Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
Eis um testemunho mais cru. É uma confissão recolhida por Stekel e de que cito um trecho concernente à vida conjugai. Trata-se de uma mulher de 28 anos, educada em um meio requintado e culto.
Eu era uma noiva feliz; enfim, tinha a sensação de estar relegada a um canto e, de repente, me tornava alguém que atraía a atenção. Era mimada, meu noivo admirava-me, tudo era novo para mim...
Os beijos (meu noivo nunca tentara outras carícias) tinham-me inflamado a ponto de não poder esperar o dia do casamento... Na manhã desse dia, sentia-me de tal maneira excitada que minha camisa ficou imediatamente molhada de suor. Era apenas a ideia de que ia conhecer enfim o desconhecido que eu tanto desejara. Imaginava infantilmente que o homem devia urinar na vagina da mulher... No quarto houve logo uma pequena decepção quando meu marido me perguntou se devia afastar-se. Pedi-lhe que o fizesse, pois tinha realmente vergonha diante dele. O momento de despir desempenhara papel importante em minha imaginação. Ele voltou meio embaraçado quando me deitei. Mais tarde confessou-me que meu aspecto o intimidara: eu era a encarnação da juventude radiosa e cheia de esperança. Mal se despiu, apagou a luz. E mal me beijou, tentou imediatamente possuir-me. Eu estava muito amedrontada e pedi-lhe que me deixasse tranquila. Desejava estar muito longe dele. Horrorizava-me aquela tentativa sem carícias prévias. Achava-o brutal e por isso o censurei muitas vezes mais tarde: não era brutalidade mas uma grande inabilidade e uma falta de sensibilidade. Todas as suas tentativas foram vãs durante a noite. Comecei a sentir-me muito infeliz, tinha vergonha de minha estupidez, acreditava-me culpada e mal feita... Finalmente contentei-me com seus beijos. Dez dias depois, ele conseguiu afinal deflorar-me, o coito durou apenas alguns segundos e, a não ser uma ligeira dor, nada senti. Foi uma grande decepção. Posteriormente senti alguma alegria durante o coito mas o êxito fora assaz penoso, meu marido sofria ainda para alcançar seu objetivo... Em Praga, na garçonniere de meu cunhado, imaginava as sensações que ele teria ao saber que eu dormira em sua cama. Foi aí que tive meu primeiro orgasmo e fiquei muito feliz com isso. Meu marido fez amor comigo todos os dias durante as primeiras semanas. Eu atingia o orgasmo mas não me sentia satisfeita porque era rápido demais e eu ficava excitada a ponto de chorar... Depois de dois partos o coito foi-se tornando cada vez menos satisfatório. Provocava raramente o orgasmo, meu marido tinha-o sempre antes de mim; eu observava cada sessão ansiosamente (quanto tempo vai ele continuar?). Se, satisfeito, me largava ao meio, eu o odiava. Por vezes, pensava em meu primo durante o coito, ou no médico que me assistira no parto. Meu marido tentou excitar-me com o dedo... Excitava-me muito mais, mas ao mesmo tempo eu achava que esse meio era vergonhoso e anormal e não conseguia gozar... Durante todo o tempo de nosso casamento nunca ele acariciou um só pedaço de meu corpo... Certo dia, confessou-me que nada ousava fazer comigo... Nunca me viu nua porque conservávamos nossas camisas de dormir e ele só fazia amor à noite.
Essa mulher, que era em verdade muito sensual, foi posteriormente muito feliz nos braços de um amante
O noivado destina-se precisamente a criar gradações na iniciação da jovem; mas muitas vezes os costumes impõem aos noivos uma exagerada castidade. No caso em que a virgem "conhece" seu futuro marido durante esse período a situação não difere muito da da jovem esposa: ela só cede porque o compromisso já lhe parece tão definitivo quanto um casamento e o primeiro coito conserva o caráter de uma prova; a partir do momento em que se entrega, ainda que não engravide — o que a amarraria ainda mais — é raro que ouse voltar atrás.
As dificuldades das primeiras experiências são facilmente superadas se o amor ou o desejo arrancam dos parceiros um consentimento total; o amor físico tira sua força e dignidade da alegria que se dão e possuem os amantes na consciência recíproca de sua liberdade. Então nenhuma de suas práticas é infame, porquanto não é suportada por nenhum deles e sim generosamente aceita. Mas o princípio do casamento é obsceno porque transforma em direitos e deveres uma troca que deve basear-se num impulso espontâneo. Ele dá aos corpos, forçando-os a se apreenderem em sua generalidade, um caráter instrumental, portanto degradante. 0 marido congela-se, muitas vezes, à ideia de que cumpre um dever, a mulher tem vergonha de se sentir entregue a alguém que exerce um direito sobre ela. Naturalmente, pode acontecer que no início da vida conjugai as relações se individualizem; o aprendizado sexual faz-se, por vezes, através de lentas gradações; desde a primeira noite pode surgir entre os esposos uma feliz atração física. 0 casamento facilita o abandono da mulher, suprimindo a noção de pecado tão ligada ainda à carne; uma coabitação regular e frequente engendra uma intimidade carnal propícia à maturação sexual; há esposas privilegiadas durante os primeiros anos do casamento. É de notar que ficam a tal ponto reconhecidas ao marido que são levadas mais tarde a perdoar-lhe todas as culpas que possa ter. "Ás mulheres que não podem desprender-se de um lar infeliz foram sempre satisfeitas pelo marido", diz Stekel. Como quer que seja, a jovem corre um risco terrível ao se comprometer a dormir a vida inteira com um homem que ela não conhece sexualmente, quando seu destino erótico depende essencialmente da personalidade de seu parceiro: é o paradoxo que Léon Blum denunciava com razão em sua obra: Le Mariage.
Pretender que uma união baseada na conveniência tem muitas possibilidades de engendrar o amor é uma hipocrisia. Exigir de dois esposos ligados por interesses práticos, sociais e morais que durante toda a vida dispensem a volúpia é um absurdo. Entretanto, os partidários do casamento de conveniência não têm dificuldade em mostrar que o casamento por amor não comporta tampouco muitas possibilidades de assegurar a felicidade dos cônjuges. Primeiramente o amor ideal, que é amiúde o que a jovem conhece, nem sempre a predispõe ao amor sexual; adorações platônicas, devaneios, paixões em que ela projeta obsessões infantis ou juvenis não se destinam a suportar a prova da vida quotidiana nem a se perpetuarem. E mesmo existindo entre a jovem e o noivo uma atração erótica sincera e violenta, não há nisso uma base sólida para edificar uma vida.
A volúpia ocupa no deserto ilimitado do amor um ardente e pequeno lugar, tão abrasado, entretanto;, que a princípio não se vê senão ele, escreve Colette em La Vagabonde. Em volta desse foco inconstante é o desconhecido, o perigo. Quando tivermos despertado de um curto amplexo ou até de uma longa noite, será preciso começar a viver um perto do outro, um para o outro.
Ademais, mesmo no caso em que o amor carnal existe antes do casamento, ou desperta no início das núpcias, é muito raro que dure durante muitos anos. Sem dúvida a fidelidade é necessária ao amor sexual, pelo fato de que o desejo de dois amantes apaixonados envolve sua singularidade; êles recusam que esta seja contestada por experiências estranhas se se querem insubstituíveis um para o outro; mas essa fidelidade só tem sentido na medida em que é espontânea; e espontaneamente a magia do erotismo dissipa-se bastante depressa. o milagre está em que a cada amante ele entrega no instante, em sua presença carnal, um ser cuja existência é uma transcendência indefinida: a posse desse ser é sem dúvida impossível, mas pelos menos é ele atingido de maneira privilegiada e pungente. Mas quando os indivíduos não aspiram mais a se atingir porque há entre eles hostilidade, nojo, indiferença, a atração erótica desaparece; e morre de uma maneira quase tão certa na estima e na amizade, pois dois seres humanos que se unem no próprio movimento de sua transcendência, através do mundo e de seus empreendimentos comuns, não precisam mais unir-se carnalmente; e por ter perdido sua significação esta união inspira-lhes repugnância. A palavra incesto que Montaigne pronuncia é profunda. 0 erotismo é um movimento para o Outro; nisso reside seu caráter essencial. Mas no seio do casal os cônjuges tornam-se o Mesmo um para o outro; nenhuma troca é mais possível entre eles, nenhum dom, nenhuma conquista. Por isso, se continuam amantes, fazem-no o mais das vezes com vergonha: sentem que o ato sexual não é mais uma experiência intersubjetiva, em que cada qual se ultrapassa, e sim uma espécie de masturbação em comum. Que cada um considere o outro um utensílio necessário à satisfação de suas necessidades, é um fato que a delicadeza conjugai dissimula mas que se evidencia fortemente desde que essa delicadeza seja recusada, como o demonstram as observações do Dr. Lagache em sua obra Nature et forme de la jalousie; a mulher encara o membro viril como determinada provisão de prazer que lhe pertence e de que se mostra tão avara como das conservas encerradas em seus armários: se o homem der alguma coisa dessa provisão à vizinha, não lhe sobrará o necessário; ela examina com desconfiança as cuecas do marido para ver se não desperdiçou o precioso sêmen. Jouhandeau assinala em Chroniques maritales essa "censura quotidiana exercida pela mulher legítima que nos espia a camisa e o sono para surpreender neles o sinal da ignomínia". Por seu lado, o homem nela satisfaz seus desejos sem lhe pedir a opinião.
Essa satisfação brutal da necessidade não basta, de resto, para satisfazer a sexualidade humana. Eis por que há, nos amplexos que se encaram como os mais legítimos, um vago sabor de vício. É frequente que a mulher apele para fantasmas eróticos. Stekel cita o caso de uma mulher de 25 anos que "pode sentir um ligeiro orgasmo com o marido, imaginando que um homem forte e mais idoso a possui sem lhe pedir e de modo que ela não pode defender-se". Imagina que a violentam, que a batem, que o marido não é ele próprio e sim um outro. Ele acarinha o mesmo sonho: no corpo da mulher, possui as coxas de tal ou qual dançarina entrevista num music-hall, os seios da pin-up cuja fotografia contemplou, uma recordação, uma imagem; ou então imagina a mulher desejada, possuída, violentada, o que constitui uma maneira de devolver-lhe a alteridade perdida. "O casamento, diz Stekel, cria transposições grotescas e inversões, atores requintados, comédias representadas entre parceiros que ameaçam destruir toda fronteira entre a aparência e a realidade." No extremo limite, vícios definidos aparecem: o marido faz-se voyeur: precisa ver a mulher dormindo com um amante ou saber que o faz, para reencontrar um pouco de sua magia; ou esforça-se sadicamente para que ela se recuse de maneira a que enfim a consciência e a liberdade dela se afirmem e que assim possua um ser humano de verdade. Inversamente, condutas masoquistas esboçam-se na mulher que procura suscitar, no homem, o senhor, o tirano que ele não é. Conheci uma senhora educada num convento, muito devota, autoritária e dominadora durante o dia e que à noite rogava apaixonadamente ao marido que a flagelasse, do que êle se desobrigava com horror. O próprio vício assume no casamento urn aspecto organizado e frio, um aspecto sério que faz dele o mais triste mal menor.
A verdade é que o amor físico não pode ser tratado nem como um fim absoluto nem como um simples meio: não pode justificar uma existência, mas não pode tampouco receber nenhuma justificação estranha. Isso equivale a dizer que deveria desempenhar em toda vida humana um papel episódico e autônomo. Isso equivale a dizer que deveria ser livre.
Por isso mesmo não é o amor que o otimismo burguês promete à jovem esposa: o ideal que lhe acenam é o da felicidade, isto é, o de um tranquilo equilíbrio no seio da imanência e da repetição. Em certas épocas de prosperidade e de segurança esse ideal foi o de toda burguesia e particularmente o dos proprietários fundiários que não visavam à conquista do futuro e do mundo, mas sim à manutenção tranquila do passado, o status quo. Uma mediocridade dourada, sem ambição nem paixão, dias que não conduzem à parte alguma e que recomeçam indefinidamente, uma vida que desliza docemente para a morte sem procurar razões que a expliquem, eis o que propugna, por exemplo, o autor do Sonnet du bonheur. Essa pseudo-sabedoria, molemente inspirada em Epicuro e Zenon, carece hoje de crédito; conservar e repetir o mundo tal qual é, não parece nem desejável nem possível. A vocação do homem é a ação; ele precisa produzir, criar, progredir, ultrapassar-se em direção à totalidade do universo e à infinidade do futuro; mas o casamento tradicional não convida a mulher a transcender com ele; confina-a na imanência. Ela não pode portanto nada se propor, a não ser construir uma vida equilibrada, em que o presente, prolongando o passado, escape às ameaças do dia seguinte, isto é, precisamente, edificar uma felicidade. Na falta de amor, ela terá pelo marido um sentimento terno e respeitoso chamado amor conjugai; ela encerrará o mundo entre as paredes do lar que será encarregada de administrar; perpetuará a espécie humana através do futuro. Entretanto, nenhum existente jamais renuncia a sua transcendência ainda que se obstine em renegá-la. O burguês de outrora pensava que, conservando a ordem estabelecida, manifestando-lhe as virtudes pela sua prosperidade, servia Deus, seu país, um regime, uma civilização: ser feliz era cumprir sua função de homem. Para a mulher também é preciso que a vida harmônica do lar seja ultrapassada em direção a dados fins: o homem é que servirá de intermediário entre a individualidade da mulher e o universo, ele é que revestirá de um valor humano a contingente facticidade dela. Haurindo junto da esposa a força de empreender, de agir, de lutar, é ele quem a justifica: que ela lhe entregue nas mãos a existência e ele lhe dará um sentido. Isso faz supor da parte dela uma humilde renúncia; mas ela é recompensada, porque, guiada, protegida pela força do homem, escapará ao abandono original; tornar-se-á necessária. Rainha em sua colmeia, repousando tranquilamente em si mesma no coração de seu domínio, mas levada pela mediação do homem através do universo e do tempo, a mulher encontra no casamento a força de viver e ao mesmo tempo o sentido de sua vida. Cumpre-nos ver como esse ideal se traduz na realidade.
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O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
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