Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
O mais triste é que esse trabalho não conduz sequer a uma criação duradoura. A mulher é tentada — tanto mais quanto mais cuidado nela pôs — a considerar sua obra como um fim em si. Contemplando o bolo que tira do forno, ela suspira: é realmente uma pena comê-lo! É realmente uma pena que o marido e os filhos arrastem os pés enlameados pelo assoalho encerado. Logo que as coisas servem sujam-se ou se destroem: ela é tentada, já o vimos, a subtraí-las a qualquer uso; uma guarda suas geleias até que o mofo as invada; outra fecha o salão a chave. Mas não se pode parar o tempo; as provisões atraem os ratos, os vermes acorrem. As cobertas, as cortinas, as roupas são comidas pelas traças: o mundo não é um sonho de pedra, mas sim feito de uma substância equívoca que a decomposição ameaça. O tecido comestível é tão equívoco quanto os relógios de carne de Dali: parecia inerte, inorgânico, mas as larvas escondidas metamorfosearam-no em cadáver. A dona de casa, que se aliena em coisas depende, como as coisas, do mundo inteiro: a roupa enferruja, o assado queima, a porcelana quebra; são desastres absolutos, porque as coisas, quando se perdem, se perdem irreparavelmente. É impossível obter permanência e segurança através delas. As guerras ameaçam com bombas e saques os armários, a casa.
É preciso, portanto, que o produto do trabalho doméstico se consuma; uma renúncia constante é exigida da mulher, cujas operações só terminam com a destruição. Para que ela consinta nisso sem lamentá-lo, é preciso, pelo menos, que esses pequenos holocaustos acendam uma alegria, um prazer algures. Mas como o trabalho doméstico se esgota na manutenção de um status quo, o marido ao voltar para casa observa a desordem e a negligência, mas parece-lhe que a ordem e a limpeza são naturais. Ele dedica um interesse mais positivo à refeição bem preparada. O momento em que triunfa a cozinheira, é o momento em que põe sobre a mesa um prato bem feito: marido e filhos acolhem-no com entusiasmo, não somente com palavras mas ainda consumindo-o alegremente. A alquimia culinária prossegue, o alimento torna-se quilo e sangue. A manutenção de um corpo tem um interesse mais concreto, mais vital que o de um assoalho; o esforço da cozinheira é de uma maneira evidente ultrapassado para o futuro. Entretanto, se repousar numa liberdade estranha é menos vão do que alienar-se nas coisas, não é menos perigoso. É somente na boca dos convivas que o trabalho da cozinheira encontra sua verdade; ela precisa dos seus sufrágios; ela exige que eles apreciem seus pratos, que os repitam; ela irrita-se se eles não têm mais fome: a tal ponto que não se sabe mais se as batatas fritas se destinam ao marido ou o marido às batatas fritas. Esse equívoco se encontra no conjunto das atitudes da mulher doméstica: ela cuida da casa para o marido, por isso mesmo exige que ele destine todo o dinheiro que ganha à compra de móveis ou de uma geladeira. Ela quer torná-lo feliz, mas só aprova as atividades dele que cabem no quadro da felicidade que ela construiu.
Houve épocas em que tais pretensões eram geralmente satisfeitas: nos tempos em que a felicidade era também o ideal do homem, em que ele estava antes de tudo apegado a sua casa, a sua família, e em que os próprios filhos queriam definir-se pelos pais, as tradições, o passado. Então, aquela que reinava no lar, que presidia à mesa, era reconhecida como soberana; ela desempenha ainda esse glorioso papel entre certos proprietários fundiários, certos ricos camponeses que perpetuam esporadicamente a civilização patriarcal. Mas, no conjunto, o casamento é hoje a sobrevivência de costumes defuntos e a situação da esposa é muito mais ingrata do que outrora, porque ela tem ainda os mesmos deveres mas não os mesmos direitos; tem as mesmas tarefas sem tirar delas recompensa nem honra. O homem, hoje, casa para ancorar na imanência, mas não para nela se encerrar; quer um lar mas conservando a liberdade de se evadir dele; fixa-se, mas o mais das vezes continua vagabundo no fundo do coração; não despreza a felicidade mas não faz dela um fim em si; a repetição aborrece-o; procura a novidade, o risco, resistências que lhe caiba vencer, camaradagens, amizades que o arranquem da solidão a dois. Os filhos, mais ainda do que o marido, almejam ultrapassar os limites do lar: sua vida situa-se alhures, à sua frente; a criança deseja sempre o que é outro. A mulher tenta constituir um universo de permanência e continuidade: marido e filhos querem ultrapassar a situação que ela cria e que não passa para eles de um dado. Eis por que lhe repugna admitir a precariedade das atividades a que toda sua vida obriga, é ela levada a impor seus serviços pela força: de mãe e dona de casa ela faz-se madrasta e megera.
Assim, o trabalho que a mulher executa no interior do lar não lhe confere autonomia; não é diretamente útil à coletividade, não desemboca no futuro, não produz nada. Só adquire seu sentido e sua dignidade se é integrada a existências que se ultrapassam para a sociedade, na produção ou na ação: isto significa que, longe de libertar a matrona, ele a coloca na, dependência do marido e dos filhos; é através deles que ela se justifica: em suas vidas ela é apenas uma mediação inessencial. O fato de ter o código suprimido a "obediência" dentre seus deveres, não modifica em nada a situação; esta não assenta na vontade dos cônjuges e sim na própria estrutura da comunidade conjugal. Não é permitido à mulher fazer uma obra positiva e, por conseguinte fazer-se reconhecer como pessoa acabada. Por respeitada que seja, é subordinada, secundária, parasita. A grave maldição que pesa sobre ela está em que o sentido mesmo de sua existência não se encontra em suas mãos. Eis por que os êxitos e os malogros de sua vida conjugal têm muito mais gravidade para ela do que para o homem: este é um cidadão, um produtor, antes de ser um marido; ela é antes de tudo — e muitas vezes exclusivamente — uma esposa, seu trabalho não a arranca de sua posição; é desta, ao contrário, que ele tira ou não seu valor. Amorosa, generosamente devotada, ela executará suas tarefas com alegria; elas lhe parecerão insípidas corveias se as executa com rancor. Não terão nunca em seu destino senão um papel inessencial; não serão nenhum socorro nos avatares da vida conjugal. Cumpre-nos ver, portanto, como se vive concretamente essa condição essencialmente definida pelo "serviço" da cama e o "serviço" da casa e na qual a mulher só encontra sua dignidade aceitando sua vassalidade.
Uma crise fez a moça passar da infância à adolescência; é uma crise mais aguda que a precipita na vida de adulta. Às perturbações que provoca facilmente na mulher uma iniciação sexual um tanto brusca, superpõem-se as angústias inerentes a toda "passagem" de uma condição para outra.
Ser lançada como que mediante uma horrível faísca elétrica na realidade e no conhecimento, pelo casamento surpreender o amor e a vergonha em contradição, dever sentir em um só objeto o êxtase, o sacrifício, o dever, a piedade e o pavor, por causa da vizinhança inesperada de Deus e da besta. .. criou-se com isso um emaranhamento da alma que buscaria em vão outro semelhante, escreve Nietzsche.
A agitação da tradicional "viagem de núpcias" era destinada em parte a mascarar esse desatino: jogada durante semanas fora do mundo quotidiano, todas as amarras com a sociedade provisoriamente rompidas, a jovem não se situava mais no espaço, no tempo, na realidade [1] . Mas era-lhe preciso mais cedo ou mais tarde restabelecer-se; e não é nunca sem inquietação que ela se encontra em seu novo lar. Suas ligações com o lar paterno são muita mais estreitas do que as do rapaz. Arrancar-se da família, é uma desmama definitiva: é então que ela conhece toda a angústia do abandono e a vertigem da liberdade. A ruptura é, segundo os casos, mais ou menos dolorosa; se já rompeu os laços que a ligavam ao pai, aos irmãos e às irmãs, e principalmente à mãe, deixa-os sem drama; se dominada ainda por eles, pode praticamente continuai sob a proteção deles e a mudança de situação será menos sensível. Mas, habitualmente, mesmo desejando evadir-se da casa paterna, sente-se desnorteada quando se separa da pequena sociedade em que está integrada, cortada de seu passado, de seu universo infantil de princípios seguros, de valores garantidos. Só uma vida erótica ardente e plena poderia fazê-la novamente banhar-se na paz da imanência; mas de costume ela é primeiramente mais transtornada do que satisfeita; por mais certo que dê, a iniciação sexual não faz senão aumentar sua inquietação. Encontram-se nela, no dia seguinte ao das núpcias, muitas das reações que opôs a sua primeira menstruação: sente muitas vezes nojo ante essa suprema revelação de sua feminilidade, e horror à ideia de que a experiência se renovará. Ela conhece também a amarga decepção dos depois; uma vez regrada, a menina percebia com tristeza que não era uma adulta; deflorada, eis a jovem mulher adulta, foi vencida a última etapa: e agora? Essa decepção inquieta acha-se, aliás, tão ligada ao casamento propriamente dito quanto ao defloramento: uma mulher que já tenha "conhecido" o noivo, ou que tenha "conhecido" outros homens, mas para quem o casamento represente o pleno acesso à vida de adulta, terá amiúde a mesma reação. Viver o início de um empreendimento é exaltante; mas nada é mais deprimente do que descobrir um destino sobre o qual não se tem mais nenhum domínio. É desse fundo definitivo, imutável, que a liberdade emerge com a mais intolerável gratuidade. Antes, a jovem abrigada pela autoridade dos pais, usava de sua liberdade na revolta e na esperança; empregava-a em recusar e em ultrapassar uma condição em que encontrava ao mesmo tempo segurança; era para o casamento que se transcendia do seio do calor familiar; agora ela é casada, não há mais diante dela outro futuro. As portas do lar fecharam-se atrás dela: será esse seu quinhão na terra. Ela sabe exatamente que tarefas a aguardam: as mesmas que sua mãe executava. Dia após dia, os mesmos ritos se repetirão. Jovem, tinha as mãos vazias: na esperança, no sonho, tudo possuía. Agora, ela adquiriu uma parcela do mundo e pensa com angústia: é apenas isto, para sempre. Para sempre este marido, esta casa. Nada mais tem a esperar, nada mais de importante a querer. Entretanto, tem medo de suas novas responsabilidades. Mesmo que o marido seja mais velho e tenha autoridade, o fato de com ele ter relações sexuais tira-lhe o prestígio; não poderia substituir um pai, menos ainda uma mãe, nem livrá-la de sua liberdade. Na solidão do novo lar, ligada a um homem que lhe é mais ou menos estranho, já não mais criança e sim esposa e destinada a ser mãe por sua vez, ela se sente transida: definitivamente destacada do seio materno, perdida no meio de um mundo em que nenhuma meta a chama, abandonada em um presente glacial, ela descobre o tédio e a sensaboria da pura facticidade. É esse desalento que se exprime de uma maneira impressionante no diário da jovem Condêssa Tolstoi; tinha dado a mão com entusiasmo ao grande escritor que admirava; depois dos amplexos fogosos que sofreu no balcão de madeira de Iasnaiava Poliana, ela se reencontra enojada do amor carnal, longe dos seus, cortada de seu passado, ao lado de um homem de quem fora noiva durante oito dias, que tem 17 anos mais do que ela, um passado e interesses que lhe são totalmente estranhos; tudo lhe parece vazio, gélido; sua vida não é mais senão um sono. É preciso citar a narrativa que ela faz no início do casamento e as páginas de seu diário durante os primeiros anos.
[1] A literatura do fim do século situa de bom grado o defloramento no carro dormitório, o que é uma maneira de situá-lo em "parte alguma".
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O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
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