volume VI
A Fugitiva
Capítulo I
Mágoa e Esquecimento
continuando...
Ao entrar no meu quarto Françoise me dizia bastante depressa:
"Não há cartas", para abreviar a angústia.
Mas, de tempos em tempos, eu conseguia, fazendo passar esta ou aquela idéia, através do meu desgosto, renovar, purificar um pouco a atmosfera do meu coração. Porém à noite, se conseguia adormecer, então era como se a lembrança de Albertine fosse o medicamento que me trouxesse o sono, e a influência, ao cessar, me despertaria. Pensava o tempo todo em Albertine. Era um sono especial seu, que ela me dava e onde, aliás, eu não teria espaço mais livre para pensar em outra coisa, como durante a vigília. O sono e sua lembrança eram essas duas substâncias misturadas que nos dão a tomar ao mesmo tempo para dormir. De resto, acordado, minha mágoa ia aumentando a cada dia em vez de diminuir. Não que o esquecimento não cumprisse a sua tarefa, mas porque; isso mesmo, favorecia a idealização da imagem saudosa e, desse modo, a assimilação de meu sofrimento inicial a outros sofrimentos análogos, que o reforçava. Todavia, essa imagem era suportável. Mas se, de repente, eu pensava no quarto dela; no quarto onde a cama permanecia desocupada; no seu piano, seu automóvel; perdia todas as forças, fechava os olhos, inclinava a cabeça sobre o ombro esquerdo como as pessoas que vão desmaiar. O ruído das portas me fazia tanto mal, porque não era Albertine quem as abria.
Quando foi possível a chegada de um telegrama de Saint-Loup, não tive coragem de perguntar: "Chegou um telegrama?" Por fim veio um, mas adiando tudo, pois dizia: SENHORAS PARTIRAM POR TRÊS DIAS. Sem dúvida, se eu havia suportado os quatro dias já transcorridos desde que Albertine se fora, era porque dizia comigo mesmo: "É só uma questão de tempo, antes do fim da semana ela estará aqui." Mas essa razão não impedia que para o meu coração, para o meu corpo, o ato a ser cumprido fosse o mesmo: viver sem ela, chegar em casa sem encontrá-la, passar diante da porta do seu quarto - ainda não tinha coragem de abri-lo - sabendo que ela não se achava ali, deitar-me sem lhe haver dito boa-noite, eis as coisas que meu coração devia cumprir em sua terrível integralidade e como se eu não devesse voltar a ver Albertine. Ora, que ele as tenha cumprido já quatro vezes provava que agora seria capaz de continuar a cumpri-las. E dentro em breve, talvez, essa razão que me ajudava a continuar a viver assim o próximo regresso de Albertine-, essa razão, eu deixaria de precisar dela e poderia dizer comigo mesmo: "Ela não voltará nunca mais", e ainda assim viver como já o fizera durante quatro dias.-
Como um ferido que retomou o hábito de caminhar e pode andar sem muletas. Sem dúvida, à noite, voltando para casa, eu ainda encontrava, tirando-me a respiração, sufocando-me com o vazio da solitude; as lembranças, justapostas numa série interminável, de todas as noites em que Albertine me esperava; mas já encontrava igualmente a lembrança da véspera, da antevéspera e das duas noites precedentes, ou seja, a lembrança das quatro noites transcorridas desde a fuga de Albertine, durante as quais eu ficara sem ela, sozinho, e onde contudo vivera, quatro noites que já formavam uma faixa de lembranças, bem delgada ao lado da outra, mas que a cada dia transcorrido ia talvez se encorpando. Não direi coisa alguma sobre a carta, recebida por essa época, em que se declarava a mim uma sobrinha da Sra. de Guermantes que era tida como a mais bonita moça de Paris, nem das diligências que junto a mim fez o duque de Guermantes por parte dos pais, resignados, pela felicidade da filha, à desigualdade social do partido e a uma aliança imprópria. Tais incidentes, que poderiam ser sensíveis ao amor-próprio, são dolorosos demais quando amamos. Gostaríamos, mas não cometeríamos essa indelicadeza, de os revelar àquela que tem a nosso respeito um juízo menos favorável, que aliás não se modificaria se soubesse que podemos ser objeto de outro juízo bem diverso. O que me escreveu a sobrinha do duque só poderia impacientar Albertine.
Desde o momento em que despertava e que retomava a minha mágoa no ponto em que me encontrava ao adormecer, como um livro por um instante fechado e que não me abandonaria mais até a noite, eu nunca podia ter senão um pensamento relativo à Albertine, e a esse pensamento é que podia ligar-se para mim - da sensação, viesse de fora ou de dentro. Tocavam a campainha: é uma carta dela, talvez seja ela própria! Se me achava bem disposto, não infeliz demais, não estava mais ciumento, não tinha mais queixas dela, gostaria de revê-la depressa, beijá-la, morar alegremente o resto da vida em sua companhia. Telegrafar-lhe: VENHA DEPRESSA - parecia-me tornar-se uma coisa muito simples, como se o meu novo ânimo tivesse não apenas mudado as minhas disposições, mas tornados fáceis as coisas fora de mim. Se o meu ânimo era sombrio, todas as minhas mágoas contra ela renasciam, já não tinha vontade de beijála, sentia a impossibilidade a ser feliz por meio dela, só queria lhe fazer mal, impedi-la de pertencer a outro desses dois estados de espírito opostos era idêntico o resultado: era preferível que Albertine voltasse o mais cedo possível. E no entanto, apesar de uma certeza que pudesse ter no momento mesmo desse regresso, sentia eu que em breve apresentariam as mesmas dificuldades e que a busca da felicidade nascia do desejo moral que era algo tão ingênuo como a tentativa de alcançar o horizonte alinhando para a frente. Quanto mais aumenta o desejo, mais se afasta verdadeira realidade. De modo que, se a felicidade ou, pelo menos, a ausência de sofrimento, pode ser encontrada; não é a satisfação, mas a redução progressiva e a extinção do desejo o que se deve buscar. Procura-se ver a pessoa amada, deveria-se não vê-la, só o esquecimento consegue nos dar a extinção do desejo. E que, se um escritor proferisse verdades desse gênero, dedicaria o livro, que contivesse a uma mulher, da qual se comprazeria em aproximar-se desse dizendo-lhe:
- Este é o teu livro. -
E assim, dizendo verdades em seu livro, na dedicatória, pois só lhe importa que o livro seja dessa mulher como lhe importa uma pedra preciosa que dela recebeu e que só lhe será preciosa enquanto amar tal mulher. Só em nosso pensamento é que existem os liames a unir uma criatura à nós. A memória, enfraquecendo, afrouxa-os; apesar da ilusão com que gostamos de nos enganar, e com a qual, por amor, por amizade, por delicadeza e respeito humano; por dever, enganamos os outros, e existimos sozinhos. O pior é o ser que não pode sair de si mesmo, que só conhece os outros dentro de nós afirmando o contrário, na mente. E eu teria tido tanto medo, se houvesse ali algo capaz de fazê-lo, que me tirassem essa necessidade dela, esse amor por Albertine que me persuadia ser ele precioso para a minha vida. Poder ouvir pronunciar o fascínio e sem sofrimento os nomes das estações por onde o trem passava. Touraine me teria parecido uma diminuição de mim mesmo (simplesmente no fundo, porque isso provaria que Albertine se tornava indiferente para mim) estaria bem, dizia comigo, se, ao me perguntar incessantemente o que ela estaria fazendo, pensando, desejando a cada instante, se ela esperava e se ia voltar; mantivesse aberta essa porta de comunicação que o amor abrira em mim e se a vida de outra pessoa inundar, pelas represas abertas, o reservatório que desejaria ficar de novo estagnado. Em breve, prolongando-se o silêncio de Loup, uma ansiedade secundária - a espera por um telegrama ou um telefonema de Saint-Loup - mascarou a primeira, a inquietação quanto ao resultado, que Albertine voltaria. Vigiar cada ruído, à espera do telegrama, tornou-se tão intolerante que, segundo me parecia, a chegada do telegrama, fosse qual fosse, pois a única coisa em que eu pensava agora, poria fim às minhas mágoas. Mas, que recebi finalmente um telegrama de Robert, em que ele me dizia que estivera em tempo integral observando Bontemps; mas, apesar de todas as precauções, fora visto por Albertine, e que estragara tudo, tive um acesso de fúria e desespero, pois acima de tudo era aquilo o que eu desejara evitar. Conhecida de Albertine, a viagem de Saint-Loup parecia mostrar-me submisso a ela, o que a levaria a não voltar; aliás, o horror a essa submissão era tudo o que eu conservara da altivez do meu amor no tempo de Gilberte, e que havia perdido. Amaldiçoei Robert, mas depois pensei que, se aquele meio fracassara, arrumaria outro. Visto que o homem pode agir sobre o mundo exterior, como é que, empregando a astúcia, a inteligência, o interesse, a afeição, não chegaria eu a suprimir essa coisa atroz: a ausência de Albertine? Julgamos que, segundo o nosso desejo, podemos mudar as coisas que nos rodeiam; julgamo-lo porque, fora daí, não vemos nenhuma solução favorável. Não pensamos no que ocorre muitas vezes e que também é favorável: não chegamos a mudar as coisas conforme o nosso desejo, mas aos poucos o nosso desejo muda. A situação que esperávamos mudar por ser-nos insuportável, se nos torna indiferentes. Não pudemos superar o obstáculo, como o queríamos de qualquer maneira, porém a vida nos fez contorná-lo e transpô-lo, e então, se nos virarmos para o passado longínquo, mal podemos avistá-lo, de tal modo se tornou imperceptível. No andar acima do nosso, ouvi árias da Manon, tocadas por uma vizinha. Apliquei seus versos, que conhecia, a Albertine e a mim, e fui penetrado de uma sensação tão profunda que me pus a chorar. Era:
Hé/as, poiseau qui fuit ce qu'il croit l'esclavage,
Le plus souvent, la nuit d'un vos désespéré revient battre au vitrage
[Ai de mim, o pássaro que foge ao que julga ser prisão, / Muitas vezes, à noite, em desespero, volta a chocar-se - a vidraça." (Manou, ópera de Massenet, ato III, quadro II). (N. do T)]
e a morte de Manors:
Manon, réponds-moi donc/ - Seu/ amour de mon âme, Je n'ai su qu áujourd'hui la bonfé de ton coeui
[Responde, pois, Manou! Único amor da minha alma, / Só hoje conheci a bondade do teu coração." (Manou, final do ato V.) (N. do T)]
Já que Manon voltava a Des Grieux, parecia-me que eu era para Albertine o único amor de sua vida. Ai de mim! É provável que, se ouvisse naquele momento a mesma ária, não fosse a mim que ela teria agraciado sob o nome de Des Grieux e, ainda que pensasse nisso, a minha lembrança a teria impedido de se enternecer ao escutar essa música, que todavia era exatamente do gênero das que ela apreciava.
Quanto a mim, não tive coragem de me entregar à doçura de imaginar que Albertine me chamasse "único amor da minha alma", reconhecendo que se equivocara sobre o que "julgara ser prisão". Eu sabia ser possível ler um romance sem se dar à heroína as feições da mulher amada. Mas, ao terminar o livro, é inútil que o desfecho seja feliz, pois o nosso amor não progrediu em nada e, quando fechei o livro, aquela a quem amamos e que finalmente nos veio no romance, nem por isso gosta mais de nós na vida.
Furioso, telegrafei a Saint-Loup que regressasse o mais rápido possível à Paris, para ao menos evitar o aspecto de uma insistência agravante na missão que eu tanto quisera ocultar. Mas antes mesmo que ele se conforme as minhas instruções, foi da própria Albertine que recebi este telegrama: MEU CARO, VOCÊ ENVIOU SEU AMIGO SAINT-LOUP À MINHA TIA, FOI INSENSATO. MEU CARO AMIGO, SE TEM NECESSIDADE DE MIM, POR QUE NÃO ME ESCREVEU DIRETAMENTE? TERIA FICADO MUITO FELIZ POR VOLTAR; NÃO RECOMECE OUTRA VEZ ESSAS MEDIDAS ABSURDAS.
"Teria muito feliz por voltar!" Se ela dizia isto, era portanto por lamentar o ter ido. É que só procurava um pretexto para regressar. Assim, bastava-me fazer o que pedia, escrever-lhe que tinha necessidade dela, e ela voltaria. Portanto, retornaria a Albertine de Balbec (pois desde a sua partida, voltara a sê-lo para mim um caramujo do mar, ao qual não prestamos atenção quando o temos sobre nossa cômoda, e no qual, uma vez que nos separamos dele porque o perdemos, ficamos pensando, o que antes já não fazíamos, ela me recordava toda a jovial beleza das montanhas azuis do mar). E não era apenas ela que se tornara um ser de imaginação, isto é, desejável, mas a vida com ela é que passara a ser uma vida imaginária, ou seja, livre de todas as dificuldades, de modo que dizia comigo:
"Como vamos ser felizes!"
Porém, no momento em que eu estava seguro desse regresso, não era preciso dar a impressão de apressá-lo, mas, ao contrário, apagar o mau efeito causado pela missão de SaintLoup, que mais eu ainda poderia renegar, dizendo que ele agira por conta própria, pois sempre mostrara favorável ao nosso casamento.
Entretanto, eu relia a sua carta e, apesar de tudo, sentia-me desapontado com o pouco que, numa carta, existe de pessoal. Sem dúvida, os caracteres escritos exprimem o nosso pensamento, o mesmo acontece com as nossas emoções; é sempre em presença de um pensamento que nós nos encontramos ainda assim, na pessoa, o pensamento só nos aparece após ter se difundido corola da fisionomia desabrochada como um nenúfar. Isso, afinal, o modifica muito. E talvez uma das causas de nossas permanentes decepções no amor esses permanentes desvios que fazem que, à espera da criatura ideal a quem amamos, todo encontro nos traga uma pessoa de carne que já existe bem pouco em nosso sonho. E depois, quando reclamamos alguma coisa dessa pessoa, recebemos uma carta em que da própria pessoa fica muito pouco, como nas da álgebra já não existe a determinação das cifras da aritmética, que, possua; não contêm as qualidades dos frutos ou das flores adicionados. Todavia a criatura amada, suas cartas, são talvez, enfim, traduções por menos satisfatório que seja, passar de uma a outra da mesma realidade, visto que a carta só nos parece insuficiente quando a lemos, pois suamos frio enquanto não chega, bastando para acalmar a nossa angústia quando não para encher, como seus sinaizinhos negros, o nosso desejo, que sente que ali afinal só existe o equivalente de uma palavra, de um sorriso, de um beijo, e não essas mesmas coisas.
continua na página 19...
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