quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XI — O que ele faz

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Segundo - A Queda



XI — 
O que ele faz 




Jean Valjean escutou. Nem o mais leve ruído. Empurrou a porta. Empurrou-a com a ponta dos dedos, ligeiramente, com a furtiva e inquieta delicadeza do gato que quer entrar.

A porta cedeu à pressão e fez um movimento imperceptível e silencioso, que alargou pouco mais a abertura. Deteve-se um momento, depois empurrou de novo a porta, desta vez com mais força. 

A porta continuou a ceder silenciosa. A abertura era já suficientemente grande para que ele pudesse passar, mas uma mesa pequena, que formava com ela um ângulo, obstruía a entrada. 

Jean Valjean reconheceu o obstáculo. Era necessário, custasse o que custasse, que a abertura se alargasse mais. 

Decidiu-se e empurrou a porta pela terceira vez, mais energicamente do que das duas antecedentes. Desta vez, um dos gonzos, decerto enferrujado, soltou um grito rouco e prolongado no meio do silêncio. 

Jean Valjean estremeceu. O ruído do gonzo soou-lhe aos ouvidos, estrondoso e tremendo, como a trombeta do juízo final. 

Na fantástica exageração do primeiro momento, quase se lhe afigurou que aquele gonzo acabava de animar-se e assumir de repente vida terrível, latindo como um cão para avisar toda a gente e despertar os adormecidos. 

Estacou, trêmulo e desorientado, deixando-se cair das pontas dos pés sobre os calcanhares. As artérias temporais pulsavam-lhe com tal força, que as ouvia bater como dois martelos numa bigorna, afigurava-se-lhe que a respiração lhe saía do peito sussurrante, como uma rajada de vento saída de uma caverna. Parecia-lhe impossível que o horrível clamor daquele gonzo irritado não abalasse toda a casa, como medonho repelão de um terramoto; a porta empurrada por ele assustara-se e clamara; o velho não tardaria a levantar-se, as duas mulheres não tardariam a gritar, não tardaria a acudir gente em socorro; antes de um quarto de hora, a cidade estaria em movimento e a gendarmaria a postos. Por um instante considerou-se perdido. 

Deixou-se pois ficar onde estava, petrificado como a estátua de sal e sem se atrever a fazer o menor movimento. Decorreram alguns minutos. A porta abrira-se de par em par. Jean Valjean espreitou para dentro do quarto. O mais completo sossego. O rangido do gonzo enferrujado não despertara ninguém. 

Estava passado este primeiro perigo, mas nem por isso era menos terrível o tumulto que ainda se agitava dentro dele. 

Jean Valjean, porém, não recuou. Não recuara nem mesmo na ocasião em que se considerara perdido. Do que tratava agora era de operar com presteza. Avançou um passo e entrou no quarto. 

Este jazia no mais profundo silêncio. Aqui e além divisavam-se algumas formas vagamente confusas, que, vistas à claridade, eram papéis espalhados por cima de uma mesa, in-folios abertos, muitos volumes amontoados sobre um banco, uma poltrona carregada de roupa, um genuflexório, objetos que, àquela hora, eram apenas vultos informes, branquejando por entre as trevas. 

Jean Valjean continuou a caminhar com a maior precaução, para não esbarrar com os móveis. Do lado oposto do quarto, ouvia a igual e serena respiração do bispo adormecido. De súbito, parou, porque se encontrava junto da cama, onde tinha chegado mais depressa do que pensara. 

A natureza, às vezes, nos seus efeitos e espetáculos, estabelece com as nossas ações uma espécie de correlação tão sombria e inteligente, que parece querer, por meio dela, fazer-nos refletir e sondar-nos a nós próprios. Havia perto de meia hora que uma espessa nuvem cobria o céu. No momento em que Jean Valjean parou, em frente do leito, a nuvem rasgou-se, como se o fizesse de propósito, e um raio de luar, coando-se por entre a janela rasgada do quarto do bispo, veio subitamente iluminar o pálido rosto do prelado, que dormia serenamente. Resguardava-o do frio da noite, que nos Baixos Alpes se faz sentir com especial intensidade, uma camisola de lã escura, que lhe cobria os braços até aos pulsos. A cabeça debruçava-se-lhe sobre o travesseiro na atitude indolente do repouso; a mão, aquela mão de onde tinham saído tão boas e santas ações, pendia-lhe fora da roupa, ornada com o anel pastoral. O rosto iluminava-se-lhe de uma vaga expressão de satisfação, esperança e beatitude. Era mais do que sorriso, era quase irradiação. Respirava daquela fronte a inexprimível reverberação de uma luz que contempla um céu misterioso. 

No momento em que o raio de luz se sobrepôs, por assim dizer, àquela claridade interior, o vulto do bispo adormecido destacou-se como no meio de uma auréola, ficando, todavia, este espetáculo suave velado por uma luz mal distinta, mas inefável. A Lua no céu, o repouso da natureza, o jardim em perfeita quietação, a casa em completo sossego, a hora, a ocasião, o silêncio, tudo acrescentava um não sei quê de solene e indizível ao venerável repouso daquele homem, envolvendo, numa majestosa e serena auréola, aqueles cabelos brancos e os olhos fechados, afronte em que tudo era esperança e confiança, a cabeça de ancião e o sono infantil. 

Havia naquele homem, sem que ele o suspeitasse, o que quer que fosse quase divino. 

Jean Valjean conservou-se na sombra, de pé, imóvel, com a barra de ferro na mão, a braços com a mais estranha impressão. O aspecto daquele ancião coruscante apavorava-o. Nunca na sua vida vira coisa semelhante. O seu grande destemor amedrontava-o. 

O mundo moral não possui mais grandioso espetáculo do que o de uma consciência perturbada e inquieta chegada à beira de uma má ação e contemplando o sono de um justo. 

Esse sono, naquele isolamento e com um vizinho de semelhante estofo, tinha o que quer que fosse de sublime, que ele próprio sentia, vaga mas imperiosamente. 

Ninguém, nem ele mesmo, pudera dizer o que dentro dele se passava. Para tentar avaliá-lo é necessário imaginar o que há de mais violento em presença do que há de mais suave. Nem no rosto se lhe pudera distinguir coisa alguma com certeza. Sena uma espécie de assombro desvairado. Contemplava aquele vulto. Nada mais. Qual era o seu pensamento? Seria impossível adivinhá-lo. O que era evidente é que ele se achava impressionado e profundamente abalado. Mas de que natureza era esta comoção? 

O seu olhar não se afastava do ancião. A única coisa que claramente deixara transparecer a atitude e a fisionomia dele era uma singular perplexidade. Dir-se-ia que hesitava entre dois abismos: entre o da perdição e o da salvação. Parecia prestes a esmagar aquela cabeça ou a beijar aquela mão. 

Ao cabo de alguns instantes, levantou vagarosamente o braço esquerdo à altura da testa, tirou o boné, tornou a deixar cair o braço com a mesma lentidão e voltou à sua primitiva postura de contemplação, com o boné na mão esquerda, a barra de ferro na direita, os cabelos eriçados, a expressão do rosto selvática. 

O bispo continuava a dormir com a maior serenidade sob aquele temeroso olhar. 

O reflexo do luar tornava confusamente visível por cima do fogão o vulto do crucifixo, que parecia abrir os braços a ambos, com uma bênção para um e o perdão para o outro. 

De repente, Jean Valjean pôs o boné na cabeça, caminhou rapidamente ao longo da cama, sem olhar para o bispo, direito ao armário, que ele entrevia junto à cabeceira. Feito isto, levantou a barra de ferro como para forçar a fechadura, mas viu nela a chave. Apenas abriu a portinhola, deparou-se-lhe logo o açafate em que estava a prata; pegou nele, atravessou o quarto a largas passadas, sem a menor precaução, indiferente ao ruído que poderia produzir, chegou à porta, entrou no oratório, abriu a janela, pegou no cajado, saltou para o jardim, meteu a prata na mochila, atirou para longe de si o açafate, transpôs o muro como o faria um tigre e fugiu.


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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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