sábado, 6 de abril de 2024

O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (11)

Simone de Beauvoir


02. A Experiência Vivida



O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



SEGUNDA PARTE

SITUAÇÃO
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CAPÍTULO I
A   MULHER CASADA

continuando...

   Para o homem, também o casamento é por vezes uma crise: a prova está em que muitas psicoses masculinas têm início durante um noivado ou durante os primeiros tempos da vida conjugai. Menos apegado à família do que as irmãs, o jovem pertencia a alguma confraria: colégio superior, universidade, atelier de aprendizagem, equipe, bando, que o protegia contra a solidão; larga-a para começar sua verdadeira existência de adulto; teme a solidão futura e é muitas vezes para conjurá-la que se casa. Mas é vítima dessa ilusão que a coletividade alimenta e que apresenta o casal como uma "sociedade conjugal". A não ser durante o rápido incêndio de uma paixão amorosa, dois indivíduos não podem constituir um mundo que os proteja a ambos contra o mundo: é o que ambos sentem após as núpcias. A mulher, desde logo familiar, escravizada, não mascara a liberdade do marido; ela é um fardo, não um álibi; não o exime do peso de suas responsabilidades, agrava-o, ao contrário. A diferença dos sexos implica amiúde diferenças de idade, educação, situação que não permitem nenhum entendimento real: embora familiares, são os esposos estranhos. Outrora, havia muitas vezes entre eles um verdadeiro abismo: a jovem, educada em um estado de ignorância, de inocência, não tinha nenhum "passado", ao passo que o noivo "vivera", a ele cabia iniciá-la na realidade da existência. Certos homens sentiam-se lisonjeados com essa tarefa delicada; mais lúcidos, mediam com inquietação a distância que os separava da futura companheira. Edith Wharton descreveu, em seu romance This age of innocence, os escrúpulos de um jovem norte-americano de 1870 em face da moça que lhe era destinada: 

Com uma espécie de respeitoso terror, ele contemplou a fronte pura, os olhos sérios, a boca inocente e alegre da jovem criatura que lhe ia confiar a alma. Esse produto temível do sistema social de que ele participava e em que acreditava — a jovem que tudo ignorando tudo esperava — apresentava-se agora a ele como uma estranha... Em verdade, que sabiam eles um do outro, posto que era de seu dever de homem distinto esconder o passado à noiva e dever desta não o ter?... A moça, centro desse sistema de mistificação superiormente elaborado, revelava-se, por sua própria fraqueza e coragem, um enigma ainda mais indecifrável. Era franca, a pobre querida, porque não tinha o que esconder; confiante, porque não imaginava que se devesse defender; e sem maior preparação, ia ser mergulhada, numa noite, nisso que chamam "as realidades da vida"... Tendo feito pela centésima vez um exame completo daquela alma sucinta, voltou desanimado ao pensamento de que aquela pureza factícia, tão habilmente fabricada pela conspiração das mães, das tias, das avós, até às remotas antepassadas puritanas, só existia para a satisfação de seus gostos pessoais, para que ele pudesse exercer sobre ela seu direito de senhor e destruí-la como uma estátua de neve. 

   Hoje o fosso é menos profundo porque a jovem é um ser menos factício; está mais bem informada, mais bem armada para a vida. Mas muitas vezes é ela ainda muito mais jovem do que o marido. É um ponto cuja importância não se acentuou suficientemente; tomam-se amiúde por diferenças de sexo as consequências de uma maturidade desigual; em muitos casos, a mulher é uma criança, não porque seja mulher, mas porque é realmente muito jovem. A seriedade do marido e dos amigos do marido acabrunham-na. Sofia Tolstoi escrevia, cerca de um ano depois do dia das núpcias:

Ele é velho, por demais concentrado, e eu sinto-me hoje tão moça e teria tamanha vontade de fazer loucuras! Ao invés de me deitar, gostaria de fazer piruetas, mas com quem?
Uma atmosfera de velhice me envolve, toda a minha coragem é velha. Esforço-me por reprimir todo impulso de mocidade, a tal ponto parece deslocado neste meio de sensatez. 

   Por seu lado, o marido vê em sua mulher um "bebê"; ela não é a companheira que esperava e ele lhe faz sentir; ela se humilha. Sem dúvida, ao sair da casa paterna, ela gosta de encontrar um guia, mas quer também ser encarada como uma adulta; deseja permanecer criança mas quer tornar-se mulher; o marido mais idoso nunca a pode tratar de maneira a satisfazê-la inteiramente.
   Mesmo que a diferença de idade seja insignificante, há que considerar que a moça e o rapaz foram em geral educados de modo bem diverso; ela emerge de um universo feminino em que lhe inculcaram uma sabedoria feminina, e respeito aos valores femininos, ao passo que ele está imbuído dos princípios da ética masculina. É-lhes muitas vezes difícil compreenderem-se e os conflitos não tardam.
   Pelo fato de, em geral, o casamento subordinar a mulher ao marido, é principalmente a ela que se apresenta em toda a sua acuidade o problema das relações conjugais. O paradoxo do casamento está em que é, a um tempo, uma função erótica e uma função social: essa ambivalência reflete-se na figura que o marido assume para a jovem mulher. É um semideus dotado de prestígio viril e destinado a substituir o pai: protetor, provedor, tutor, guia; é à sombra dele que a vida da esposa deve desabrochar; ele é o detentor dos valores, o fiador da verdade, a justificação ética do casal. Mas é também um macho com quem cumpre partilhar uma experiência amiúde vergonhosa, barroca, odiosa, ou revolucionante, contingente em todo caso; ele convida a mulher a chafurdar consigo na bestialidade, ao mesmo tempo que a dirige com firmeza para o ideal.

Uma noite, em Paris, de volta a casa, eles se detiveram, Bernard deixou ostensivamente um music-hall cujo espetáculo o chocara: "Dizer que os estrangeiros veem isto! Que vergonha, e é por isso que nos julgam... " Thérèse admirava que esse homem pudico fosse o mesmo cujas pacientes invenções da escuridão lhe seria necessário suportar dentro de menos de uma hora (Cf. Mauriac, Thérèse Desqueyroux). 
   
   Entre o mentor e o fauno numerosas formas híbridas são possíveis. Por vezes, o homem é ao mesmo tempo pai e amante, o ato sexual torna-se uma orgia sagrada e a esposa uma amorosa que encontra nos braços do esposo uma salvação definitiva alcançada através de uma demissão total. Este amor-paixão dentro da vida conjugal é muito raro. Por vezes, também, a mulher amará platonicamente seu marido mas recusar-se-á a entregar-se aos braços de um homem respeitado demais. É o caso dessa mulher de que fala Stekel: "Mme D. S., viúva de um grande artista, tem agora 40 anos. Embora adorando o marido, foi com ele inteiramente fria". Ao contrário, pode ela ter com ele um prazer que suporta como uma diminuição e mata nela estima e respeito. Por outro lado, um malogro erótico coloca para sempre o marido ao nível do animal: odiado em sua carne, ele será desprezado em seu espírito; inversamente, verificamos como desprezo, antipatia, rancor determinavam a frieza na mulher. O que acontece em um número assaz grande de vezes é que o marido permanece, após a experiência sexual, um superior respeitado, cujas fraquezas animais se desculpam; parece que foi, entre outros, o caso de Adèle Hugo. Ou então fica ele sendo um agradável parceiro sem prestígio. K. Mansfield descreveu na novela Prelúdio uma das formas que pode assumir essa ambivalência:

Ela amava-o realmente. Adorava-o, admirava-o e respeitava-o enormemente. Sim, mais do que qualquer pessoa no mundo. Conhecia-o a fundo. Ele era a franqueza, a própria respeitabilidade e, apesar de toda a sua experiência prática, continuava simples, absolutamente ingênuo, contente com pouca coisa e vexado com pouca coisa. Se ao menos não saltasse assim nela, gritando tanto, olhando-a com olhos tão ávidos, tão amorosos! Era forte demais para ela. Desde a infância detestava as coisas que se precipitavam sobre ela. Havia momentos em que ele se tornava terrificante, realmente terrificante, em que ela quase gritava com toda a força: vais matar-me! E então ela tinha vontade de dizer coisas duras, coisas detestáveis. . . Sim, sim, era verdade; com todo o seu amor, todo o seu respeito e a sua admiração por Stanley, ela o detestava. Nunca sentira isso tão claramente; todos esses sentimentos por ele eram claros, definidos, tão verdadeiros uns como outros. E esse ódio, bem real, como o resto. Teria podido fazer pacotinhos com eles e dá-los a Stanley. Tinha vontade de entregar-lhe o último como surpresa e imaginava os olhos dele quando o abrisse.

   A jovem mulher está longe de se confessar sempre seus sentimentos com essa sinceridade. Amar o marido, ser feliz, é um dever para consigo mesma e para com a sociedade; é o que sua família espera dela; ou, se os pais se mostraram hostis ao casamento, é um desmentido que lhes quer infligir. Em geral ela começa vivendo sua situação conjugal de má-fé; persuade-se de bom grado de que sente pelo marido um grande amor; e essa paixão assume uma forma tanto mais maníaca, possessiva, ciumenta quanto menos satisfeita sexualmente é a mulher; para se consolar da decepção, que a princípio se recusa a confessar, ela tem insaciavelmente necessidade da presença do marido. Stekel cita numerosos exemplos desses apegos doentios.

Em consequência de fixações infantis, uma mulher permanecerá fria durante os primeiros anos do casamento. Desenvolveu-se então nela um amor hipertrofiado como acontece frequentemente com mulheres que não querem ver que o marido é indiferente em relação a elas. Ela só vivia e pensava no marido. Não tinha mais vontade. Ele devia, pela manhã, fazer o programa do dia dela, dizer-lhe o que lhe cabia comprar etc. Ela executava tudo conscienciosamente. Se ele não lhe indicava nada, ela ficava no quarto sem fazer nada, com saudade dele. Não podia deixá-lo ir a parte alguma sem o acompanhar. Não podia ficar sozinha e gostava de lhe segurar a mão.. . Era infeliz, chorava durante horas, tremia por ele e, quando não havia motivo para tremer, ela o criava. 
Meu segundo caso é o de uma mulher encerrada num quarto como numa prisão, de medo de sair sozinha. Encontrava-a segurando as mãos do marido, conjurando-o a permanecer sempre perto dela. . . Casada há sete anos, nunca ele pudera ter relações com ela.


   O caso de Sofia Tolstoi é análogo; conclui-se evidentemente, dos trechos que citei e de todo o diário, que logo depois de casar ela percebeu que não amava o marido. As relações carnais que tinha com ele enojavam-na; censurava-lhe o passado, achava-o velho e aborrecido, só manifestava hostilidade às ideias dele; parece, de resto, que ávido e brutal na cama, ele a negligenciava e tratava duramente. Aos gritos de desespero, às confissões de tédio, de tristeza, de indiferença, misturam-se, entretanto, em Sona, protestos de amor apaixonado: ela quer sempre ter a seu lado o esposo bem-amado; mal ele se afasta, ela fica torturada pelo ciúme. Eis o que escreve:

11-1-1863: Meu ciúme é uma doença inata. Talvez provenha de que, amando somente a ele, não posso ser feliz senão com ele, por ele.
15-1-1863: Gostaria que ele só sonhasse comigo e pensasse em mim, só amasse a mim. Mal acabo de afirmar que gosto disto ou daquilo e me retrato: sinto que não amo outra coisa além de Liovotchka. No entanto, deveria gostar absolutamente de outra coisa, como ele gosta de seu trabalho... Sinto, porém tal angústia sem ele! Sinto aumentar dia a dia a necessidade de não o deixar...
17-10-1863: Sinto-me incapaz de compreendê-lo bem, eis por que o vigio tão ciumentamente...  
31-7-1868: Como é engraçado reler um diário! Quantas contradições! Como se eu fosse uma mulher infeliz! Existirão casais mais unidos e felizes do que nós? Meu amor aumenta sempre. Amo-o sempre com o mesmo amor inquieto, apaixonado, ciumento, poético. Sua calma e sua segurança irritam-me por vezes.
16-9-1876: Procuro avidamente em seu diário as páginas em que trata de amor e logo que as encontro sou devorada pelo ciúme. Quero mal a Liovotchka por ter partido. Não durmo, não como quase nada, engulo minhas lágrimas ou choro escondida. Tenho todos os dias um pouco de febre e arrepios à noite... Estarei sendo punida por ter amado tanto?  
   Sentimos, através de todas essas páginas, um inútil esforço para compensar, pela exaltação moral ou "poética", a ausência de um amor verdadeiro; é esse vazio do coração que as exigências, a ansiedade, o ciúme traduzem. Muitos ciúmes mórbidos desenvolvem-se em condições semelhantes; o ciúme traduz de uma maneira indireta uma insatisfação que a mulher objetiva inventando uma rival; não experimentando nunca junto do marido um sentimento de plenitude, ela de certo modo racionaliza sua decepção imaginando que ele a engana.


continua página 220...

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O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (11)
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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.


"O que é uma mulher?"

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