segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O clero, os bosques, a liberdade (XXIII)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo XXIII

O CLERO, OS BOSQUES, A LIBERDADE



A primeira lei de toda criatura é conservar-se, é viver. Semeais a cicuta e 
pretendeis ver amadurecerem espigas!.

MAQUIAVEL


A AUSTERA FIGURA CONTINUAVA; via-se que tinha conhecimento; expunha, com uma eloquência suave e moderada que agradou imensamente a Julien, estas grandes verdades:
1o.) A Inglaterra não tem um guinéu à nossa disposição; lá, a economia e Hume estão na moda. Nem os próprios Saints nos darão dinheiro, e o sr. Brougham zombará de nós.
2o.) Impossível obter mais de duas campanhas dos reis da Europa, sem o ouro inglês; e duas campanhas não serão suficientes contra a pequena burguesia.
3o.) Necessidade de formar um partido armado na França, sem o quê o princípio monárquico da Europa não arriscará sequer essas duas campanhas.
O quarto ponto, que não ouso vos propor como evidente, é o seguinte:
Impossibilidade de formar um partido armado na França sem o clero. Digo-vos isso ousadamente, porque irei prová-lo, senhores. É preciso dar tudo ao clero.
1o.) Porque, ocupado dia e noite com sua missão e guiado por homens de alta capacidade estabelecidos longe das tempestades a trezentas léguas de vossas fronteiras...

– Ah! Roma, Roma!, exclamou o dono da casa...

– Sim, senhor, Roma!, prosseguiu o cardeal com orgulho. Não importa os gracejos que estiveram em moda quando éreis jovens, direi claramente, em 1830, que o clero, guiado por Roma, é o único que fala ao povo humilde. Cinquenta mil padres repetem as mesmas palavras no dia indicado por seus chefes, e o povo, que afinal fornece os soldados, será mais tocado pela voz de seus padres do que por todos os versinhos da sociedade... (Aqui, essa personalidade provocou murmúrios.)

O clero possui um gênio superior ao vosso, continuou o cardeal, elevando a voz; todos os passos que destes para esse ponto capital, ter na França um partido armado, foram dados por nós. Eis aqui os fatos... Quem enviou oitenta mil fuzis à Vendeia?... etc. etc. Enquanto o clero não tiver seus bosques, ele nada apoiará. Na primeira guerra, o ministro das Finanças escreveu a seus agentes que não havia mais dinheiro senão para os padres. No fundo, a França não crê, e ama a guerra. Seja quem for que lha ofereça, ele será duplamente popular, pois fazer a guerra é matar de fome os jesuítas, para falar como o vulgo; fazer a guerra é libertar esses monstros de orgulho, os franceses, da ameaça de intervenção estrangeira.
O cardeal era escutado com respeito... Seria preciso, disse ele, que o sr. de Nerval deixasse o ministério, seu nome irrita inutilmente.
A essa frase, todos levantaram-se e puseram-se a falar ao mesmo tempo. Vão dispensar-me de novo, pensou Julien; mas o próprio e cauteloso presidente esquecera a presença e a existência de Julien.
Todos os olhos buscavam um homem que Julien reconheceu. Era o sr. de Nerval, o primeiro ministro, que ele avistara no baile do sr. duque de Retz.
A desordem atingiu o auge, como dizem os jornais ao falarem da Câmara. Ao cabo de um quarto de hora, o silêncio se restabeleceu um pouco.
Então o sr. de Nerval levantou-se e, com o tom de um apóstolo, disse numa voz singular:

– Eu vos direi que não tenho apego ao ministério. Foi-me demonstrado, senhores, que meu nome redobra as forças dos jacobinos, fazendo que muitos moderados se alinhem contra nós. Portanto, retirar-me-ia de bom grado; mas os caminhos do Senhor são visíveis a um pequeno número. E ele acrescentou, olhando fixamente para o cardeal: tenho uma missão, que o céu me revelou – Levarás tua cabeça a um cadafalso ou restabelecerás a monarquia na França e reduzirás as Câmaras ao que era o parlamento sob Luís XV, e isto, senhores, eu o farei.

Calou-se, tornou a sentar-se, e houve um grande silêncio.
Eis aí um bom ator, pensou Julien. Ele se enganava, como sempre, ao supor espírito demais às pessoas. Animado pelos debates de uma noite tão agitada, e sobretudo pela sinceridade da discussão, naquele momento o sr. de Nerval acreditava em sua missão. Esse homem tinha uma grande coragem, mas não tinha juízo.
Soou meia-noite enquanto permanecia o silêncio após a bela frase, eu o farei. Julien achou que o som do pêndulo tinha algo de imponente e de fúnebre. Ele estava emocionado.
A discussão logo recomeçou com uma energia crescente e, sobretudo, uma inacreditável ingenuidade. Esses homens vão mandar envenenar-me, pensava Julien em alguns momentos. Como podem dizer tais coisas diante de um plebeu?
Soaram duas horas e ainda se falava. O dono da casa já dormia há muito tempo. O sr. de La Mole foi obrigado a tocar a sineta para que renovassem as velas. O sr. de Nerval havia saído à uma hora e três quartos, não sem ter examinado várias vezes a figura de Julien num espelho que o ministro tinha a seu lado. Sua partida pareceu deixar todos à vontade.
Enquanto renovavam as velas, o homem dos coletes disse em voz baixa ao vizinho: sabe lá o que esse homem irá dizer ao rei! Ele pode cobrir-nos de ridículo e estragar nosso futuro. Há que convir que ele mostrou uma rara suficiência, e até mesmo descaramento, em comparecer. Antes de chegar ao ministério ele vinha aqui; mas a função muda tudo, domina todos os interesses de um homem, ele deve ter sentido isso.
Logo que o ministro saiu, o general de Bonaparte falou de sua saúde, de seus ferimentos, consultou o relógio e retirou-se.

– Aposto, disse o homem dos coletes, que o general corre atrás do ministro; irá desculparse de ter vindo aqui e dizer-lhe que ele nos conduz.

Quando os criados semiadormecidos terminaram de renovar as velas, o presidente falou:

– Deliberemos enfim, senhores, não procuremos mais persuadir-nos uns aos outros. Pensemos no conteúdo da nota que dentro de quarenta e oito horas estará sob os olhos de nossos amigos de fora. Falou-se dos ministros. Podemos dizer, agora que o sr. de Nerval nos deixou: que nos importam os ministros? Imporemos nossa vontade a eles.

O cardeal aprovou com um sorriso fino.

– Nada mais fácil, parece-me, do que resumir nossa posição, disse o jovem bispo de Agde, com o ardor concentrado e contido do fanatismo mais exaltado. Até então mantivera-se em silêncio; seu olhar, que Julien observara, a princípio doce e calmo, inflamara-se após a primeira hora de discussão. Agora sua alma transbordava como a lava do Vesúvio.

– De 1806 a 1814, a Inglaterra só cometeu um erro, disse ele, foi não agir direta e pessoalmente contra Napoleão. Assim que esse homem nomeou duques e auxiliares de corte, assim que restabeleceu o trono, a missão que Deus lhe confiara acabou; ele não servia mais senão para ser imolado. As Sagradas Escrituras nos ensinam em mais de um lugar a maneira de acabar com os tiranos. (Aqui ele fez várias citações latinas.)

Atualmente, senhores, não é mais um homem que deve ser imolado, é Paris. Toda a França copia Paris. Para quê armar vossos quinhentos homens por departamento? Empreendimento arriscado e que nada resolverá. Para quê misturar a França a uma questão que se reduz a Paris? Foi Paris apenas, com seus jornais e seus salões, que fez o mal: que a nova Babilônia pereça! É preciso decidir entre o altar e Paris. Essa catástrofe advém mesmo dos interesses mundanos do trono. Por que Paris não ousou queixar-se no tempo de Bonaparte? Perguntem ao canhão de Saint-Roch...

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Foi somente às três da madrugada que Julien saiu com o sr. de La Mole.
O marquês estava envergonhado e fatigado. Pela primeira vez, ao falar a Julien, havia um tom de súplica em sua voz. Ele pedia prometer-lhe jamais revelar os excessos de zelo, foi essa sua expressão, que o acaso o fizera testemunhar. Não fale disso a nosso amigo no estrangeiro, se ele insistir seriamente em conhecer nossos jovens doidos. Que lhes importa que o Estado seja derrubado? Eles serão cardeais e se refugiarão em Roma. Nós, em nossos castelos, seremos massacrados pelos camponeses.
A nota secreta que o marquês redigiu a partir da ata de vinte e seis páginas, escrita por Julien, só ficou pronta às quatro horas e três quartos.

– Estou morto de cansaço, disse o marquês, o que se percebe pela falta de clareza desta nota no final; estou mais descontente com ela do que com qualquer outra coisa que fiz na vida. Tome, meu amigo, ele acrescentou, vá repousar algumas horas, e, por receio de que o raptem, vou trancá-lo à chave em seu quarto.

No dia seguinte, o marquês conduziu Julien a um castelo isolado bastante afastado de Paris. Lá encontraram anfitriões singulares, que Julien julgou serem padres. Entregaram-lhe um passaporte que trazia um nome suposto, mas que indicava enfim o verdadeiro objetivo da viagem que ele continuava fingindo ignorar. Ele subiu sozinho a uma caleche.
O marquês não tinha a menor preocupação com sua memória, Julien recitara-lhe várias vezes a nota secreta, mas temia muito que ele fosse interceptado.

– Procure sobretudo dar a impressão de alguém que viaja apenas para passar o tempo, disse ele com amizade, no momento em que deixava o salão. É possível que houvesse mais de um falso irmão em nossa assembleia de ontem à noite.

A viagem foi rápida e triste. Assim que se afastou do marquês, Julien esqueceu a nota secreta e a missão para pensar apenas no desprezo de Mathilde.
Numa aldeia algumas léguas além de Metz, o encarregado da posta veio dizer-lhe que não havia cavalos disponíveis. Eram dez horas da noite; muito contrariado, Julien pediu uma ceia. Ficou a andar diante da porta e, imperceptivelmente, aparentando naturalidade, foi até o pátio das estrebarias. Lá não viu cavalos.
O aspecto desse homem, no entanto, era estranho, pensava Julien; seu olhar grosseiro me examinava.
Como se vê, ele começava a não acreditar exatamente em tudo que lhe diziam. Pensava em escapar depois da ceia e, para ficar sabendo alguma coisa sobre a região, deixou seu quarto para aquecer-se junto ao fogão da cozinha. Qual não foi sua surpresa ao encontrar ali o signor Geronimo, o célebre cantor.
Instalado numa poltrona que havia mandado trazer para junto do fogo, o napolitano gemia e falava mais, sozinho, que os vinte camponeses alemães que o cercavam embasbacados.

– Essa gente vai me arruinar, queixou-se a Julien; prometi cantar amanhã em Mayence. Sete príncipes soberanos estarão lá para ouvir-me. Mas vamos tomar um ar lá fora, acrescentou de um modo significativo.

Quando estavam a cem passos na estrada e fora do alcance de serem ouvidos, ele disse a Julien:

– Sabe o que estou pensando? Esse encarregado da posta é um tratante. Enquanto eu passeava, dei uns vinténs a um garoto que me contou tudo. Há mais de doze cavalos numa estrebaria na outra extremidade da aldeia. Querem retardar algum correio.

– Será mesmo?, disse Julien, com um ar inocente.

Não bastava descobrir a fraude, era preciso partir; e isto, Geronimo e seu amigo não tinham como fazê-lo. Esperemos o dia, disse enfim o cantor, desconfiam de nós. Talvez seja a você ou a mim que querem. Amanhã de manhã, solicitamos um bom desjejum; enquanto o preparam, saímos a passear e escapamos, alugamos cavalos e alcançamos a próxima posta.

– E suas bagagens?, perguntou Julien, que pensava que o próprio Geronimo podia ter sido enviado para interceptá-lo. Foi preciso cear e deitar-se. Julien estava ainda no primeiro sono, quando foi despertado em sobressalto pela voz de duas pessoas que falavam em seu quarto, sem se preocuparem muito.

Ele reconheceu o encarregado da posta, armado de uma lanterna. A luz era dirigida para o baú da caleche, que Julien mandara subir até seu quarto. Ao lado do encarregado da posta estava um homem que vasculhava tranquilamente no baú aberto. Julien distinguia apenas as mangas de sua roupa, que eram negras e muito estreitas.
É uma batina, pensou, e suavemente pegou as pequenas pistolas que colocara debaixo do travesseiro.

– Não tenha medo que ele desperte, senhor padre, dizia o encarregado da posta. O vinho que lhe servimos foi o que o senhor mesmo preparou.

– Não encontro nenhum vestígio de papéis, dizia o padre. Muitas roupas, perfumes, pomadas, futilidades; é um jovem mundano, ocupado com seus prazeres. O emissário deve ser o outro, que finge falar com um sotaque italiano.

Os dois aproximaram-se de Julien para examinar os bolsos de rua roupa de viagem. Ele estava muito tentado a matá-los como ladrões. Nada menos perigoso quanto às consequências. Teve muita vontade. Mas seria uma tolice, pensou, eu comprometeria minha missão. Tendo examinado sua roupa, o padre disse: Esse não é um diplomata, e afastou-se.
Fez bem, pensou Julien. Ai dele se tocasse em mim! Podia querer apunhalar-me, e isso eu não permitiria.
O padre virou a cabeça, Julien entreabriu um pouco os olhos; qual não foi seu espanto ao ver que era o padre Castanède! De fato, embora as duas pessoas falassem em voz baixa, pareceu-lhe reconhecer, desde o início, uma das vozes. Julien foi tomado de uma vontade enorme de livrar a terra de um de seus piores patifes...
Mas minha missão!, pensou.
O padre e seu acólito saíram. Um quarto de hora depois, Julien fingiu despertar. Chamou e acordou a casa inteira.

– Fui envenenado, exclamava, estou sofrendo horrivelmente! Ele queria um pretexto para ir em auxílio de Gerônimo. Encontrou-o meio asfixiado pelo láudano contido no vinho.

Temendo algo semelhante, Julien havia ceado com o chocolate trazido de Paris. Ele não conseguiu despertar Gerônimo o bastante para decidi-lo a partir.

– Nem que me desse o reino inteiro de Nápoles, dizia o cantor, não renunciaria neste momento à volúpia de dormir.

– Mas os sete príncipes soberanos!

– Que esperem.

Julien partiu sozinho e chegou sem outros incidentes até a importante figura. Perdeu a manhã inteira a solicitar em vão uma audiência. Por sorte, pelas quatro da tarde, o duque quis espairecer. Julien viu-o sair a pé e não hesitou em aproximar-se e pedir-lhe uma esmola. Estando a dois passos dele, tirou o relógio do marquês de La Mole e mostrou-o com ostentação. Siga-me de longe, disse a importante figura sem olhá-lo.
A um quarto de légua dali, o duque entrou bruscamente num pequeno Café-hauss. Foi num quarto desse albergue de última categoria que Julien teve a honra de recitar ao duque suas quatro páginas. Quanto terminou, este lhe disse: Recomece e vá mais devagar.
O príncipe tomou notas. Vá a pé até a próxima posta. Abandone aqui suas bagagens e sua caleche. Vá a Estrasburgo como puder, e a vinte e dois deste mês (estava-se a dez) retorne ao meio-dia e meia a este mesmo Café-hauss. Só saia dentro de meia hora. Silêncio!
Foram as únicas palavras que Julien ouviu. Mas foram suficientes para penetrá-lo da mais alta admiração. É assim que se procede nos negócios, pensou; o que diria esse grande homem de Estado se ouvisse os tagarelas apaixonados de três dias atrás?
Julien gastou dois dias até chegar em Estrasburgo, parecia-lhe que nada havia a fazer ali. Fez um grande desvio. Se esse maldito padre Castanède me reconheceu, não é homem de perder facilmente minha pista... E que prazer teria em zombar de mim e em fazer fracassar minha missão!
O padre Castanède, chefe da polícia da Congregação em toda a fronteira norte, felizmente não o reconhecera. E os jesuítas de Estrasburgo, embora muito zelosos, não pensaram de modo algum em observar Julien que, com sua medalha e a sobrecasaca azul, parecia um jovem militar muito ocupado com sua pessoa.


continua página 270...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: O clero, os bosques, a liberdade (XXIII)

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