toda a gravidade. Lágrimas reprimidas umedeciam-lhe os olhos. Havia um mundo de coisas e de pensamentos naquele instante tão breve. Nós nos compreendíamos tão bem que, naquele momento, lhe dei a mão a beijar.

Talvez isso quisesse dizer que o amor podia suprimir a distância que nos separa. Pois bem, não sei o que me fez agir: Griffith voltou-se, eu estendi altivamente para ele a minha patinha branca e senti o fogo de seus lábios, temperado por duas grandes lágrimas. Ah! Meu anjo, fiquei sem forças na minha poltrona, pensativa; sentia-me feliz, e é-me impossível explicar como e por quê. O que senti foi a poesia. Meu rebaixamento, de que agora me envergonho, parecia-me grandioso: ele tinha me fascinado, é essa a minha desculpa.


continua...




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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[119] Gonçalvez de Córdoba: general espanhol (1445-1515), herói da Reconquista. 
[120]Cardeal Ximenez: Ximenez de Cisneros (1436-1517), arcebispo de Toledo. 

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Leia também:

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada - Ao "Chat-Qui-Pelote" (1)
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Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (12b)


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[123]Não há mais do que dois partidos: o de Mário e o de Sila: eu sou por Sila contra Mário: alusão às lutas, por volta de 100 a.C., desses dois generais romanos, dos quais um, Mário, chefiava o partido popular, outro, Sila, o partido aristocrático.
[124]O rei é um grande espírito: o rei de que se trata aqui é Luís xviii; seu irmão é o conde de Artois, futuro Carlos x. Ver a respeito deles nossa nota 6 em O baile de Sceaux.
[125]Joana d’Arc: Jeanne d’Arc (1412-1431), heroína francesa que libertou o território francês da ocupação inglesa.
[126] Josephine Fodor-Mainville (1793-1870): famosa cantora, aplaudida em Paris, Londres, Veneza etc.

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