quinta-feira, 20 de julho de 2023

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (51)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas


SEGUNDA PARTE


LI – A CONDESSA DE L’ESTORADE À SRA. MARIA-GASTÃO

1837

Que é feito de ti, querida? Depois de um silêncio de dois anos, é permitido a Renata inquietar-se por Luísa. Eis pois o amor! Ele arrasta, anula uma amizade como a nossa: confessa que, se eu quero mais a meus filhos do que tu a Gastão, há no sentimento materno não sei que imensidade que permite nada tirar às outras afeições e que consente a uma mulher continuar uma amiga sincera e dedicada. Sinto falta de tuas cartas, tua meiga e encantadora figura. Estou reduzida a conjeturas a teu respeito, Luísa! 

Quanto a nós, vou explicar-te as coisas o mais sucintamente possível.

Ao reler tua penúltima carta, encontrei nela algumas palavras azedas sobre a nossa situação política. Dirigiste-nos alguns sarcasmos por termos conservado o posto de presidente do Tribunal de Contas que nos fora dado, assim como o título de conde, pela graça de Carlos x; mas seria com quarenta mil libras de renda, das quais trinta pertencem ao morgadio, que eu poderia estabelecer convenientemente Atenaís e esse pobre mendigozinho do Renato? Não devíamos nós viver com os proventos do nosso cargo e acumular sabiamente a renda das nossas terras? Em vinte anos teremos juntado cerca de seiscentos mil francos, que servirão para dotar quer minha filha, quer Renato, que destino à Marinha. Meu pobrezinho terá dez mil libras de renda, e talvez possamos deixar-lhe em dinheiro uma quantia que tome seu quinhão igual ao da irmã. Quando for capitão de navio, o meu mendigo fará um casamento rico e ocupará na sociedade uma situação igual à do irmão.

Esses sábios cálculos determinaram em nossa casa a aceitação da nova ordem de coisas. Naturalmente a nova dinastia nomeou Luís par de França e grande oficial da Legião de Honra. Uma vez que l’Estorade prestava juramento, não podia fazer as coisas a meio; desde então, prestou grandes serviços na Câmara. Ei-lo agora chegado a uma situação na qual permanecerá tranquilamente até o fim dos seus dias. É hábil nos negócios; é antes um conversador agradável do que um orador, mas isso satisfaz ao que se pede à política. A sua finura, os seus conhecimentos, quer em matéria de governo, quer de administração, são apreciados, e todos os partidos o consideram um homem indispensável. Posso dizer-te que ultimamente lhe ofereceram uma embaixada, mas eu fiz com que recusasse. A educação de Armando, que tem agora treze anos, e a de Atenaís, que vai para os onze, me retêm em Paris, e aqui quero ficar até que o meu pequeno Renato tenha concluído a sua, que agora começa.

Para permanecer fiel ao ramo primogênito [1] e voltar para os seus domínios, era preciso não ter três filhos para educar e sustentar. Uma mãe, meu anjo, não deve ser Décio, sobretudo numa época em que os Décios são raros. [2] Daqui a quinze anos l’Estorade poderá retirar-se para Crampade com uma bela aposentadoria, instalando Armando no Tribunal de Contas, onde o deixará como referendário. Quanto a Renato, a Marinha com certeza fará dele um diplomata. Aos sete anos, esse garoto já é tão esperto quanto um velho cardeal. 

Ah! Luísa, sou uma mãe bem feliz! Meus filhos continuam a dar-me alegrias sem sombra (Senza brama, sicura ricchezza). [3] Armando está no colégio Henri iv. Optei pela educação pública sem me decidir entretanto a separar-me dele e fiz como fazia o duque de Orléans antes de ser, e talvez para vir a ser Luís Filipe. Todas as manhãs, Lucas, o velho criado que conheces, leva Armando ao colégio na hora da primeira aula e o traz às quatro e meia. Um velho e sábio explicador, que mora em nossa casa, o faz estudar à noite e o desperta pela manhã à hora em que os colegiais se levantam. Lucas, ao meio-dia, lhe leva uma merenda, durante o recreio. Assim, eu o vejo durante o jantar, à noite, antes de deitar-se, e assisto de manhã à sua partida. Armando continua sempre o menino encantador, de grande coração e devotamento, a quem tanto querias; seu explicador está contente com ele. Tenho comigo minha Naís e o pequeno, que zumbem constantemente, mas sou tão criança como eles. Não me pude resignar a perder a doçura das carícias dos meus queridos filhos. É, para mim, uma necessidade da existência essa possibilidade de correr, assim que o deseje, à cama de Armando, para vê-lo durante o sono, ou para ir buscar, pedir, receber um beijo daquele anjo.

Não obstante, o sistema de conservar os filhos na casa paterna tem inconvenientes, e eu os verifiquei. A sociedade, como a natureza, é ciumenta e nunca deixa que se infrinjam suas leis; não admite que se lhe desarranjem a economia. Assim é que, nas famílias em que se conservam os filhos em casa, eles são muito cedo expostos ao fogo do mundo, vendo-lhe as paixões, estudando-lhe as dissimulações. Incapazes de distinguir as diferenças que regem a conduta dos adultos, submetem o mundo a seus sentimentos e paixões, em vez de submeterem seus desejos e suas exigências à sociedade; adotam o falso brilho, que luz mais do que as virtudes sólidas, pois são, sobretudo, as aparências que a sociedade põe em destaque e reveste de formas enganadoras. Quando, desde os quinze anos, uma criança tem a segurança de um homem que conhece o mundo, é uma monstruosidade, torna-se velho aos vinte e cinco anos e se torna por essa ciência precoce, inábil para os verdadeiros estudos sobre os quais repousam os talentos reais e sérios. O mundo é um grande comediante; e, como o comediante, tudo recebe e tudo restitui; nada conserva. Uma mãe deve, pois, ao conservar seus filhos juntos de si, tomar a firme resolução de os impedir de penetrar na sociedade, ter a coragem de se opor aos desejos deles e seus e de não os mostrar. Cornélia devia esconder as suas joias. [4] Assim farei, porque meus filhos são toda a minha vida.

Tenho trinta anos, o mais intenso calor do dia já passou, já está percorrida a parte mais difícil do caminho. Daqui a poucos anos estarei velha, por isso auferirei uma força imensa do sentimento dos deveres cumpridos. Dir-se-ia que esses seres conhecem o meu pensamento e a ele se conformam. Existe entre mim e eles, que jamais me deixaram, relações misteriosas. Enfim, eles me cumulam de gozos, como se compreendessem todas as compensações que me devem. 

Armando, que durante os três primeiros anos de seus estudos foi pesado, meditabundo e que me preocupava, modificou-se de repente. Compreendeu, com certeza, o fim desses trabalhos preparatórios, que as crianças nem sempre percebem, e que consiste em acostumá-las ao trabalho, apurar a sua inteligência e moldá-las à obediência, princípio das sociedades. Alguns dias atrás, querida, tive a sensação embriagadora de ver Armando premiado no concurso geral, em plena Sorbonne. O teu afilhado obteve o primeiro prêmio de tradução. Na distribuição de prêmios do colégio Henri iv, obteve dois primeiros prêmios, o de poesia e o de versão. Fiquei lívida ao ouvir proclamar seu nome e tive ímpetos de gritar: “Sou sua mãe!”. Naís apertava-me a mão a ponto de doer, se fosse possível sentir dor em tal momento. Ah! Luísa, essa festa vale bem os amores perdidos.

Os triunfos do irmão estimularam meu pequeno Renato, que quer ir para o colégio, como o mais velho. Algumas vezes, as três crianças gritam, movimentam-se na casa e fazem um barulho de atordoar. Não sei como resisto a isso, pois estou sempre com eles; jamais confiei a ninguém, nem mesmo a Mary, o cuidado de meus filhos. Mas há tanta alegria a recolher nesse belo ofício de mãe! Ver uma criança deixar o brinquedo para vir abraçar-me como impelida por uma necessidade... Que alegria! De resto, podemos observá-las assim muito melhor. Um dos deveres da mãe é destrinçar, desde os primeiros anos, as aptidões, o caráter, a vocação dos filhos, coisa que nenhum pedagogo poderia fazer. Todas as crianças educadas pela mãe têm bons costumes e cortesia, duas aquisições que suprem o espírito natural, ao passo que o espírito natural não supre jamais o que os homens aprendem com as suas mães. Já reconheço essas nuanças nos homens, nos salões, onde distingo logo os vestígios da mulher nas maneiras de um rapaz. Como privar os filhos de tal vantagem? Como vês, meus deveres cumpridos são férteis em tesouros e gozos.

Tenho certeza de que Armando será o melhor magistrado, o mais probo administrador, o mais consciencioso deputado que se possa encontrar; ao passo que o meu Renato será o mais ousado, o mais arriscado e o mais ardiloso marujo do mundo. Esse malandrinho tem uma vontade de ferro; consegue tudo o que quer, tem mil recursos para alcançar seus fins, e, se os mil não chegam, ele acha um milésimo primeiro. Nos casos em que o meu querido Armando se resigna com calma, estudando o motivo das coisas, o meu Renato esbraveja, se esforça, combina, parlamentando constantemente, e acaba descobrindo um furo; se pode por aí introduzir a lâmina de uma faca, acaba fazendo passar seu carrinho. 

Quanto a Naís, é de tal forma “eu”, que não a distingo de mim. Ah! A querida, a meninazinha amada que procuro tornar faceira, da qual tranço os cabelos e os cachos, pondo neles meus pensamentos de amor, quero-a feliz: só a darei àquele que a amar e a quem ela amar. Mas, Deus meu! Quando a deixo enfeitar-se ou quando lhe ponho nos cabelos fitas cor de groselha, quando lhe calço os pezinhos delicados, vem-me à cabeça e ao coração uma ideia que me deixa quase desfalecida. Poderemos ser senhoras do destino de uma filha? Talvez ame um homem indigno dela, talvez não seja ela amada pelo homem a quem amar. Muitas vezes, quando a contemplo, sobem-me lágrimas aos olhos. Separarmo-nos de uma criatura encantadora, uma flor, uma rosa que viveu em nosso seio como um botão na roseira, e dá-la a um homem que tudo nos tira! És tu que, em dois anos, não me escreveste estas três palavras: “Eu sou feliz”, és tu que me fazes lembrar o drama do casamento, horrível para uma mãe tão mãe quanto eu. Adeus, pois não sei como te escrevo, não mereces a minha amizade. Oh! Responde-me, minha Luísa.

continua pág 363...

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[1] O ramo primogênito dos Bourbon era representado por Carlos x, derrubado pela Revolução de 1830 a favor de Luís Filipe, representante do ramo secundogênito ou dos Bourbon de Orléans.
[2] Uma mãe não deve ser Décio, sobretudo numa época em que os Décios são raros: alusão a três personagens da história romana que se devotaram aos deuses infernais para assegurar a vitória aos exércitos de Roma. Seu nome passou na língua para designar aquele que se sacrifica aos interesses de sua pátria.
[3] Senza brama, sicura ricchezza: esta frase italiana já figurou numa carta de Luísa a Felipe (v. nossa nota 51), da qual, porém, Renata não teve conhecimento e a que, portanto, não deveria aludir. Houve distração do romancista (que várias vezes cita essas palavras em suas cartas à Estrangeira)? Ou devemos atribuir a repetição ao fato de se tratar de uma frase lida e repetida pelas duas amigas desde os tempos do convento e da qual ambas se servem como de uma espécie de slogan para resumir seu ideal de felicidade?
[4] Cornélia devia esconder as suas joias: Cornélia era filha do famoso general romano Cipião, o Africano, e mãe dos Gracos. Ficou viúva com doze filhos, que educou com toda a dedicação e com os maiores cuidados. Exibindo-lhe um dia uma rica patrícia a sua coleção de joias e pedindo-lhe que mostrasse as suas, ela respondeu indicando os filhos: “Eis as minhas joias”. Estes, porém, tiveram uma sorte trágica. Os dois últimos, Tibério e Caio, a quem a mãe ensinara o idealismo e o amor apaixonado à coisa pública, morreram assassinados em sua luta contra a avidez da aristocracia romana.
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815. 

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829). 

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 
12-13086                                                                               cdd-843 
Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843
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A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (51)

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