terça-feira, 4 de julho de 2023

Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 4 (4a)

 Ópera do malandro



Chico Buarque 
 

Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
 

"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran


SEGUNDO ATO

CENA 4


Casa de Duran; Duran e Vitória estão à janela, observando a multidão lá fora; continua o canto da cena anterior, acrescido de gritos e sussurros.


DURAN
Estão todos esperando um aceno meu, Vitória! São dez mil cabeças, fora as perucas das nossas funcionárias. Sabe como é que estou me sentindo? Igualzinho ao Moisés na margem do mar Vermelho! Só fico puto que o que me custa duzentos contos, aquele judeu conseguiu de graça.

VITÓRIA
Eu estou tão preocupada, Duran.

DURAN
Que é isso, Vitória, tô só especulando. E eu sou lá maluco de gastar duzentos contos com vagabundo? O pagamento tá marcado pro final da passeata. Como não vai haver passeata...

VITÓRIA
O que me apavora é o cheiro dessa gente. . . É um troço pegajoso. Já tomei cinco banhos de Shalimar e continua parecendo que sou eu que estou cheirando a povo.

DURAN
Olha o Chaves chegando aí. E pela cara do desgraçado, vem de mão vazia. Olha, Vitória, em último caso, se a polícia não pegar o Max, é evidente que a gente suspende a passeata do mesmo jeito. Isso aí tá engrossando muito e pode dar complicação. Sem falar nos duzentos contos. Mas se o Chaves suspeitar que a gente tá vacilando, aí então é que ele faz corpo mole. Segura firme, Vitória!

Entra Chaves

DURAN
E então? Exterminou o bandido? Parabéns, Chaves! Deve ter sido duro pra você. Mas eu gostei. Você foi pragmático! Ainda chega a senador. . .

CHAVES
Muito bem, senhores. Acabo de descobrir que posso processar vocês dois por incitamento à baderna.

VITÓRIA
Aceita um chá de camomila, inspetor?

CHAVES
Camomila o cacete! Eu não posso permitir que uma minoria insignificante perturbe a ordem pública dessa maneira! Os senhores façam o favor de conter essa manifestação imediatamente!

DURAN
Mas quem sou eu, Chaves? A polícia é você!

CHAVES
Tu não quer solução pacífica? Tá bem. Eu prendo essas putas todas!

DURAN
Prende mesmo, é fácil. Isso aí é realmente uma minoria insignificante. É tudo gente aprumada na vida, gente asseada, assalariada, umas proletárias de luxo. Mas se você prestar atenção à janela, vai notar que vem aí outro tipo de gente. Quem vai protestar na rua são os milhares de desempregados desta cidade, esses sim, com toneladas de motivos. Sem falar nos subempregados, nos engraxates, nos lambe-botas, nos vendedores de bugigangas. Vagabundo então, não pode ver aglomerado que vai logo se enfiando no meio. E se tanta gente imunda e miserável vai pra rua, por que não haverão de sair os aleijados? Ah, não, esses não vão perder a chance de exibir seus tocos à luz do dia. Junta os leprosos, os bêbados, os toxicômanos, e só aí a tua minoria já foi à merda. Mais os tuberculosos, os maleitosos, os sifilíticos, os epiléticos, os débeis mentais, os menores abandonados, os velhinhos desamparados, as bichas, os pretos e os curiosos, e se prepare pra prender noventa por cento da população do Rio de Janeiro! São um milhão e setecentos mil cadáveres pra boiar no rio da Guarda.

CHAVES
Porra! Um milhão e setecentos mil presuntos é encomenda pra atacadista. Tu sempre encomendou no varejo, Duran.

DURAN
Um momento, inspetor! Cuidado com o que diz! Denunciar criminosos é dever de todo cidadão honesto. Já não se pode dizer o mesmo de quem pratica a pena de morte ao arrepio da lei.

CHAVES
Que é que tu quer dizer?

DURAN
Minha maneira de contribuir para a redução da marginalidade é empregar mil quatrocentos e trinta e dois funcionários fixos. Além de outros dez mil que eu ajudo aqui e ali. Mas você não, você tá tingindo os subúrbios com o sangue dos mendigos e dos adversários. Não adianta, Chaves, você não me enquadra. A minha bíblia é a Constituição da República e as leis trabalhistas são o meu breviário. Você já ouviu falar em lei? Em Constituição?

CHAVES
Eu não tô no banco dos réus pra ser julgado assim.

DURAN 
Mas vai estar, inspetor, vai estar logo logo. E quem vai te julgar não sou eu não, vai ser esse povo aí fora. Você não lê jornal, lê? Pois fique sabendo que os alemães perderam as calças em Stalingrado. Os aliados já ocuparam o norte da África. Os ingleses e os americanos já desembarcaram em Nápoles, viu? Mussolini tá perigando. Enfim, pra teu governo, o nazi-fascismo tá no fim!

CHAVES
Pra meu governo? E tu, como é que fica? Afinal, nós fomos colegas na Ação Integralista. . .

DURAN
Mas você é casca-grossa mesmo. Continua fazendo uma confusão grosseira entre a filosofia integralista e a delinquência de alguns sádicos nazistas. Olha, Chaves, outro dia houve um levante no gueto de Varsóvia. Logo outros guetos vão-se levantar e, mais dia menos dia, todos os perseguidos nesta guerra vão exigir justiça. Os nazistas vão pagar caro por seus crimes. Haverá tribunais populares em todos os cantos do mundo. E o que é que te faz pensar que aqui no Brasil os criminosos vão ficar impunes? Hein? Como é que o Hitlerzinho da Lapa vai-se safar desta, hein? Calcule a indignação da opinião pública quando forem denunciadas as atrocidades cometidas por um certo inspetor Chaves, mais conhecido por Tigrão, o facínora. . .

CHAVES
Não, Duran, por favor, chega!

DURAN
Liquidou o bandido?

CHAVES
Eu fiz o possível e o impossível!

DURAN
Vais ter um nobre destino. Igualzinho à dona Maria Antonieta. A não ser, é claro, que você use a cabeça e me apresente a cabeça do teu amigo. Aí, quem sabe, dá-se um jeitinho, né? Mas acho que já nem dá tempo, inspetor.

CHAVES
Me acredita, Duran! Botei todas as patrulhas pra caçar aquele desgraçado. Toda a força pública, bombeiro, cachorro, fuzileiro naval, DIP, tudo. Vasculhei os covins, fechei os cassinos, invadi as pensões, bloqueei as estradas, parei os trens, interditei o Santos Dumont, o serviço de barcas, e nada! A esta altura ele já deve estar longe. . . O país tem oito mil quilômetros de fronteira!

DURAN
Pois é. Igualzinho à dona Maria Antonieta. Tribunais populares. . . Cabeças rolando. . . Aliás, os moleques de rua vão adorar bater umas peladas com o teu coco.

CHAVES
Ai, meu Deus, a vida já não tem sentido pra mim! Duran, pelo amor que tu tem a Cristo, me atende um último desejo! Dona Vitória, pelo amor da tua filha, me escuta! Eu também tenho uma filha... Ela vai ficar desamparada no mundo. Promete que cuida dela, dona Vitória? Duran, tu emprega Lúcia num dos teus puteiros? Me promete isso e eu morro sossegado!

continua pág 115 ...

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NOTA 

O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A  equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes. 

Chico Buarque Rio, junho de 1978


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Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio  a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.

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