quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O Brasil Nação - v2: § 68 – A revolução para a República - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2



SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8



A Revolução Republicana



§ 68 – A revolução para a República




Os homens do Império, que justificavam, e, indiretamente, completavam a propaganda da República, finalmente criaram a situação de que resultou a irremissível queda do trono. Criaram-na protelando a solução da questão servil, resistindo estupidamente à Abolição, obrigando, assim, a nação a agitar-se até a revolução. Essa agitação, que apaixonou intensamente a alma nacional, coincidiu, toda ela, com a campanha pela República, e formou-se, destarte a crítica e espessa atmosfera revolucionária em que viveu o Brasil de 1883 em diante. Pois bem, foi nessa conjuntura que a política imperial deu lugar às chamadas questões militares, que, finalmente, se incorporaram num protesto geral do Exército, na sua parte mais representativa. E começou o conflito, para dar lugar imediatamente a um recuo do poder civil, tão desastrado e vergonhoso, que logo convenceu os militares de que podiam ir até onde quisessem. Paranaguá, presidente do Conselho, apresentou ao parlamento um projeto de reforma das forças de terra, com o qual se julgaram lesados, ou ofendidos, os oficiais do Exército; o pessoal da Escola Militar decidiu, então, discutir a projetada reforma, e aceitou de escrever os artigos o Tenente-Coronel Sena Madureira, oficial de grande atividade, competência e prestígio na classe, ao mesmo tempo – republicano e abolicionista. Formulam-se censuras, há um quase abalo nos meios políticos, e a Escola Militar, com grande número de oficiais, de todas as patentes, vem publicamente apoiar a atitude de Madureira. Resultado: Paranaguá, no Senado, engole o seu projeto. Agora, quando era preciso evitar qualquer atrito com o Exército ensoberbecido [29] o governo reacende a crise, no ano seguinte, a propósito de uma manifestação abolicionista de Sena Madureira, inócua e perfeitamente cabível (no governo Lafaiete). 


[29] Note-se: Empenhado em conhecer todos os recantos no proceder das gentes com quem tratava, Pedro II aceitava maledicências e intrigas; aproveitava cartas anônimas, e comprazia-se com as verrinas dos jornais que difamavam. Assim, exigia de sua polícia, informes diários – disso mesmo que a ela se denunciava porque era polícia, e permitia, então, existisse, com a sua franquia, a imprensa imunda do gênero “Corsário”, onde nada se poupava, verdade ou não, no recesso do viver dos homens públicos. Chegou o momento em que os ultrajes foram para gentes do Exército, do qual alguns oficiais entenderam vingar a infâmia que a polícia não coibia, ou não queria coibir, e, à sombra da fachada policial, apunhalaram o jornalista corsariano, que se acolhera à proteção da mesma polícia. E foi através do tórax de Alpulco de Castro que o Exército teve a demonstração do seu poder: nada aconteceu aos oficiais vingadores.



Carrega-se, definitivamente, a agitada atmosfera política de mais eletricidade revolucionária; tudo é motivo de manifestações, sempre provocadas politicamente pelos governantes. Um deputado, baldo de efeitos oratórios, trata o Coronel Cunha Matos, a propósito do serviço público, de traidor e covarde; o ministro da Guerra ouve impassível o insulto ao oficial, e este vem responder ao político em tom correspondente à injúria, ao mesmo tempo que estranha a indiferença do seu superior hierárquico, o ministro, o qual, agora despertado em brios, repreende e faz prender Cunha Matos. O Exército assanha-se, naturalmente, e antes de qualquer manifestação de solidariedade, sente-se de novo atacado na pessoa do mesmo Sena Madureira: o ex-ministro que o demitira em 1884, veio, em 1886, e o exprobra, taxando-o de indisciplinado. O brioso oficial replica em artigo, e se justifica, sem nenhum insulto, aliás. Mas o ministro da Guerra do momento, o célebre Alfredo Chaves, repete com Madureira a nota da repreensão que despedira contra Cunha Matos. Deodoro, o general de mais prestígio, então, autoridade suprema, civil e militar, lá no Rio Grande do Sul (onde falara Madureira), apoia-o plenamente, ao mesmo tempo que Pelotas, com a autoridade militar de, último vencedor no Paraguai, e a situação política de chefe liberal e senador do Império, vem solidarizar-se publicamente com os oficiais ofendidos. A respectiva declaração se faz pelo jornal dos republicanos.

Já era governo Cotegipe, que pede informações, e a quem Deodoro respondeu oficialmente:... “que o exército estava, com razão, magoado, que a ferida fora forte, cruel e mortal...”. Em começos de 1887, volta Deodoro para a corte; pouco depois, vem Pelotas, para a sessão parlamentar. O Supremo Tribunal Militar, devidamente consultado, declarou: “Segundo a Constituição, os oficiais tinham, como qualquer outro cidadão, o direito de manifestar livremente as suas opiniões pela imprensa”. Reclama o Exército, assim justificado, o trancamento das notas ofensivas aos dois oficiais; reunida solenemente, a oficialidade da corte, dá plenos poderes a Deodoro para defender o Exército perante o chefe da nação, e o comissionado, saltando por sobre os ministros, envia ao imperador uma carta no sentido da incumbência que tivera. A resposta é a sua demissão – de quartel-mestre-general. Não obstante, volta Deodoro, em nova carta a Pedro II, em tom de quase exigência. Não lhe veio, ainda, nenhuma resposta. O ministro da Guerra, propõe, então, ao chefe da nação, a prisão de Deodoro, ou a sua remoção para longe da corte; não obtém, nem uma coisa nem a outra, e dá a sua demissão, Pedro II já se acha enfraquecido pela moléstia, que pouco depois o levou à Europa, assim como sensivelmente combalido pela repercussão da dupla campanha de oposição – Abolição e República. Já a pena veemente de Rui Barbosa aproveitava, com desenvolvido sucesso, a mesma questão militar. O sucessor de Alfredo Chaves, na persistente política de Cotegipe, também não deu o reclamado trancamento das notas, pelo que os dois, Pelotas e Deodoro, publicaram um manifesto sensivelmente enérgico, e em que consubstanciavam as reclamações do Exército. Nesse meio tempo, declarou publicamente Pelotas: “Que fora convidado, por Paranaguá, para tratar da questão diretamente com o imperador, e não acedera por ter sido um convite particular...

Das mãos desses ministros, que tão estupidamente zelavam pela ombridade das suas funções, havia caído toda a legítima autoridade do poder civil. No Senado, o incorrigível Cotegipe ri da importância da questão militar, e Pelotas, que de tudo sabia, e havia dado o seu prestígio em solidariedade com os colegas, respondeu-lhe com um sincero, completo e leal aviso, só com a falha de ser tardio:


O nobre presidente do Conselho terminou rindo-se, e o seu riso me contristou. Atravessamos um momento grave, e S. Exa. não lhe dá importância... Um de nós está inteiramente iludido nesta questão. Declaro com toda a franqueza que queria ser eu o enganado. Desgraçadamente parece que é S. Exa. Peço encarecidamente... que reconsidere o seu ato, por amor a este país, não por satisfação a mim... Se não o fizer, não sabemos o que poderá acontecer amanhã, apesar de confiar S. Exa. nas forças armadas... Tais serão as circunstâncias, que talvez elas lhe faltem.


Os liberais propuseram, então, uma moção que permitisse satisfação ao Exército; o chefe conservador aceitou-a: O governo convidado a declarar sem efeito a repreensão... E Cotegipe, cuja finura de espírito falhara, pois não fora perspicaz, fazia verve, ainda: aceitava, reconhecendo que saía com alguns arranhões na dignidade... Não arranhada, mas dilacerada, sem conserto possível. Contra a política imperial, havia desde então, não só abolicionista e republicanos, como o Exército. Depois dos arranhões, a insânia escravocrata de Cotegipe fá-lo dar ordens às tropas do Exército para apanhar escravos fugidos. Equivalia a convidar os oficiais à desobediência: eles se negaram estrepitosamente, e como, agora, todo pretexto serve para manifestações da força pública em hostilidade ao poder civil, a insignificância de um caso policial – Leite Lobo, bastou para pôr os clubes – militar e naval, em permanência, a pedir a demissão das autoridades responsáveis. Deram-lhes a do delegado: não bastou, e exigiram a do próprio chefe de Polícia, inimigo declarado dos abolicionistas... Assoberbado pelos efeitos das próprias inépcias e as dos que o precederam, bateu Cotegipe com a porta, e deixou o governo para João Alfredo, que, arrastado, sem nunca tomar pé, atamancou a lei de 13 de maio. 

E acabou o partido conservador, sem que o Exército, todo entrado, agora, para a generalizada agitação, se desse por satisfeito. Os meses do governo de João Alfredo apenas bastam para legalizar a liberdade que os escravos por si mesmo tomaram, desde que os oficiais brasileiros não se prestaram a entregá-los ao cativeiro. Vencedora a Abolição pelo gesto final do Exército, ainda tentaram os políticos do Império fazer a sua vida sob o regime imperial desmantelado, perdido: toma-se do primeiro pretexto; e afastam-se para Mato Grosso os batalhões mais em vista na corte, indo à frente deles, pois que é a mais sensível ameaça, o General Deodoro. Era a luta franca, já agora sob a responsabilidade dos liberais, de Ouro Preto, ingenuamente confiante na própria sobranceria. No momento, olha-se a mesma sobranceria como fanfarronice: a propaganda republicana e a oposição liberal radical, já em direção à República, atacaram violentamente a atitude confiante de Ouro Preto, a quem se dava, com mais ou menos verdade – e por que parecia dedução do seu programa, o plano de desorganizar o Exército, enfrentando-o, se preciso, com outras milícias. E vem a demissão de Mallet, com a nota a bem do serviço público, e vêm os distúrbios de São Paulo – Exército e Polícia, para que o Exército continue a considerar-se ofendido, perseguido... e reivindique e exija reparações. A propaganda republicana rejubilava do poderosíssimo auxílio e irmana-se com as reivindicações do Exército. Há Benjamin Constant, ao mesmo tempo – abolicionista, republicano, e oficial professor, com efetivo prestígio, mental e moral sobre as novas gerações de oficiais. Com ele, a propaganda aproveitou quando pôde da atitude dos militares: aproveitou demais; assim como, com ele a campanha pela República passou das mãos dos propagandistas consagrados – para ser a revolução feita como que exclusivamente pelo Exército, na forma infeliz de um levante militar. E isto obriga a que, na apreciação da realização republicana, haja páginas especiais para estudar o papel e o efeito dos militares na mesma realização. 

Na sua ingênua e leviana confiança em si mesmo, o governo com que morreu a monarquia levantava programas, fazia atividade vazia, enquanto os oficiais de prestígio aprumavam o gesto em que avançariam para o poder, sobre as distrações do regime aniquilado por eles mesmos. Aproveita-se o burburinho das festas aos chilenos; Benjamin Constant, com o ensejo de uma visita dos marinheiros visitantes, festejados na Escola Militar, faz um discurso que, noutro momento, na boca de um oficial como ele, consciente dos seus direitos políticos, podia passar sem reparo – somos soldados, não seremos janizeiros... Naquele momento, dadas as suas crenças republicanas, foi, e era, uma provocação. A prova é que, ao mesmo tempo, com ele, elo de republicanos e chefes militares, se dispunha a conjuração: no dia 12 de novembro já está tudo assentado, e Deodoro, apalavrado, assente em fazer a República, uma vez que o poder imperial não dava ao exército as satisfações pedidas, uma vez que o imperador já não regulava...30 Os propagandistas republicanos, que, gostosamente, haviam passado a tarefa ao Exército, continuavam a fazer-lhe cortejo: Francisco Glicério, com toda a sua beleza d’alma e sinceridade de convicções, veio de São Paulo para ver fazer-se a República, pois que ele, como os outros propagandistas de responsabilidade, estava a par de tudo. Quintino chegou a estar a cavalo, na massa da brigada em marcha para tomar conta do poder... Era, isso, o bastante para tirar ao ato da proclamação da República o caráter de levante militar? Pensemos que a tropa foi puxada e o movimento teve por chefe um soldado que nunca se dissera republicano, um dos mais moços, numa irmandade de generais, todos ostensivamente monarquistas; e que esse mesmo era tido como admirador e amigo do monarca. Mais do que tudo, a forma mesma do ato lhe tirou a qualidade de movimento de opinião.


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"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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