Elias Canetti
O PÂNICO
Conforme já se observou repetidas vezes, o pânico num teatro constitui uma desagregação da massa. Quanto mais unidas as pessoas se encontravam em função do espetáculo, quanto mais fechada a forma do teatro que exteriormente as mantém coesas, tanto mais violenta a desagregação.
É igualmente possível, contudo, que apenas a encenação não dê ensejo à formação de uma massa genuína. Com frequência, o público não se sente tomado pelo espetáculo, permanecendo reunido apenas porque já está ali. Mas o que a peça não logrou produzir, um incêndio acarretará de imediato. O fogo não é menos perigoso para os homens do que para os animais: trata-se do mais forte e mais antigo símbolo da massa. A percepção da sua presença subitamente intensifica ao máximo o que quer que tenha existido de sentimento de massa no público. Graças ao perigo comum e inequívoco, nasce um medo compartilhado por todos. Assim, por um breve período, o público constitui uma verdadeira massa. Não estivessem as pessoas num teatro, elas poderiam fugir em grupo, qual um bando de animais em perigo, elevando com seus movimentos sincronizados a energia da fuga. Um medo ativo dessa natureza, vivenciado em massa, é a grande experiência coletiva de todos os animais que vivem em bandos e, como bons corredores, se salvam juntos.
No teatro, pelo contrário, a massa tem de desagregar-se do modo mais violento. As portas somente dão passagem a uma única ou a umas poucas pessoas por vez. A energia da fuga transforma-se por si só numa energia do rechaço. Entre as fileiras de poltronas só é possível passar uma pessoa de cada vez; cada um encontra-se absolutamente apartado do outro: as pessoas sentam-se sós, levantam-se sós e têm cada uma o seu lugar. A distância até a porta mais próxima é diferente para cada um. O teatro normal visa fixar as pessoas em suas poltronas e deixar-lhes apenas a liberdade de suas mãos e vozes. O movimento das pernas é, tanto quanto possível, limitado.
A ordem súbita para a fuga que o fogo dá aos homens confronta-se, pois, de imediato, com a impossibilidade do movimento conjunto. A porta que todos precisam atravessar, que todos veem e em que se veem nitidamente apartados dos demais, é a moldura de um quadro que logo os domina. Assim, e justamente no seu auge, a massa é obrigada a desagregar-se com violência. A reviravolta faz-se nítida nas tendências as mais violentas dos indivíduos: todos empurram, batem e pisoteiam selvagemente ao seu redor.
Quanto mais as pessoas lutam “por sua própria vida”, tanto mais claro se torna que lutam contra os outros, que, por toda parte, as estorvam. Estes estão ali feito cadeiras, balaustradas, portas trancadas; a diferença, todavia, é que lutam também. Empurram para cá e para lá, para onde lhes convém — ou, na verdade, para onde estão eles próprios sendo empurrados. Mulheres, crianças e velhos não são poupados: não se diferenciam dos homens. Isso é da própria constituição da massa, na qual todos são iguais; e mesmo não mais se sentindo como massa, o indivíduo está ainda inteiramente circundado por ela. O pânico é uma desagregação da massa no interior dela própria. O indivíduo aparta-se dela e deseja escapar-lhe — escapar da massa que, como um todo, está em perigo. Como, porém, encontra-se ainda fisicamente nela, tem de combatê-la. Entregar-se à massa nesse momento seria a sua ruína, visto que ela própria está ameaçada de arruinar-se. Num tal momento, o indivíduo não se cansa de enfatizar sua singularidade. Com seus golpes e empurrões, ele atrai mais golpes e empurrões. Quanto mais golpes dá e recebe, tanto mais claramente sente-se a si próprio, e tanto mais nitidamente recolocam-se para ele as fronteiras de sua pessoa.
É surpreendente observar o quanto a massa assume o caráter do fogo para aquele que combate em seu interior. Ela nasceu da inesperada visão de uma chama ou do grito: “Fogo!”. E é tal como as chamas que ela joga com aquele que busca escapar. As pessoas que este empurra para longe são, para ele, objetos incandescentes; seu toque é-lhe hostil, assustando-o onde quer que elas lhe toquem o corpo. Quem quer que se interponha no caminho é contaminado por essa disposição genericamente hostil do fogo; a maneira como este se propaga, como vai paulatinamente cercando as pessoas e, por fim, as envolve por completo, assemelha-se bastante ao comportamento da massa, a ameaçá-las por todos os lados. Os movimentos imprevisíveis em seu interior, o braço, o punho, a perna que sobressai, são como as chamas, capazes de, subitamente e por toda parte, erguerem-se em labaredas. Manifestando-se sob a forma de um incêndio numa floresta ou estepe, o fogo é uma massa hostil; todo homem é capaz de senti-lo intensamente. Na condição de símbolo da massa, o fogo penetrou-lhe a economia psíquica, traduzindo-se num seu componente imutável. Aquele enérgico pisotear de homens que tão frequentemente se observa em situações de pânico e que se afigura tão sem sentido nada mais é do que um pisotear o fogo, com o intuito de apagá-lo.
A desagregação pelo pânico somente se deixa evitar na medida em que se prolonga o estado original de medo experimentado homogeneamente em massa. Numa igreja ameaçada, isso é possível: compartilhando do medo, as pessoas rezam para um deus comum, que tem nas mãos a possibilidade de, através de um milagre, extinguir o fogo.
continua página 37...
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Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - A Massa (O Pânico)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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