domingo, 1 de janeiro de 2023

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (42a)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas


SEGUNDA PARTE


XLVIII – A BARONESA DE MACUMER À CONDESSA DE L’ESTORADE


15 de outubro de 1833


Pois sim, Renata, tens razão, disseram-te a verdade. Vendi o meu palacete, vendi Chantepleurs e as herdades de Seine-et-Marne; mas que eu esteja louca e arruinada, isso é demais. Demos um balanço! Uma vez realizada minha resolução, resta-me da fortuna de meu pobre Macumer cerca de um milhão e duzentos mil francos. Vou prestar-te contas fiéis como uma irmã compenetrada. Pus um milhão no três por cento, quando estava a cinquenta francos, e realizei assim sessenta mil francos de renda, em vez de trinta mil, que tinha em propriedades. Ir durante seis meses do ano à província, escriturar arrendamentos, ouvir os queixumes dos granjeiros que pagam quando querem, aborrecer-me lá como um caçador em dia de chuva, ter produção para vender e cedê-la com prejuízo; morar em Paris num palacete que representa dez mil francos de renda, empregar fundos em cartórios de notários, esperar os interesses, ser obrigada a processar gente para conseguir o reembolso, estudar a legislação hipotecária; enfim, ter negócios em Nivernais, em Seine-et-Marne, em Paris, que fardo, que aborrecimentos, que contrariedades e que prejuízos para uma viúva de vinte e sete anos! Minha fortuna, agora, está em hipotecas sobre o orçamento. Em vez de pagar contribuições ao Estado, recebo dele, em pessoa, sem despesas, trinta mil francos cada seis meses, no Tesouro, de um lindo funcionário que me dá trinta notas de mil francos e que sorri ao ver-me. “E se a França entrar em bancarrota?”, dirás tu. Em primeiro lugar:

Je ne sais pas prévoir les malheurs de si loin. [1]

Mas nesse caso a França, quando muito, me cortará a metade de minha renda; ainda assim serei tão rica quanto o era antes de ter colocado meu dinheiro; depois, daqui até a catástrofe, terei recebido o dobro da minha renda anterior. A catástrofe só acontece de século em século, tem-se pois tempo de sobra para acumular um capital, fazendo economias. Enfim, não é o conde de l’Estorade par da França semi-republicana de julho? [2] Não é ele um dos sustentáculos da Coroa, oferecida pelo povo ao rei dos franceses? Posso eu ter receios quando tenho como amigo um presidente da Câmara do Tribunal de Contas, um grande financeiro? Atreve-te a dizer que estou louca! Calculo quase tão bem quanto teu rei cidadão. [3] Sabes o que pode dar essa sabedoria algébrica a uma mulher? O amor! Infelizmente é chegado o momento de te explicar os mistérios de meu procedimento, cujos motivos escapavam a tua perspicácia, a tua ternura curiosa, a tua finura. Caso-me numa aldeia das cercanias de Paris, secretamente. Amo, sou amada. Amo tanto quanto pode amar uma mulher que bem sabe o que é o amor. Sou amada tanto quanto um homem deve amar uma mulher por quem é adorado. Perdoa-me, Renata, por ter-me ocultado de ti, de todos. Se a tua Luísa ilude todos os olhares, se frustra todas as curiosidades, confessa que a minha paixão pelo meu pobre Macumer exigia esses enganos. L’Estorade e tu me haveríeis assassinado com desconfianças, entontecido com censuras. De resto as circunstâncias poderiam vir em auxílio de ambos. Só tu sabes o quanto sou ciumenta e me terias atormentado inutilmente. O que vais classificar de minha loucura, minha Renata, eu a quis realizar só por mim, a meu talante, obedecendo ao meu coração, como uma mocinha que engana a vigilância dos pais. Meu amante tem como única fortuna trinta mil francos de dívidas, que paguei. Que caso para observação! Vocês haviam de querer provar-me que Gastão é um aventureiro, e teu marido teria espionado esse querido garoto. Preferi estudá-lo eu mesma! Faz vinte e dois meses que ele me corteja; eu tenho vinte e sete anos, e ele, vinte e três. Entre mulher e homem, é enorme essa diferença de idade. Outra fonte de desgraça! Finalmente, ele é poeta, vivia do seu trabalho, podes deduzir com isso que ele vivia com muito pouco. Esse querido lagarto de poeta vivia mais tempo ao sol, construindo castelos no ar, do que à sombra de seu tugúrio a compor poemas. Ora, os escritores, os artistas, todos os que só vivem pelo pensamento, são em geral tachados de inconstância pelas pessoas positivas. Eles adotam e concebem tantos caprichos que é natural crer-se que a cabeça reage contra o coração. Apesar das dívidas pagas, apesar da diferença de idade, apesar da poesia, após nove meses de uma nobre defesa e sem lhe ter permitido que me beijasse a mão, depois dos mais castos e deliciosos amores, daqui a poucos dias, não me entrego, como há oito anos, inexperiente, ignorante e curiosa; dou-me e sou esperada com tão grande submissão que poderei protelar meu casamento para daqui a um ano; mas não há nisso o mínimo servilismo: há servidão e não submissão. Jamais se viu mais nobre coração, nem mais espírito na ternura, nem mais alma no amor, do que no meu pretendente. Ai de mim! Meu anjo, ele tem a quem sair! Vais saber a sua história em duas palavras.

O meu amigo não tem outro nome a não ser os de Maria-Gastão. É filho, não natural, mas adulterino, daquela formosa lady Brandon [4] de quem deves ter ouvido falar e que, por vingança, lady Dudley fez morrer de desgosto; uma horrível história que esse querido garoto ignora. Maria-Gastão foi posto por seu irmão, Luís Gastão, no colégio de Tours, de onde saiu em 1827. O irmão embarcou poucos dias depois de o ter ali colocado, indo tentar fortuna, segundo lhe disse uma velha que foi a sua providência. Esse irmão que se fez marujo escreveu-lhe, de longe em longe, cartas verdadeiramente paternais e que emanam de uma bela alma; mas continua a debater-se sempre longe. Na última carta, ele comunicava a MariaGastão sua nomeação ao posto de capitão de navio não sei em que república americana, pedindo-lhe que esperasse. Por desgraça, faz três anos que o meu pobre lagarto não recebe cartas; e quer tanto a esse irmão que desejava embarcar para ir procurá-lo. Nosso grande escritor Daniel d’Arthez impediu essa loucura e interessou-se nobremente por Maria-Gastão, a quem deu, muitas vezes, como me disse o poeta na sua enérgica linguagem, pasto e pousada. Efetivamente, imagina as atribulações dessa criança; ele julgou que o gênio era o mais rápido meio de fazer fortuna! Não é de fazer rir durante vinte e quatro horas? Desde 1828 até 1833 ele tentou, portanto, criar nome nas letras e levou, naturalmente, a mais horrível vida de angústias, de esperanças, de trabalho e de privações que se possa imaginar. Arrastado por uma ambição excessiva e apesar dos bons conselhos de d’Arthez, nada mais fez do que engrossar a bola de neve de suas dívidas. Entretanto, seu nome começava a aparecer quando o encontrei em casa da marquesa d’Espard. Lá, sem que Gastão o suspeitasse, senti-me simpaticamente atraída por ele, à primeira vista. Como é possível não o terem ainda amado? Como foi que o deixaram para mim? Oh! Ele tem talento e espírito, coração e orgulho; as mulheres se assustam sempre dessas grandezas completas. Não foi preciso cem vitórias para que Josefina entrevisse Napoleão no pequeno Bonaparte, seu marido? A inocente criatura julga saber quanto eu o amo! Pobre Gastão! Ele nem sequer o suspeita; mas a ti vou dizê-lo, é preciso que o saibas, porquanto, Renata, há nesta cota um pouco de testamento. Medita bem sobre as minhas palavras.

Neste momento, tenho a certeza de ser amada, tanto quanto uma mulher pode ser amada nesta terra, e tenho fé nessa adorável vida conjugal para a qual levo um amor que não conhecia... Sim, finalmente sinto o prazer da paixão experimentada. O que hoje todas as mulheres pedem ao amor, o casamento me vai dar. Sinto em mim por Gastão a adoração que eu inspirava ao meu pobre Felipe! Não sou senhora de mim, tremo diante desse garoto como o abencerragem tremia diante de mim. Enfim, amo mais do que sou amada; de tudo tenho medo, tenho os mais ridículos temores, temo ser abandonada, tremo de ficar velha e feia, quando Gastão estiver sempre jovem e belo, tremo de não lhe agradar bastante! Entretanto, creio possuir as faculdades, a dedicação, o espírito necessários, não para entretermos, mas para aumentar esse amor, longe da sociedade e na solidão. Se naufragar, se o magnífico poema deste amor secreto tiver de ter um fim, que digo, um fim! Se Gastão me amar um dia menos do que na véspera, se o perceber, Renata, fica sabendo que não é a ele e sim a mim a quem culparei. Não será culpa dele, e sim minha. Conheçome; sou mais amante do que mãe. Por isso digo-te, desde já, morreria, ainda que tivesse filhos. Antes de me comprometer comigo mesma, minha Renata, suplico-te, pois, se tal desgraça me atingisse, que sirvas de mãe aos meus filhos, eu tos legarei. Teu fanatismo pelo dever, tuas preciosas qualidades, teu amor pelas crianças, tua ternura por mim, tudo o que sei de ti, me tornaria a morte menos amarga, não me atrevo a dizer mais doce. Essa resolução firmada comigo mesma acrescenta um não sei quê de terrível à solenidade desse casamento; por isso não quero nele testemunhas que me conheçam; meu casamento será, pois, celebrado secretamente. Poderei tremer à vontade, não verei nos teus queridos olhos uma inquietação, e somente eu saberei que, ao assinar um novo contrato de casamento, posso assinar minha sentença de morte.

Não mudarei de opinião sobre esse pacto feito entre mim mesma e o eu em que me vou transformar; eu o confiei para que conheças a extensão de teus deveres. Caso-me com separação de bens, e, embora saiba que sou bastante rica para que possamos viver folgadamente, Gastão ignora a quanto monta minha fortuna. Em vinte e quatro horas distribuirei minha fortuna à minha vontade. Como nada quero de humilhante, fiz inscrever doze mil francos de renda em seu nome; ele os encontrará na sua secretária na véspera de nosso casamento, e, se não os aceitasse, eu suspenderia tudo. Foi preciso a ameaça de não desposá-lo para obter o direito de pagar suas dívidas. Estou fatigada de te haver escrito estas confissões; depois de amanhã dir-te-ei mais, pois sou obrigada a ir amanhã ao campo, durante todo o dia.

continua pág 352...

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[1] O texto exato deste verso de Racine é Je ne sais point prévoir les malheurs de si loin (“Não sei prever os infortúnios de tão longe”, Andrômaca, i, 2, 196).
[2] A França semirrepublicana de julho: a Coroa oferecida pelo povo ao rei dos franceses. A orgulhosa Luísa fala com certa ironia do regime liberal de Luís Filipe, que, no intervalo de seis anos, decorrido entre essa carta e a anterior, em julho de 1830, substituiu o regime absolutista de Carlos x. Sua ironia não poupa Renata e o marido desta, os quais, por motivos que a resposta a esta carta nos explicará, aderiram a um rei que recebeu sua coroa não de Deus, mas do povo.
[3] O rei-cidadão: Luís Filipe.
[4] Lady Brandon: a morte dessa personagem é contada na novela O romeiral; mas faltou tempo ao romancista para contar-lhe os antecedentes

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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Primeira Parte: Memórias de duas jovens esposas...
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1)
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (1a)
A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (2)
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