domingo, 5 de março de 2023

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (48)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas


SEGUNDA PARTE


XLVIII – A BARONESA DE MACUMER À CONDESSA DE L’ESTORADE


20 de outubro 


Aqui vão as medidas que tomei para ocultar minha felicidade, pois desejo evitar toda e qualquer oportunidade para o meu ciúme. Assemelho-me àquela linda princesa italiana que corria como uma leoa para roer seu amor em alguma cidade da Suíça, depois de se ter precipitado sobre a presa como uma leoa. Mas também não te falo de minhas disposições senão para pedir-te um outro favor, o de jamais nos vires visitar sem que eu própria te convide, eu mesma, e de respeitar a solidão em que quero viver.

Mandei comprar, faz dois anos, acima das represas de Ville d’Avray, na estrada de Versalhes, umas vinte jeiras de prados, uma orla de floresta e um belo pomar. No fundo dos prados cavaram o terreno de modo a conseguir um lago de cerca de três jeiras de superfície, no meio do qual deixaram uma ilha graciosamente recortada. As duas bonitas colinas, cobertas de bosques, que enquadram esse pequeno vale, deixam filtrar fontes deliciosas que correm através do meu parque, onde o meu arquiteto as distribuiu artisticamente. Essas águas caem nas represas da coroa, cuja vista se percebe através de abertas. Esse pequeno parque, admiravelmente bem desenhado por aquele arquiteto, é, segundo a natureza do terreno, cercado de sebes, de muros, de valas, de modo que não se perca nenhuma perspectiva. À meia encosta, flanqueado pelos bosques da Ronce, numa situação deliciosa e na frente de um prado que vai em declive para o açude, construíram-me um chalé cujo exterior é em tudo semelhante àquele que os viajantes admiram na estrada de Sion a Brigg e que tanto me seduziu na minha volta da Itália. No interior, sua elegância desafia a dos mais famosos chalés. A cem passos dessa rústica habitação, uma casa encantadora, dependência da outra com a qual comunica por um subterrâneo, achando-se aí a cozinha, os quartos dos criados, as cocheiras e os depósitos. De todas essas construções de tijolo, o olhar não vê mais do que uma fachada de uma simplicidade graciosa e cercada de bosquetes. O alojamento dos jardineiros forma um outro edifício e mascara a entrada dos pomares e da horta.

A porta dessa propriedade, disfarçada no muro que a cerca do lado dos bosques, é quase impossível de achar. As plantações já grandes dissimularão completamente as casas dentro de dois ou três anos. O viandante não perceberá nossas habitações, senão ao ver a fumaça da chaminé, do alto das colinas, ou no inverno, depois da queda das folhas

Meu chalé [1] está erguido no centro de uma paisagem copiada da que chamam de jardim do rei, em Versalhes, mas tem vistas sobre o meu açude e a minha ilha. De todos os lados, as colinas ostentam suas massas de folhagens, suas belas árvores tão bem cuidadas pela tua nova lista civil. Meus jardineiros têm ordem de não cultivar em torno de mim senão flores odoríferas, e aos milhares, de modo que esse recanto de terra é uma esmeralda perfumada. O chalé enfeitado com uma vinha selvagem que sobe pelo telhado é todo coberto de trepadeiras, lúpulas, clematites, jasmineiros, azáleas e cobeias. Quem enxergar nossas janelas poderá gabar-se de ter boa vista!

Esse chalé, querida, é uma bela e boa casa, com seu aquecimento e todo o conforto que soube proporcionar a arquitetura moderna, que faz palácios em cem pés quadrados. Encerra um apartamento para Gastão e um para mim. O pavimento térreo é ocupado por uma antecâmara, uma sala de estar e um refeitório. Em cima há três quartos destinados à nourricerie. Tenho cinco lindos cavalos, um cupê leve e pequeno e um milord [2] de dois cavalos: pois estamos a quarenta minutos de Paris; quando nos aprouver ouvir uma ópera, ver uma nova peça, poderemos partir depois do jantar e voltar à noite para o nosso ninho. A estrada é boa e passa por sob as sombras da sebe que cerca a propriedade. Minha criadagem, meu cozinheiro, meu cocheiro, o palafreneiro, os jardineiros, minha camareira são pessoas de confiança que andei procurando nos últimos seis meses e que serão governados pelo meu velho Felipe. Embora certa de sua dedicação e de sua discrição, fiz com que se ligassem à casa por interesse; têm salários pouco elevados, mas que de ano para ano serão aumentados com o que lhes daremos de Boas-Festas. Todos sabem que a mais leve falta, uma suspeita sobre sua discrição podem fazer com que percam imensas vantagens. Os namorados nunca importunam seus servidores; pois são indulgentes por temperamento: por isso posso confiar no meu pessoal.

Tudo que havia de precioso, de bonito, de elegante em minha casa da rue du Bac está no chalé. O Rembrandt está, nem mais, nem menos, do que uma tela qualquer, na escada; o Hobbema está no seu gabinete, em frente ao Rubens; o Ticiano, que minha cunhada Maria me mandou de Madri, orna o boudoir; os belos móveis achados por Felipe estão bem colocados na sala de estar que o arquiteto decorou deliciosamente. Tudo no chalé é de uma simplicidade admirável, dessa simplicidade que custa cem mil francos. Construído sobre porões de pedra molar, assentes sobre cimento, o nosso rés do chão, apenas visível sob as flores e os arbustos, é de uma frescura admirável, sem a menor umidade. Enfim, uma frota de cisnes vaga no açude.

Ó, Renata! Reina neste vale um silêncio que alegraria os mortos. Desperta-se com o canto dos pássaros ou o frêmito da brisa nos choupos. Da colina desce um pequeno regato que o arquiteto descobriu ao cavar os alicerces do muro, do lado dos bosques, o qual corre sobre areias prateadas, para o açude, entre duas margens de agrião: não sei se haverá dinheiro que o possa pagar. Essa felicidade demasiado completa não irá despertar ódio em Gastão? Tudo é tão lindo que tremo de medo; os vermes se alojam nos belos frutos, os insetos atacam as flores magníficas. O orgulho da floresta não é sempre roído por essa horrível larva cuja voracidade se assemelha à da morte? Já sei que um poder invisível e invejoso ataca as felicidades completas. Aliás faz muito tempo que me disseste por escrito, e nisso te revelaste boa profetisa.

Quando, anteontem, fui ver se minhas últimas fantasias tinham sido compreendidas, senti que me vinham lágrimas aos olhos e escrevi na conta do arquiteto, com grande surpresa sua: “Vale, a pagar”.

— Seu procurador não pagará, senhora — disse-me ele. — Trata-se de trezentos mil francos.

— Sem discussão! — respondi, como uma verdadeira Chaulieu do século xvii. — Mas, senhor, imponho uma condição ao meu reconhecimento: não fale desta edificação e do parque a quem quer que seja. Ninguém deve saber o nome do proprietário; prometa-me, sob palavra de honra, observar esta cláusula do meu pagamento.

Compreendes agora o motivo de minhas súbitas excursões, daquelas idas e vindas secretas? Vês agora onde se acham aquelas belas coisas que todos julgavam terem sido vendidas? Percebes a razão suprema da transformação da minha fortuna? Querida, amor é um assunto grave, e quem quiser amar bem não se pode ocupar de mais nada. O dinheiro, para mim, não constituirá mais uma preocupação; tornei a vida fácil e de uma vez por todas fiz-me de dona de casa, para não ser mais obrigada a sê-lo outra vez, salvo durante dez minutos todas as manhãs, com meu velho mordomo Felipe. Observei bem a vida e suas curvas perigosas; a morte, um dia, deu-me sérias lições, e quero aproveitá-las. Minha única ocupação será a de lhe agradar e amá-lo, e pôr variedade no que para os seres vulgares parece tão monótono.

Gastão nada sabe ainda. A meu pedido ele instalou-se, como eu, em Villed’Avray; partimos amanhã para o chalé. Nossa vida lá será pouco dispendiosa, mas, se te dissesse a quanto montam as minhas toilettes, dirias, e com razão: “Ela está louca!”. Quero enfeitar-me para ele, todos os dias, como as mulheres costumam enfeitar-se para a sociedade

Minha toilette no campo, durante todo o ano, custará vinte e quatro mil francos, e a do dia não é a mais cara. Ele, se quiser, poderá andar de blusa! Não vás pensar que eu queira tornar nossa vida um duelo e exaurir-me em combinações para manter o amor: não quero ter uma única censura a fazer-me, é tudo. Tenho treze anos ainda para ser uma mulher bonita, quero ser amada no último dia do décimo terceiro ano mais ainda do que o serei no dia seguinte ao das minhas misteriosas bodas. Dessa vez, serei sempre humilde, sempre grata, sem palavras cáusticas, e me farei serva, visto o comando me haver perdido da minha vez. Ó, Renata, se Gastão, como eu, compreendeu o infinito do amor, tenho certeza de viver sempre feliz. A natureza é belíssima em torno do chalé, os bosques são encantadores. A cada passo, as mais repousantes paisagens, perspectivas florestais dão prazer à alma, despertando ideias encantadoras. Essas matas estão cheias de amor. Contanto que eu tenha feito uma outra coisa que não a de me preparar uma magnífica fogueira! Depois de amanhã, serei sra. Gastão. Meu Deus, a mim mesma pergunto se é verdadeiramente cristão amar tanto a um homem.

— Enfim, é legal — disse-me o nosso procurador, o qual é uma das nossas testemunhas e que, ao ver, finalmente, o objetivo da liquidação da minha fortuna, exclamou: — Perco uma cliente.

Tu, minha bela corça, já não ouso dizer amada, tu podes dizer: — Perco uma irmã.

Meu anjo, dirige doravante tuas cartas à sra. Gastão, posta-restante, Versalhes. Todos os dias irão lá buscar nossa correspondência. Não quero que sejamos conhecidos na região. Mandaremos buscar nossas provisões em Paris. Assim, espero poder viver misteriosamente. Desde que esta propriedade está pronta, já faz um ano, não se viu nela ninguém, e a aquisição foi feita durante a agitação que se seguiu à Revolução de Julho. O único ser que se mostrou por aqui foi o meu arquiteto; só conhecem a ele, que não mais voltará. Adeus. Ao escrever-te esta palavra, tenho no coração tanto pesar quanto prazer: não é isso lamentar-te tão intensamente quanto amo Gastão?

continua pág 356...

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[1] O chalé de Luísa representa um dos grandes sonhos da vida de Balzac. Essa fabulosa propriedade perto de Paris é a imagem idealizada das Jardies, a vila que Balzac mandou construir na mesma região. Infelizmente, antes de poder transformá-lo em paraíso terrestre, teve de vendê-lo com perda sensível que aumentou ainda mais as suas terríveis dívidas.
[2] Milord: carro de quatro rodas, dois lugares, coberta e um assento elevado sobre o jogo dianteiro

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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Segunda Parte: Memórias de duas jovens esposas...
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (48)


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