segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Massa e Poder - A Massa (A Domesticação das Massas nas Religiões Universais)

Elias Canetti


A DOMESTICAÇÃO DAS MASSAS NAS RELIGIÕES UNIVERSAIS


Tão logo reconhecidas, as religiões com pretensões universais mudam a tônica de seu assédio. De início, trata-se para elas de atingir e conquistar todos quantos há para atingir e conquistar. A massa que têm em mente é universal; cada alma é importante, e cada uma delas deve ser sua. A batalha, porém, que tais religiões têm de vencer conduz paulatinamente a uma espécie de respeito recôndito pelos adversários já instituídos. Elas veem como é difícil manter-se. Instituições que lhes emprestem solidariedade e durabilidade parecem-lhes cada vez mais importantes. Estimuladas pelas dos adversários, fazem, então, de tudo para criar suas próprias instituições; e, quando o conseguem, estas últimas passam a ser, com o tempo, a coisa mais importante. O peso próprio das instituições que adquirem assim vida própria abranda pouco a pouco o ímpeto do assédio inicial. Igrejas são construídas de modo a abrigar os fieis já existentes. Havendo realmente necessidade de ampliá-las, isso é feito com moderação e prudência. Há uma forte tendência a reunir os fieis existentes em unidades separadas. Precisamente porque estes agora são muitos, bastante grande é a propensão para a desagregação, um perigo ao qual tem-se sempre de fazer frente.

As religiões universais históricas trazem no sangue, por assim dizer, uma sensibilidade para as insídias da massa. Suas próprias tradições, assumindo o caráter de leis, ensinam-lhes quão súbita e inesperadamente elas cresceram. Suas histórias de conversões em massa parecem-lhes milagrosas, e o são. Nos movimentos de apostasia, temidos e perseguidos pelas Igrejas, a mesma espécie de milagre volta-se contra elas, e os ferimentos que assim lhes são infligidos na própria carne são dolorosos e inesquecíveis. Tanto o rápido crescimento do início quanto as posteriores e não menos rápidas apostasias mantêm sempre viva sua desconfiança em relação à massa.

O que tais igrejas desejam para si é, ao contrário dessa massa, um rebanho obediente. É comum contemplarem os fieis como cordeiros e louvarem-lhes a obediência. À tendência fundamental da massa — o crescimento veloz —, renunciam inteiramente. Contentam-se com a ficção temporária de uma igualdade entre os fieis, igualdade esta que jamais é levada a cabo com demasiado rigor; satisfazem-se com uma certa densidade, mantida dentro de fronteiras comedidas, e com uma direção vigorosa. A meta, situam-na de bom grado a uma enorme distância, num além que não se pode adentrar de imediato, enquanto ainda se vive, e que se tem de fazer por merecer mediante muito esforço e submissão. Aos poucos, a direção vai se tornando o mais importante. Quanto mais distante a meta, tanto maior a perspectiva de durabilidade. No lugar daquele outro princípio — o princípio aparentemente indispensável do crescimento —, coloca-se algo inteiramente diverso: a repetição.

Em determinados espaços e em certos momentos, reúnem-se os fieis e, por meio de atividades sempre idênticas, são colocados em um estado semelhante ao da massa, mas sob uma forma abrandada — um estado que os impressiona, sem, contudo, tornar-se perigoso, e ao qual eles se acostumam. O sentimento da própria unidade é-lhes administrado de forma dosada. Do acerto dessa dose depende a durabilidade da Igreja.

Onde quer que os homens se tenham acostumado a essa experiência repetida e delimitada com precisão em suas igrejas e templos, não mais serão eles capazes de prescindir dela. Dependem dessa experiência da mesma forma como dependem de alimentação e de tudo o mais que compõe sua existência. Uma súbita proibição do culto ou a repressão de sua religião por um decreto estatal não deixará de acarretar consequências. A perturbação de seu gerenciamento cuidadosamente equilibrado como massa fatalmente conduzirá, após algum tempo, à erupção de uma massa aberta. Esta possuirá, então, todas as características elementares que se conhecem. Ela se propagará com rapidez, implantará uma igualdade real em lugar da fictícia e buscará para si densidades novas e muito mais intensas. Momentaneamente, abandonará aquela meta longínqua e dificilmente atingível para a qual foi educada, impondo-se uma nova meta no aqui, no âmbito imediato da vida concreta.

Todas as religiões que se veem subitamente proibidas vingam-se por intermédio de uma espécie de secularização: o caráter de sua fé modifica-se completamente numa erupção de grande e inesperada selvageria, sem que elas próprias sejam capazes de compreender a natureza dessa modificação. Julgam tratar-se ainda da velha fé e acreditam que seguem apegando-se apenas às suas mais profundas convicções. Na realidade, porém, transformaram-se de repente em algo inteiramente diverso, algo dotado de um aguçado e singular sentimento da massa aberta que agora compõem e que não desejam de modo algum abandonar.


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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.


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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg

Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim

Título original Masse und Macht


"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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