volume III
O Caminho de Guermantes
Primeira Parte
Primeira Parte
No começo não foram senão vagas trevas, onde a gente via, de súbito, como o raio de uma pedra preciosa que não se enxerga, a fosforescência de dois olhos célebres, ou, como um medalhão de Henrique IV destacado sobre um fundo negro, o perfil inclinado do duque de Aumale, a quem uma dama invisível gritava:
- Monsenhor, permita-me que lhe tire o sobretudo. - ao passo que o príncipe respondia:
- Mas, ora, por quem é, senhora de Ambresac. - Ela o fazia, não obstante esse vago protesto, e era invejada de todos por causa de tal honra.
Mas, nas outras frisas, quase por toda parte, as brancas deidades que moravam nessas sombrias paragens se haviam refugiado de encontro às paredes obscuras e permaneciam invisíveis. Contudo, à medida que o espetáculo prosseguia, suas formas vagamente humanas se destacavam debilmente, uma após outra, das profundezas da noite que alcatifavam e, erguendo-se para a luz do dia, deixavam emergir seus corpos seminus e vinham parar no limite vertical e na superfície claro-escuro, onde seus rostos brilhantes surgiam por trás do desfraldar risonho, espumoso e leve de seus leques de plumas, sob suas cabeleiras de púrpura entretecidas de pérolas que a ondulação da maré parecia ter encurvado; depois começavam as cadeiras da primeira fila, o remanso dos mortais para sempre separado do reino sombrio e transparente ao qual, aqui e ali, serviam de fronteira, em sua superfície líquida e plana, os olhos límpidos e reflexivos das deusas das águas. Pois as "ostras" das margens, as formas dos monstros da orquestra, se pintavam nesses olhos segundo unicamente as leis da ótica e de acordo com o seu ângulo de incidência, como acontece no caso dessas duas partes da realidade exterior, às quais, sabendo nós que não possuem alma análoga à nossa, por mais rudimentar que seja, julgaríamos insensato dirigir um sorriso ou um olhar: os minerais e as pessoas com quem não temos relações. Aquém, ao contrário, do limite de seu domínio, as radiosas filhas do mar se voltavam a todo instante, sorrindo, para os tritões barbudos pendurados nas anfractuosidades do abismo, ou para algum semideus aquático que ostentava por crânio uma pedra polida, sobre a qual a onda colara uma alga lisa, e por olhar um disco de cristal de rocha. Elas se debruçavam para eles, ofertavam-lhes bombons; às vezes, a onda se entreabria diante de uma nova nereida que, atrasada, sorridente e confusa, acabava de desabrochar do fundo das sombras; depois, terminado o ato, sem mais esperar ouvir os rumores melodiosos da terra que as atraíra à superfície, todas mergulhando a um só tempo, as irmãs divinas desapareciam na noite. Mas de todas estas pousadas, a cujo limiar a leve preocupação de perceber as obras dos homens levava essas deusas curiosas, que não deixam ninguém chegar perto, a mais célebre era o bloco de semiobscuridade conhecido pelo nome de camarote da princesa de Guermantes.
Como uma grande deusa que preside de longe aos jogos das divindades inferiores, a princesa permanecera voluntariamente um pouco ao fundo, sobre um canapé lateral, vermelho como um rochedo de coral, ao lado de uma larga reverberação de vidro que era provavelmente um espelho, e fazia pensar em alguma secção que um raio teria efetuado, perpendicular, obscura e líquida, no cristal ofuscante das águas. Ao mesmo tempo pluma e corola, bem como certas florações marinhas, uma grande flor branca, penugenta como uma asa, descia da testa da princesa ao longo de uma das faces, cuja inflexão seguia com graciosa, adorável e viva flexibilidade, e parecia encerrá-la a meio, como um rosado ovo, na doçura de um ninho de alcione. Sobre a cabeleira da princesa, descendo até suas sobrancelhas, e depois retomada mais abaixo à altura da garganta, estendia-se uma coifa composta dessas conchas brancas que são pescadas em certos mares austrais e que estavam mescladas a pérolas, mosaico marinho mal saído das ondas que por momentos se achava mergulhado na sombra, em cujo fundo, mesmo então, se revelava uma presença humana pela mobilidade deslumbrante dos olhos da princesa. A beleza que colocava esta bem acima das outras mulheres fabulosas da penumbra não era inteiramente material e não estava inclusivamente inscrita em sua nuca, nos seus ombros, nos braços, no seu talhe. Mas a linha deliciosa e inacabada desse talhe era o preciso ponto de partida, o chamariz inevitável de linhas invisíveis nas quais o olho não podia se evitar de prolongá-las, maravilhosas, engendradas ao redor da mulher como o espectro de uma figura ideal projetada nas trevas.
- É a princesa de Guermantes.- disse a minha vizinha ao senhor que estava com ela, tendo o cuidado de pôr diante da palavra princesa vários pp, indicando que semelhante apelativo era risível. - Ela não economizou suas pérolas. Creio que se tivesse outro tanto delas, não faria uma tal ostentação; não acho que seja distinto.
Entretanto, reconhecendo a princesa, todos os que procuravam saber quem estava na sala sentiam erguer-se no seu coração o trono legítimo da beleza. Com efeito, no caso da duquesa de Luxemburgo, da Sra. de Morienval, da Sra. de Saint-Euverte, no caso de tantas outras, o que permitia identificar-lhes os rostos era a conexão de um grosso nariz vermelho com um focinho-de-lebre ou duas faces enrugadas com um fino bigode. Aliás, esses traços eram suficientes para encantar, visto que, tendo apenas o valor convencional de uma escrita, davam a ler um nome célebre que se impunha; mas também acabavam por dar a ideia de que a feiura tem algo de aristocrático e que é indiferente que o rosto de uma grande dama seja belo, se é distinto. Mas como certos artistas que, em vez das letras do próprio nome, põem na parte inferior de suas telas uma forma bonita por si mesma, uma borboleta, um lagarto, uma flor, da mesma maneira era a forma de um corpo e um rosto delicioso o que a princesa punha ao canto de seu camarote, mostrando assim que a beleza pode ser a mais nobre das assinaturas; pois a presença da Sra. de Guermantes, que só levava ao teatro pessoas que durante todo o tempo faziam parte de sua intimidade, era, aos olhos dos amadores da aristocracia, o melhor certificado de autenticidade do quadro que seu camarote apresentava, espécie de evocação de uma cena da vida familiar e própria da princesa nos seus palácios de Munique e de Paris.
Sendo a nossa imaginação como um realejo defeituoso que sempre toca uma coisa diversa da ária indicada, a lembrança de certas obras do século XVI começava a cantar em mim sempre que ouvia falar da princesa de Guermantes-Baviera. Precisava despojá-la agora dessas recordações, já que a via no ato de oferecer bombons cristalizados a um corpulento senhor de fraque. Claro que estava bem longe de concluir daí que ela e seus convidados fossem criaturas semelhantes às outras. Compreendia perfeitamente que o que faziam ali não passava de um jogo e que, para preludiar os atos de sua vida verdadeira (cuja parte importante, sem dúvida, não era aqui que a viviam), era conveniente, em virtude de ritos de mim ignorados, que fingissem ofertar ou recusar bombons, gesto destituído de sua significação e antecipadamente regulado como o passo de uma dançarina, que sucessivamente se ergue na ponta dos pés e gira ao redor de uma faixa. Quem sabe? Talvez no momento em que oferecia seus bombons, a Deusa dissesse num tom de ironia (pois eu a via sorrir):
- Querem bombons? - Que me importava? Eu teria achado de um requinte delicioso a secura intencional, à Mérimée ou à Meilhac, dessas palavras dirigidas por uma deusa a um semideus, que, ele sim, sabia quais eram os pensamentos sublimes que ambos resumiam, sem dúvida para o momento em que recomeçassem a viver sua vida verdadeira, e que, prestando-se a esse jogo, respondia com a mesma e misteriosa malícia:
- Sim, quero um de cereja.
E eu teria ouvido esse diálogo com a mesma avidez com que ouviria determinada cena do Marido da Estreante, onde a ausência de poesia, de pensamentos profundos, coisas tão familiares para mim e que suponho Meilhac seria mil vezes capaz de pôr ali, me parecia por si só uma elegância, uma elegância convencional e, portanto, mais misteriosa e instrutiva.
- Aquele gordo é o marquês de Ganançay. - disse com ar sabichão o meu vizinho, que mal ouvira o nome sussurrado atrás dele.
O marquês de Palancy, de pescoço estendido, o rosto oblíquo, o grande olho redondo colado contra o vidro do monóculo, deslocava-se devagar na sombra transparente e parecia não ver o público da orquestra, como um peixe que passa e ignora a multidão dos visitantes curiosos, por detrás da parede vítrea de um aquário. Detinha-se, por instantes, venerável, resfolegante e musgoso, e os espectadores não teriam podido dizer se sofria, dormia, nadava, punha um ovo ou simplesmente respirava. Ninguém excitava em mim tanta inveja como ele, por causa do hábito que parecia ter daquele camarote e pela indiferença com que deixava a princesa lhe estender bombons; ela então lhe lançava um olhar de seus belos olhos talhados em diamante, que a inteligência e a amizade, nesses momentos, bem pareciam fluidificar, mas que, em repouso, reduzidos à sua pura beleza material, a seu puro brilho mineralógico, incendiavam a profundidade da plateia com seus fogos inumanos, horizontais e esplêndidos, se o menor reflexo os deslocasse de leve. Entretanto, visto que ia começar o ato da Fedra representado pela Berma, a princesa chegou-se para a frente do camarote; então, como se ela própria fosse uma aparição teatral, eu vi, na zona diversa da luz que ela atravessou, mudar não somente a cor mas a matéria de seus adereços. E, no camarote seco e emerso, que não mais pertencia ao mundo das águas, a princesa, deixando de ser uma nereida, apareceu de turbante branco e de azul como uma trágica maravilhosa vestida de Zaire ou talvez de Orosmane; depois, quando se sentou na primeira fila, vi que o doce ninho de alcíone que suavemente protegia o rosado nácar de suas faces era macio, brilhoso e aveludado, uma imensa ave-do-paraíso.
Todavia, meus olhares foram desviados do camarote da princesa de Guermantes por uma mulherzinha mal vestida, feia, de olhos ardentes, que, acompanhada de dois jovens, veio sentar-se a algumas cadeiras de mim. Depois, o pano se ergueu. Não sem melancolia, verifiquei não me restar coisa alguma de minhas disposições de outrora quando, para não perder nada do fenômeno extraordinário que teria ido contemplar nos confins do mundo, mantinha o meu espírito preparado como essas placas sensíveis que os astrônomos vão instalar na África, nas Antilhas, com vistas à observação escrupulosa de um cometa ou de um eclipse; quando eu receava que alguma nuvem (má-disposição da artista, incidente na assistência) impedisse que o espetáculo alcançasse o seu máximo de intensidade; quando julgara não assisti-lo nas melhores condições se não fosse ao próprio teatro que lhe era consagrado como um altar, onde então me pareciam ainda fazer parte, embora acessoriamente, de seu aparecimento sob o pequeno pano rubro, os fiscais de cravo branco na botoeira, nomeados por ela, o envasamento da nave acima de uma platéia cheia de pessoas mal vestidas, as empregadas vendendo um programa com a sua fotografia, os castanheiros do square, todos esses companheiros, esses confidentes de minhas impressões daquela época e que se me afiguravam inseparáveis dela. Fedra, a "Cena da declaração" e a Berma tinham então para mim uma espécie de existência absoluta. Situadas fora do mundo da experiência usual, existiam por si mesmas, era-me preciso ir até elas, penetraria delas o que fosse possível e, escancarando meus olhos e minha alma, absorveria ainda muito pouco. E como a vida me parecia agradável! A insignificância a qual eu levava não tinha importância nenhuma, como os momentos em que a gente se veste, quando se prepara para sair, pois que além existiam, de medo absoluto, boas e difíceis de abordar, impossíveis de possuir por inteiro, essas realidades mais sólidas, Fedra, a "maneira de recitar da Berma". Saturado por esses devaneios sobre a perfeição na arte dramática das quais então se poderia extrair uma dose importante, se nesses tempos houvessem analisado o meu espírito em algum instante que fosse do dia, e talvez da noite, eu era como uma pilha que alimenta a sua eletricidade. E chegara um momento em que, enfermo, ainda que julgasse morrer por causa disso, teria sido necessário que fosse ouvir a Berma. Mas agora, como uma colina que ao longe parece feita de azul e que, de perto, recai em nossa visão comum das coisas, tudo aquilo abandonara o universo do absoluto e não passava de uma coisa igual às outras, de que eu tomava conhecimento porque estava ali, os artistas eram pessoas da mesma natureza das que eu conhecia, procurando recitar o melhor possível aqueles versos da Fedra que já não formavam uma essência sublime e individual, apartada de tudo, e sim versos mais ou menos bem-sucedidos, prontos para entrar na imensa matéria dos versos franceses a que se misturavam. Sentia um desânimo tanto mais profundo como se o objeto do meu ativo e teimoso desejo não mais existisse; em compensação, persistiam as mesmas disposições para um devaneio fixo, que mudava ano após ano, mas me conduzia a uma brusca impulsão, desatenta do perigo. Certo dia em que, doente, eu saía para ver num castelo um quadro de Elstir, uma tapeçaria gótica, parecia-se de tal forma ao dia em que eu deveria ter partido para Veneza, ao dia em que fora ouvir a Berma, ou viajara para Balbec, que de antemão sentia que o objeto atual do meu sacrifício me deixaria indiferente dentro de pouco tempo e que eu poderia então passar bem perto dele sem ir olhar esse quadro, essas tapeçarias, pelos quais teria naqueles momentos enfrentado tantas noites insones, tantas crises dolorosas. Sentia, pela instabilidade de seu objeto, a vaidade de meu esforço e, ao mesmo tempo, a sua enormidade, na qual não acreditara, como esses neurastênicos cuja fadiga é duplicada quando se lhes observa que estão fatigados. À espera disto, meus sonhos davam prestígio a tudo o que fosse possível ligar-se a eles. E, mesmo em meus desejos mais carnais, orientados sempre em certa direção, concentrados em torno de um mesmo sonho, eu teria podido reconhecer uma ideia como primeiro impulso, uma ideia à qual teria sacrificado a minha vida, e em cujo ponto mais central, como em meus devaneios durante as tardes de leitura no jardim de Combray, estava a ideia da perfeição.
Não tive mais a mesma indulgência de antigamente quanto às justas intenções de ternura ou de cólera que notara então na dicção e na mímica de Arícia, de Ismênia e de Hipólito. Não é que aqueles artistas eram os mesmos não buscassem sempre, com a mesma inteligência, dar à sua voz aqui uma inflexão carinhosa ou uma ambiguidade calculada, ali a seus gestos uma amplitude trágica ou uma doçura suplicante. Suas entonações ordenavam a essa voz: "Seja doce, cante como um rouxinol, acaricie", ou, ao contrário: "Torne-se furiosa", e então se precipitavam sobre ela para tentar empolgá-la em seu frenesi. Mas ela, rebelde, exterior à dicção deles, continuava sendo, irredutivelmente, sua voz natural, com seus defeitos ou encantos materiais, sua vulgaridade ou afetação cotidianas, e, assim, era um conjunto de fenômenos acústicos ou sociais que o sentimento dos versos recitados não alterara.
Do mesmo modo, os gestos desses artistas diziam a seus braços, a seu peplo: "Seja majestoso". Mas os membros insubmissos deixavam pavonear entre o ombro e o cotovelo um bíceps que nada entendia do papel; continuavam a exprimir a insignificância da vida de todos os dias e a pôr em destaque, em vez de matizes racinianos, conexões musculares; e o planejamento que soerguiam caía de novo segundo uma vertical em que uma flexibilidade insossa e têxtil era a única a disputá-lo às leis da queda dos corpos. Nesse momento, a mulherzinha perto de mim exclamou:
- Nenhum aplauso! E como ela está presa! Mas é muito velha, não aguenta mais; nesses casos a gente deve desistir.
Diante dos psius dos vizinhos, os dois jovens que a acompanhavam trataram de sossegá-la, e então a sua raiva só se desencadeou em seus olhos. Essa raiva, aliás, só podia se dirigir à glória, ao sucesso, pois a Berma, que ganhara tanto dinheiro, estava crivada de dívidas. Marcando sempre encontros de negócios ou de amizade a que não podia comparecer, tinha em todas as ruas moços de recados que corriam para cancelar, nos hotéis, apartamentos antecipadamente reservados e que ela nunca ia ocupar, oceanos de perfumes para lavar suas cadelas, vales para descontar com todos os diretores. À falta de gastos mais consideráveis, e menos voluptuosa que Cleópatra, teria encontrado uma forma de devorar províncias e reinos apenas em telegramas e carros da Companhia Urbana. Mas a mulherzinha era uma atriz que não tivera oportunidade e votara ódio mortal à Berma. Esta acabava de entrar em cena. E então, ó milagre: como essas lições que debalde nos esgotamos para aprender à noite e que encontramos em nós, decoradas, depois de termos dormido, assim como essas faces de mortos que os esforços apaixonados da nossa memória perseguem sem os achar e que, quando já não pensamos neles, lá estão diante de nossos olhos, com a semelhança da vida, o talento da Berma que me fugira quando procurara com tanta avidez captar-lhe a essência, agora, após esses anos de olvido, nesta hora de indiferença, impunha-se com a força da evidência à minha admiração. Antigamente, para tentar isolar esse talento, eu desfalcava de alguma forma daquilo que ouvia o próprio papel, o papel, parte comum a todas as atrizes que representavam a Fedra e que havia estudado de antemão para ser capaz de subtraí-lo, de recolher como resíduo unicamente o talento da Sra. Berma.
continua na página 20...
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Volume 1
Volume 2
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O Caminho de Guermantes (1a.Parte - No começo)
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