Elias Canetti
A MASSA COMO ANEL
Uma massa duplamente fechada é o que temos diante de nós numa arena. Não será ocioso examiná-la à luz dessa sua notável qualidade.
Relativamente ao exterior, a arena encontra-se bem delimitada. Normalmente, ela é visível de longe. Sua localização na cidade, o espaço que ocupa, é conhecida de todos. Sente-se sempre a sua presença ali, mesmo quando não se está pensando nela. Os gritos que dela provêm avançam na distância. Se não é coberta, muito da vida que nela se desenrola comunica-se à cidade ao seu redor.
Mas, por mais estimulantes que sejam tais comunicados, uma livre afluência de rumo à arena é impossível. O número de lugares que ela contém é limitado. Estabelece-se uma meta para sua densidade. Os assentos são dispostos de maneira a não comprimir demasiadamente as pessoas. Estas devem sentir-se confortáveis em seu interior. De seus assentos, devem ter uma boa visão e não incomodar umas às outras.
Ao exterior, à cidade, a arena exibe um muro inanimado. Em seu interior, ela constrói um muro de gente. Todos os presentes voltam as costas à cidade. Desprenderam-se da ordem urbana, dos muros e ruas da cidade. Não se preocupam com nada do que nela acontece ao longo de sua permanência na arena. Deixam para trás a vida de seus conhecidos, suas regras e costumes. Sua reunião em grande número encontra-se assegurada por um certo tempo; foi-lhes prometido excitação, mas sob uma condição assaz decisiva: a descarga da massa tem de se dar para dentro.
As fileiras encontram-se dispostas uma acima da outra, a fim de que todos vejam o que se passa lá embaixo. A consequência disso, porém, é que a massa encontra-se sentada diante de si mesma. Cada um tem à sua frente milhares de pessoas e cabeças. Enquanto ele permanecer ali, todos permanecerão. O que o excita, excita os outros também, e ele o vê. Os demais encontram-se sentados a uma certa distância dele; desaparecem as singularidades que normalmente os distinguem, tornando-os indivíduos. Todos se tornam muito parecidos e comportam-se de modo semelhante. Nos outros, cada um percebe apenas aquilo que ele próprio está sentindo. A excitação visível dos demais intensifica a sua própria.
A massa que assim se exibe a si mesma não apresenta nenhuma interrupção. O anel que compõe é fechado. Nada lhe escapa. Há algo de estranhamente homogêneo nesse anel de rostos fascinados, uns sobre os outros. Ele abarca e contém tudo quanto se passa lá embaixo. Desse todo, ninguém abre mão; ninguém quer ir embora. Qualquer lacuna nesse anel poderia advertir para a desagregação, para a futura dispersão. Mas inexistem lacunas: essa massa é fechada para o exterior e fechada em si — é, pois, duplamente fechada.
continua página 39...
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Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - A Massa (A Massa Como Anel)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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