Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
Em seguida Balzac expõe a ciência do casamento. Mas percebe-se logo que não se trata para o marido de ser amado e sim de não ser enganado. Êle não hesitará em infligir à mulher um regime debilitante, vedando-lhe o acesso a qualquer cultura, embrutecendo-a com o único fim de salvaguardar a honra. Trata-se ainda de amor? Se quisermos encontrar um sentido nessas idéias brumosas e descosidas, há de parecer-nos que o homem tem o direito de escolher uma mulher com a qual satisfaça seus desejos em sua generalidade, generalidade que é o penhor de sua fidelidade; que desperte a seguir o amor da mulher empregando certas receitas. Mas será êle realmente amoroso se se casa por sua propriedade, por sua posteridade? E se não o é, como sua paixão poderá ser bastante irresistível para acarretar uma paixão recíproca? E ignorará Balzac realmente que um amor não compartilhado, longe de seduzir inelutàvelmente, importuna ao contrário e repugna? Percebe-se claramente toda a sua má-fé em Mémoires de deux jeunes Mariées, romance de tese e por cartas. Louise de Chaulieu pretende alicerçar o casamento no amor: por excesso de paixão mata seu primeiro marido; morre mais tarde em conseqüência da exaltação ciumenta que experimenta pelo segundo. Renée de FEstorade sacrificou seus sentimentos à razão, mas as alegrias da maternidade recompensam-na suficientemente e ela constrói uma felicidade estável. Indagamos primeiramente que maldição — senão um decreto do próprio autor — proíbe à apaixonada Louise a maternidade que almeja: o amor nunca impediu a concepção; e pensamos por outro lado que para aceitar alegremente os amplexos do esposo foi necessário que Renée tenha tido essa "hipocrisia" que Stendhal detestava nas "mulheres decentes". Balzac descreve a noite de núpcias nestes termos:
O bicho que chamamos marido, na tua expressão, desapareceu, escreve Renée a sua amiga. Vi, não sei em que tão doce noitada, um amante cujas palavras me penetravam a alma e nos braços de quem eu me apoiava com um prazer indizível... A curiosidade despertou em meu coração... Quero que saibas, entretanto, que nada faltou do que o amor mais delicado exige, nem esse imprevisto que é, por assim dizer, a honra desses momentos: as graças misteriosas que nossas imaginações lhe pedem, o arrebatamento que desculpa, o consentimento arrancado, as volúpias ideais de há muito entrevistas e que não subjugam a alma antes que a deixemos cair na realidade, todas as seduções houve com suas formas encantadoras.
Esse belo milagre não deve ter-se repetido muitas vezes, porquanto algumas cartas adiante encontramos Renée em lágrimas: "Antes eu era um ser, agora sou uma coisa"; e ela se consola de suas noites de "amor conjugai" lendo Bonald. Mas gostaríamos de saber em virtude de que receita o marido se transformou, no momento mais difícil da iniciação feminina, em um sedutor; as razões que Balzac nos dá em Physiologie du Mariage são sumárias: "Não inicie nunca o casamento com uma violação", ou vagas: "Aprender com habilidade os matizes do prazer, desenvolvê-los, dar-lhes um estilo novo, uma expressão original constituem o gênio do marido". Acrescenta, aliás, de imediato que: "Entre dois seres que não se amam, esse gênio é libertinagem". Ora, precisamente, Renée não ama Louis; e tal qual nos é descrito, de onde lhe vem esse "gênio"? Na verdade, Balzac escamoteou cinicamente o problema. Ignorou o fato de que não há sentimentos neutros e que a ausência de amor, o constrangimento, o tédio engendram menos facilmente uma amizade terna do que o rancor, a impaciência, a hostilidade. Ele é mais sincero em Le Lys dans la Vallée, e o destino da infeliz Mme de Mortsauf apresenta-se como bem menos edificante.
Reconciliar o casamento com o amor é uma tal façanha que se faz preciso nada menos do que uma intervenção divina para consegui-lo; é a solução a que se atém Kierkegaard através de complicados circunlóquios. Compraz-se em denunciar, em In Vino Veritas, o paradoxo do casamento:
Que estranha invenção o casamento! E o que o torna mais estranho ainda é que passa por uma gestão espontânea... E no entanto nenhuma gestão é tão decisiva... Um ato tão decisivo, deveria pois ser executado espontaneamente.
A dificuldade está no seguinte; o amor e a inclinação amorosa são inteiramente espontâneos, o casamento é uma decisão; entretanto, a inclinação amorosa deve ser despertada pelo casamento ou pela decisão: querer casar-se. Isso quer dizer que o que há de mais espontâneo deve ser ao mesmo tempo a decisão mais livre, e que o que, por causa da espontaneidade, é tão inexplicável, que se deve atribuir a uma divindade, deve ao mesmo tempo ocorrer em virtude de uma reflexão e de uma reflexão tão completa que dela resulta a decisão. Demais, uma das coisas não deve seguir-se à outra, a decisão não deve chegar por trás, pé ante pé; tudo deve acontecer simultaneamente; as duas coisas devem achar-se reunidas no momento do desfecho[1].
[1] Reflexões sobre o Casamento.
O que quer dizer que amar não é casar e que é difícil compreender como o amor pode tornar-se um dever. Mas o paradoxo não assusta Kierkegaard: todo o seu ensaio sobre o casamento é feito para elucidar esse mistério. É verdade que, concorda ele:
"A reflexão é o anjo exterminador da espontaneidade... Se fosse verdade que a reflexão devesse controlar a inclinação amorosa, nunca haveria casamento." Mas "a decisão é uma nova espontaneidade, obtida através da reflexão, sentida de maneira puramente ideal, espontaneidade que corresponde precisamente à da inclinação amorosa. A decisão é uma concepção religiosa da vida construída sobre dados éticos e deve, por assim dizer, abrir o caminho à inclinação amorosa e garanti-la contra todo perigo exterior ou interior". Eis por que "um verdadeiro esposo é ele próprio um milagre!... Poder reter o prazer do amor enquanto a existência reúne toda a força da seriedade sobre êle e sobre a bem-amada!"
Quanto à mulher, a razão não é seu quinhão, ela não tem "reflexão"; por isso passa "do imediatismo do amor ao imediatismo do religioso". Traduzida em linguagem clara, essa doutrina significa que um homem que ama se decide a casar por um ato de fé em Deus e que lhe deve garantir o acordo do sentimento com o compromisso; e que a mulher, desde que ama, deseja casar. Conheci uma velha senhora católica que, mais ingenuamente, acreditava "no amor sacramentai à primeira vista"; afirmava que no momento em que pronunciam o "sim" definitivo diante do altar, os esposos sentem o coração abrasar-se. Kierkegaard, em verdade, diz que anteriormente deve haver "inclinação", mas que esta possa durar toda uma existência não lhe parece menos milagroso.
Entretanto, na França, romancistas e dramaturgos do fim do século, menos confiantes na virtude do sacramento, procuram assegurar a felicidade conjugal por processos mais humanos; mais audaciosamente do que Balzac, encaram a possibilidade de integrar o erotismo no amor legítimo. Porto-Riche afirma, em Amoureuse, a incompatibilidade do amor sexual com a vida do lar: o marido, farto dos ardores da mulher, busca a tranquilidade junto de uma amante mais moderada. Mas, por instigação de Paul Hervieu, inscreve-se no código que o "amor" entre esposos é um dever. Marcel Prévost aconselha o jovem esposo a que trate a mulher como uma amante e evoca em termos discretamente libidinosos as volúpias conjugais. Bernstein faz-se o dramaturgo do amor legítimo: ao lado da mulher amoral, mentirosa, sensual, ladra, má, o marido surge como um ser equilibrado, generoso; e adivinha-se nele igualmente um amante potente e hábil. Como reação contra os romances de adultério aparecem numerosas apologias romanescas do casamento. A própria Colette cede ante essa onda moralizadora quando em L'Ingénue libertine, depois de ter descrito as cínicas experiências de uma recém-casada, inabilmente deflorada, resolve fazê-la conhecer a volúpia nos braços do marido. Do mesmo modo, Martin Maurice, em um livro de alguma repercussão, traz a jovem mulher, após breve incursão no leito de um amante hábil, para junto do marido a quem faz beneficiar-se da experiência. Por outras razões e de outra maneira, os norte- -americanos de hoje, que são a um tempo respeitosos da instituição conjugal e individualistas, multiplicam os esforços de integração da sexualidade no casamento. Aparecem anualmente numerosas obras de iniciação à vida conjugai e destinadas a ensinar os cônjuges a se adaptarem um ao outro, e em particular ao homem, a como criar uma harmonia feliz com a mulher. Psicanalistas e médicos desempenham o papel de "conselheiros conjugais"; admite-se que a mulher também tem direito ao prazer e que o homem deve conhecer as técnicas suscetíveis de dar-lhe esse prazer. Mas já vimos que o êxito sexual não é unicamente uma questão de técnica. Ainda que o rapaz tenha aprendido de cor vinte manuais tais como O Que Todo Marido Deve Saber, O Segredo da Felicidade Conjugal, 0 Amor Sem Medo, não é certo que saberá com isso fazer-se amar por sua jovem esposa. É ao conjunto da situação psicológica que esta reage. O casamento tradicional está longe de criar as condições mais favoráveis ao despertar e ao desabrochar do erotismo feminino.
Outrora, nas comunidades de direito materno, não se exigia a virgindade da jovem esposa; por razões místicas, devia ela até sei deflorada antes da núpcias. Em certas zonas rurais da França, observam-se ainda sobrevivências dessas antigas licenças; não se exige das moças a. castidade pré-nupcial; e as jovens que "erraram" — inclusive mães solteiras — encontram mesmo marido mais facilmente do que as outras. Por outro lado, nas esferas em que a emancipação feminina é aceita, reconhece-se às moças a mesma liberdade sexual que se reconhece aos rapazes. Entretanto, a ética paternalista reclama imperiosamente que a noiva seja entregue virgem ao esposo; este quer ter certeza de que ela não traz em si um germe estranho; quer a propriedade integral e exclusiva dessa carne que torna sua [2] ; a virgindade adquiriu um valor moral, religioso e místico e esse valor é ainda geralmente reconhecido hoje. Na França, há regiões em que os amigos do casado ficam atrás da porta do quarto nupcial, riem e cantam até que o esposo venha triunfalmente expor aos olhos deles o lençol manchado de sangue; ou então os pais exibem-no pela manhã às pessoas da vizinhança [3]. Sob uma forma menos brutal, o costume da "noite de núpcias" está ainda muito espalhado. Não é por acaso que isso suscitou toda uma literatura galhofeira: a separação entre o social e o animal engendra necessariamente a obscenidade. Uma moral humanista exige que toda experiência viva tenha um sentido humano, que seja habitada por uma liberdade; numa vida erótica autenticamente moral, há livre assumpção do desejo e do prazer, ou, pelo menos, luta patética para reconquistar a liberdade no seio da sexualidade: mas isso só é possível se um reconhecimento singular do outro se efetuou no amor e no desejo. Quando a sexualidade não precisa mais ser salva pelo indivíduo, porque é Deus ou a sociedade que pretendem justificá-la, a relação dos dois parceiros é apenas uma relação bestial. Compreende-se que as matronas bem-pensantes falem com repugnância das aventuras da carne: elas as rebaixaram ao nível de funções escatológicas. É por isso também que, nos banquetes nupciais, se ouvem tantos risos grosseiros. Há um paradoxo obsceno na superposição de uma cerimônia pomposa a uma função animal de uma realidade brutal. O casamento expõe sua significação universal e abstrata: um homem e uma mulher unem-se de acordo com ritos simbólicos sob os olhares de todos; mas no segredo do leito são indivíduos concretos e singulares que se enfrentam e todos os olhares se desviam de seus amplexos. Colette, assistindo, com a idade de 13 anos, a um casamento de camponeses, foi tomada de horrível confusão quando uma amiga a levou a ver o quarto nupcial (Cf. La Maison de Claudine):
[2] Ver vol. I, Os Mitos.
[3] "Ainda hoje em certas regiões dos Estados Unidos, os imigrantes de primeira geração enviam o lençol ensanguentado à família que ficou na Europa como prova da consumação do casamento", diz o relatório Kinsey.
O quarto dos jovens casados... Sob cortinas de algodão barato, a cama estreita e alta de colchão de plumas, cheia de travesseiros de penugem de ganso, a cama onde termina esse dia fumegante de suor, de incenso, de gado, de odores de molhos... Dentro em pouco, os jovens esposos chegarão. Eu não pensara nisso. Mergulharão nesta pluma profunda... Haverá entre eles a luta obscura acerca da qual a candura intrépida de minha mãe e a vida dos bichos ensinaram-me demais e de menos. E depois? Tenho medo deste quarto e deste leito em que não pensara.
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O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
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