segunda-feira, 24 de abril de 2023

Massa e Poder - A Massa (As Propriedades da Massa)

Elias Canetti


AS PROPRIEDADES DA MASSA


Antes de se intentar empreender uma classificação da massa, convém resumir brevemente aqui suas propriedades principais. As quatro características abaixo devem ser ressaltadas:

1) A massa quer crescer sempre. Fronteira alguma impõe-se naturalmente ao seu crescimento. Onde quer que tais fronteiras sejam criadas artificialmente — ou seja, em todas as instituições empregadas para a preservação de massas fechadas —, sua erupção é sempre possível e, de fato, se dá de tempos em tempos. Inexistem expedientes absolutamente seguros que possam impedir em definitivo o crescimento da massa.

2) No interior da massa reina a igualdade. Absoluta e indiscutível, tal igualdade jamais é questionada pela própria massa. Ela é de tão fundamental importância que se poderia definir o estado da massa como um estado de igualdade absoluta. Uma cabeça é uma cabeça; um braço é um braço — as diferenças não importam. É por causa dessa igualdade que as pessoas transformam-se em massa. O que quer que possa desviá-las desse propósito é ignorado. Toda demanda por justiça, todas as teorias igualitárias retiram sua energia dessa experiência da igualdade que todos, cada um a seu modo, conhecem a partir da massa.

3) A massa ama a densidade. Ela nunca é densa o bastante. Nada deve obstruí-la, nada deve interpor-se: tanto quanto possível, tudo deve ser a própria massa. O sentimento da densidade maior, ela o tem no momento da descarga. Um dia será possível definir e medir com maior exatidão essa densidade.

4) A massa necessita de uma direção. Ela está em movimento e move-se rumo a alguma coisa. A direção comum a todos os seus membros fortalece o sentimento de igualdade. Uma meta exterior aos indivíduos e idêntica para todos soterra as metas particulares e desiguais que significariam a morte da massa. A direção é imprescindível para sua durabilidade. O medo da desagregação, sempre vivo nela, torna possível guiá-la rumo a quaisquer metas. Enquanto possuir uma meta inatingível, a massa persiste. — Mas há nela ainda um movimento obscuro, conduzindo a formações novas e superiores. É frequentemente impossível predizer a natureza dessas formações.

Cada uma dessas quatro propriedades aí constatadas pode estar presente em maior ou menor grau. Dependendo daquela que se contemple, chegar-se-á a uma classificação diferente das massas.

Já se falou aqui em massas abertas e fechadas, e explicou-se também que tal classificação encontra-se relacionada com o seu crescimento. Enquanto esse crescimento não for obstruído, a massa é aberta; ela será fechada tão logo se lhe limitar o crescimento.

Uma outra diferenciação de que ainda se falará aqui é aquela entre as massas rítmicas e as estanques. Esta relaciona-se às duas propriedades seguintes da massa — isto é, à igualdade e à densidade —, e, aliás, a ambas a um só tempo.

A massa estanque vive em função de sua descarga, mas, tendo-a como certa, posterga-a. Deseja um período relativamente longo de adensamento, a fim de que possa preparar-se para o momento da descarga. Poder-se-ia dizer que ela se aquece adensando-se, retardando a descarga tanto quanto possível. No seu caso, o processo não principia com a igualdade, mas com a densidade. A igualdade torna-se a meta principal da massa, aquela na qual ela, por fim, desemboca; cada grito conjunto, cada manifestação conjunta constitui, então, expressão autêntica dessa igualdade.  

Contrariamente a isso, densidade e igualdade coincidem desde o princípio na massa rítmica. Nesta, tudo depende do movimento. Todos os estímulos corporais que se hão de verificar são predeterminados e traduzidos em dança. A densidade é conscientemente configurada por intermédio de afastamentos e reaproximações. A igualdade, por sua vez, coloca-se ela própria à mostra. Representações da densidade e da igualdade produzem engenhosamente o sentimento de massa. Tais formações rítmicas nascem de forma veloz, e é somente o cansaço físico que lhes põe um fim.

O próximo par conceitual — o das massas lentas e velozes — define-se exclusivamente em função da natureza de sua meta. As massas que despertam atenção, aquelas das quais normalmente se fala e que compõem elemento tão essencial de nossa vida moderna — as massas políticas, esportivas, bélicas, com que hoje deparamos diariamente —, são todas elas massas velozes. Bastante distintas destas são as massas religiosas do além ou as de peregrinos. A meta de ambas encontra-se distante; o caminho é longo e a formação propriamente dita da massa é deslocada para uma terra longínqua ou para um reino dos céus. Dessas massas lentas, o que efetivamente vemos é tão somente a sua afluência, pois o estado final a que almejam é invisível, além de inatingível para os descrentes. A massa lenta reúne-se vagarosamente e, a grande distância, vê-se a si própria como perene.

Todas essas formas cuja essência foi aqui apenas sugerida necessitam de um exame mais detalhado. 



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Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (As Propriedades da Massa)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.


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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg

Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim

Título original Masse und Macht


"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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