terça-feira, 18 de julho de 2023

Edgar Allan Poe - Contos: Os Crimes da Rua Morgue (05)

Edgar Allan Poe - Contos


Os Crimes da Rua Morgue
Título original: The Murders in the Rue Morgue 
Publicado em 1841


continuando...


— Um doido — respondi-lhe — terá cometido estas mortes, qualquer maníaco fugido de um manicômio da vizinhança.

— Nada mal — replicou. — O seu raciocínio é quase aplicável. Mas as vozes dos doidos, mesmo nos mais selvagens paroxismos, nunca estão de acordo com o que se diz desta voz singular ouvida da escada. Os doidos pertencem a alguma nação e a sua língua, por muito incoerente que seja em palavras, é sempre silabada. Além de que o cabelo de um doido não se parece com o que eu tenho agora na mão. Retirei este tufo de cabelos dos dedos rígidos e crispados da senhora L’Espanay e. Diga-me que pensa disto?

— Dupin! — disse completamente transtornado — estes cabelos são bem extraordinários, não são cabelos humanos!

— Não afirmei que o fossem — disse ainda. — Antes de nos decidirmos sobre esse ponto, desejo que dê uma vista de olhos pelo desenho que tracei neste pedaço de papel. É um fac-símile que representa o que certos depoimentos definiram como as pisaduras negras e as profundas marcas de unhas encontradas no pescoço da menina L’Espanay e, e que M. Dumas e M. Etienne chamam uma série de manchas lívidas, evidentemente causadas pela pressão dos dedos. Veja — continuou o meu amigo desdobrando o papel na mesa — que este desenho dá a ideia de um punho sólido e firme. Não parece que os dedos tivessem escorregado. Cada dedo agarrou, talvez até à morte da vítima, a terrível presa que fizera e na qual se fixara. Experimente agora colocar todos os seus dedos, ao mesmo tempo, cada um na marca análoga que vê. 

Experimentei, mas inutilmente.

— É possível — disse Dupin — que não façamos esta experiência de uma maneira decisiva. O papel está desdobrado numa superfície plana, e a garganta humana é cilíndrica. Eis um rolo de madeira cuja circunferência é aproximadamente a de um pescoço. Estenda o desenho em volta e repita a experiência.

Obedeci, mas a dificuldade foi ainda mais evidente do que da primeira vez.

— Isto não tem a configuração de uma mão humana — observei. 

— Leia agora esta passagem de Cuvier — ordenou Dupin.

Era a história minuciosa, anatómica e descritiva do grande orangotango fulvo das ilhas da índia Oriental. Todos conhecem suficientemente a gigantesca estatura, a força e a agilidade prodigiosa, a ferocidade selvagem e as faculdades imitativas deste mamífero. 

Compreendi imediatamente a horrível violência do crime. 

— A descrição dos dedos — disse-lhe quando acabei a leitura — concorda perfeitamente com o desenho. Vejo que nenhum animal — exceto um orangotango, e da espécie mencionada — poderia ter feito marcas tais como as que desenhou. Este molho de pelos fulvos é também de um caráter idêntico ao do animal de Cuvier. Mas não me apercebi facilmente dos pormenores deste medonho mistério. Aliás, ouviram-se « duas» vozes a discutir, e uma delas era incontestavelmente a voz de um francês. 

— É verdade; e recorda-se de uma expressão atribuída quase por unanimidade a esta voz — a expressão « meu Deus!» . Estas palavras, nas circunstâncias presentes, foram caracterizadas por uma das testemunhas (Montani, o pasteleiro) como exprimindo uma censura e uma admoestação. Foi relacionada com estas duas palavras que eu baseei as minhas esperanças em deslindar completamente o enigma. Um francês teve conhecimento do crime. É possível — é mesmo mais que possível que esteja inocente de qualquer comparticipação neste sangrento caso. O orangotango pode ter-lhe fugido. É possível que tivesse seguido o rasto até ao quarto, mas que, devido às circunstâncias terríveis que se seguiram, ele não pudesse prendê-lo. O animal está ainda à solta. Não prosseguirei nestas conjeturas, não tenho o direito de dar outro nome a estas ideias, pois que a sombra de reflexões que lhes servem de base são de uma profundidade dificilmente suficiente para serem apreciadas pelo meu próprio raciocínio, e não pretenderia que fossem apreciadas por uma outra inteligência. Classificá-las-emos, portanto, de conjeturas, e tomá-las-emos como tal. Se o francês em questão está, como suponho, inocente desta atrocidade, este anúncio que entreguei ontem à noite, quando voltávamos a casa, no escritório do jornal 0 Mundo (folha dedicada aos assuntos marítimos e muito procurada pelos marinheiros), há de trazê-lo até nós. 

Estendeu um papel, no qual li: 

AVISO: — Encontrou-se no bosque de Bolonha, na manhã do... do corrente (era a manhã do assassínio), de madrugada, um enorme orangotango fulvo, da espécie de Bornéu. O proprietário (que se sabe ser um marinheiro que pertence à tripulação de um navio maltês) pode reaver o animal, depois de o identificar satisfatoriamente e de ter reembolsado de algumas despesas a pessoa que o apanhou e o guardou. Dirigir-se à rua..., n.º... — bairro de Saint-Germain, terceiro andar.

— Como pôde saber que o homem era um marinheiro — perguntei-lhe — e pertencia a um navio maltês?

— Não sei — respondeu-me. — Não estou bem certo. Eis, no entanto, um pedaço de fita que, a julgar pela sua forma e aspecto gorduroso, serviu evidentemente para atar os cabelos num longo rabicho, o que torna os marinheiros tão orgulhosos e tão ridículos. Além disso, este nó é um dos que poucas pessoas sabem fazer, exceto os marinheiros, e em particular os malteses. Apanhei a fita por baixo do cabo do para-raios. É possível que tenha pertencido a uma das duas vítimas. Apesar de tudo, se me não engano ao deduzir que esta fita é de um marinheiro francês que pertence a um navio maltês, não poderei fazer mal a ninguém com o meu anúncio. Se eu estiver enganado, ele pensará simplesmente que cometi um erro, por qualquer circunstância que não se preocupará a investigar. Mas se estiver no bom caminho, há um ponto importante já ganho. O francês que teve conhecimento do assassínio, se bem que esteja inocente, hesitará naturalmente em responder ao anúncio — a reclamar o seu orangotango. Raciocinará assim: « Estou inocente; sou pobre; o meu orangotango vale muito — é quase uma fortuna numa situação como a minha; por que havia de o perder, por causa de um medo estúpido? Encontraram-no no bosque de Bolonha, a uma grande distância do local do crime. Não vão supor que um animal de tal espécie tenha podido executar o crime. A Polícia está despistada — ela não consegue encontrar o mais insignificante indício esclarecedor. Mesmo que estivessem na pista do animal, seria impossível provar que eu tivesse conhecimento do assassínio ou incriminar-me por causa deste conhecimento. Enfim e antes de mais, “eu sou conhecido”. O redator do anúncio considerou-me como o proprietário do animal. Mas não sei a que ponto vai a sua certeza; se evito reclamar uma propriedade de um tão grande valor, que é sabido pertencer-me, posso atrair sobre o animal uma dúvida perigosa. Seria da minha parte uma má política chamar a atenção para o animal e a minha pessoa. Responderei devidamente ao anúncio do jornal, terei novamente o meu orangotango e fechá-lo-ei solidamente até que o caso esteja esquecido.»

Nesse momento, ouvimos passos subirem a escada. 


continua na página 356..

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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.
Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).
Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.
Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe
CONTOS
Originalmente publicados entre 1831 e 1849
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