sexta-feira, 21 de julho de 2023

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - Travessia do Cambaio: II - Em marcha para Canudos

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1


Travessia do Cambaio


Em marcha para Canudos.

Foi nestas condições desfavoráveis que partiram a 12 de janeiro de 1897.

Tomaram pela estrada do Cambaio. 

É a mais curta e a mais acidentada. Ilude a princípio, perlongando o vale do Cariacá, numa cinta de terrenos férteis sombreados de cerradões que prefiguram verdadeiras matas. 

Transcorridos alguns quilômetros, porém, acidenta-se; perturba-se em trilhas pedregosas e torna-se menos praticável à medida que se avizinha do sopé da Serra do Acaru. Dali por diante se encurva para leste transmontando a serrania por três ladeiras sucessivas, até galgar o sítio da Lajem de Dentro, alçado trezentos metros sobre o vale.

Gastaram-se dous dias para atingir-se este ponto. A artilharia reduzia a marcha. Ascendiam penosamente os Krupps, enquanto os separadores na frente reparavam a estrada, desentulhando-a e destocando-a, ou abrindo desvios contornantes, evitando fortíssimos declives. E a tropa, que tinha as condições de sucesso na mobilidade, paralisavase presa no travão daquelas massas metálicas. 

Transposta a Lajem de Dentro e a divisória das vertentes do Itapicuru e do Vaza-Barris, a estrada desce. Tornase, porém, mais séria a travessia, metendo-se no acidentado de contrafortes, de onde fluem os tributários efêmeros do Bendegó. A bacia de captação deste desenha-se, então, ligando as abas de três serras, a do Acaru, a Grande e do Atanásio, que se articulam em desmedida curva. A expedição entrou por aquele vale fundo como uma furna até a um outro sítio, Ipueiras, onde acampou. Foi uma temeridade. O acampamento, envolto de fraguedos, centralizaria os fogos do inimigo, se este aparecesse pelo topo dos morros. Felizmente não chegavam até lá os jagunços. De sorte que na antemanhã seguinte, rumo firme ao norte, a tropa prosseguiu para Penedo, salva de uma posição dificílima.

Tinha meio caminho andado. As estradas pioravam, crivadas de veredas, serpeando em morros, alçando-se em rampas, caindo em grotões, desabrigadas, sem sombras...  

Até Mulungu, duas léguas além do Penedo, os sapadores estradaram o solo para os canhões, e a jornada remorava-se no passo tardo da divisão que os guarnecia. 

Entretanto, era imprescindível a máxima celeridade. Tornava-se suspeita a paragem: restos de fogueiras à margem do caminho e vivendas incendiadas davam sinais do inimigo. Em Mulungu, à noite, eles se tornaram evidentes. Alarmou-se o acampamento. Tinham-se distinguido, próximos, encobertos na sombra, rondando em torno, vultos fugazes, de espias. Os soldados dormiram em armas. E no amanhecer de 17 a expedição que se encravara nas montanhas, muito aquém ainda de um objetivo que podia ser atingido em três dias de marcha, começou de ser terrivelmente torturada. 

Acabaram-se as munições de boca. Foram abatidos os dous últimos bois para quinhentos e tantos combatentes. Isto valia por um combate perdido. A feição da luta agravava-se em plena marcha, antes de se dar um tiro. Prosseguir para Canudos, poucas léguas distante, era quase a salvação. Era lutar pela vida. 

Completando o transe, desapareceram à noite, em grande parte, os cargueiros contratados em Monte Santo. E sob o pretexto de providenciar para urgente remessa de munições, o comissário daquela vila largou para ignoradas paragens — e não voltou.

Alguém, entretanto, salvou a lealdade sertaneja, o guia Domingos Jesuíno. Conduziu as tropas para a frente até ao Rancho das Pedras, onde acamparam. 

Estavam cerca de duas léguas de Canudos.  

E à noite um observador que do acampamento atentasse para o norte, distinguiria talvez, escassas, em bruxeleiros longínquos, fulgindo e extinguindo-se, intermitentes, muito altas, como estrelas rubras entre nevoeiros, algumas luzes vacilantes. Demarcavam as posições inimigas. 

Ao alvorecer, desdobraram-se imponentes. 

continua 113...

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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante).

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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