Livro II
Ela não é galante,
não usa ruge algum.
não usa ruge algum.
Sainte-Beuve
Capítulo XX
O VASO JAPONÊS
Seu coração não compreende, de início, todo o excesso de sua infelicidade;
está mais perturbado que comovido. Mas, à medida que a razão retorna, ele
sente a profundidade de seu infortúnio. Todos os prazeres da vida estão
aniquilados para ele, que pode sentir apenas os vivos aguilhões que o
dilaceram. Mas para que falar de dor física? Que dor sentida apenas pelo
corpo é comparável a essa?
JEAN PAUL
TOCAVAM A SINETA DO JANTAR, Julien teve tempo apenas de vestir-se; no salão encontrou Mathilde, que instava o irmão e o sr. de Croisenois para que não fossem à noite a Suresnes, na casa da sra. marechala de Fervaques.
Teria sido difícil ser mais sedutora e mais amável para com eles. Depois do jantar apareceram os srs. de Luz, de Caylus e vários de seus amigos. Dir-se-ia que a srta. de La Mole havia retomado, com o culto da amizade fraterna, o das conveniências mais exatas. Embora o tempo estivesse agradável nessa noite, ela insistiu para que não fossem ao jardim; quis que não se afastassem da bergère onde estava a sra. de La Mole. O canapé azul foi o centro do grupo, como no inverno.
Mathilde estava indisposta contra o jardim, ou ao menos este lhe parecia perfeitamente enfadonho: estava ligado à lembrança de Julien.
A infelicidade diminui a inteligência. Nosso herói teve a má ideia de ficar junto àquela cadeira de palha, que outrora fora a testemunha de triunfos tão brilhantes. Nesse dia ninguém lhe dirigiu a palavra; sua presença era como despercebida, e pior ainda. Aqueles dentre os amigos da srta. de La Mole que estavam perto dele, na extremidade do canapé, fingiam de certo modo virar-lhe as costas, pelo menos ele teve essa impressão.
É um banimento de corte, pensou. Quis estudar por um instante as pessoas que pretendiam acabrunhá-lo com seu desdém.
O tio do sr. de Luz tinha um cargo importante junto ao rei, o que fazia esse elegante oficial colocar no começo de sua conversação, com cada interlocutor que aparecesse, esta curiosidade: seu tio pusera-se a caminho de Saint-Cloud às sete da manhã e contava passar a noite lá. Esse detalhe era dito com toda a aparência da naturalidade, mas sempre se repetia.
Observando o sr. de Croisenois com o olhar severo da infelicidade, Julien notou a extrema influência que esse bom e amável jovem supunha às causas ocultas, a ponto de entristecer-se e ficar mal-humorado se visse um acontecimento um pouco importante ser atribuído a uma causa simples e natural. Há nisso um pouco de loucura, pensou Julien. Esse caráter tem uma relação impressionante com o do imperador Alexandre, tal como me descreveu o príncipe Korasoff. Durante o primeiro ano de sua estada em Paris, o pobre Julien, recém-saído do seminário e deslumbrado com os encantos para ele tão novos desses amáveis jovens, não pudera senão admirá-los. O verdadeiro caráter deles somente agora começava a desenhar-se a seus olhos.
Desempenho aqui um papel indigno, ele pensou, de repente. A questão era deixar sua pequena cadeira de palha de um modo que não fosse muito inábil. Quis inventar, pedia algo de novo a uma imaginação muito ocupada com outras coisas. Era preciso recorrer à memória; a dele, tinha que admitir, era pouco rica em recursos desse gênero. O pobre rapaz tinha ainda pouca prática; assim, ele foi de uma inabilidade perfeita e notada por todos quando se levantou para deixar o salão. A infelicidade era demasiado evidente em toda a sua maneira de ser. Há três quartos de hora desempenhava o papel de um importuno subalterno ao qual ninguém se dá o trabalho de esconder o que pensa dele.
Contudo, as observações críticas que acabava de fazer sobre os rivais impediram-no de tomar sua infelicidade como algo muito trágico; para sustentar seu orgulho, ele tinha a lembrança do que se passara na antevéspera. Não importa as vantagens que eles possuam, pensava, ao entrar sozinho no jardim, Mathilde não foi para nenhum deles o que por duas vezes na vida foi para mim.
Sua sabedoria não foi mais longe. Ele não compreendia de modo algum o caráter da pessoa singular que o acaso transformara em dona absoluta de toda a sua felicidade.
Limitou-se, no dia seguinte, a matar de cansaço a si e ao cavalo. Não tentou mais aproximar-se, à noite, do canapé azul, ao qual Mathilde era fiel. Notou que o conde Norbert não se dignava sequer olhá-lo quando o encontrava na casa. Sendo naturalmente tão polido, pensou, ele deve impor-se uma estranha violência.
Para Julien, o sono teria sido a felicidade. A despeito do cansaço físico, lembranças sedutoras começavam a invadir sua imaginação. Ele não soube perceber que, por suas corridas a cavalo nos bosques dos arredores de Paris, não agindo senão sobre si próprio e de maneira nenhuma sobre o coração ou o espírito de Mathilde, deixava ao acaso a disposição de seu destino.
Parecia-lhe que uma coisa traria à sua dor um alívio infinito: falar a Mathilde. Mas o que ousaria dizer a ela?
Era nisso que ele pensava profundamente, uma manhã, às sete horas, quando a viu de repente entrar na biblioteca.
– Sei que deseja falar-me, senhor.
– Santo Deus! Quem lhe disse?
– Eu sei, que importa? Se o senhor não tiver honra, poderá arruinar-me ou ao menos tentar arruinar-me; mas não creio que esse perigo seja real, e ele certamente não me impedirá de ser sincera. Não o amo mais, senhor, minha imaginação louca me enganou...
A esse golpe terrível, perdido de amor e de infelicidade, Julien tentou justificar-se. Nada mais absurdo. Alguém justifica-se por desagradar? Mas a razão não tinha mais nenhum domínio sobre as ações dele. Um instinto cego o impelia a retardar a decisão de sua sorte. Parecia-lhe que, enquanto falasse, nem tudo estava terminado. Mathilde escutava suas palavras, o som delas a irritava, ela não concebia que ele tivesse a audácia de interrompê-la.
Os remorsos da virtude e os do orgulho tornavam-na, naquela manhã, igualmente infeliz. Sentia-se, de certo modo, arrasada pela terrível ideia de ter dado direitos sobre ela a um padrezinho, filho de um camponês. É mais ou menos, dizia a si mesma nos momentos em que exagerava sua infelicidade, como se eu tivesse que censurar-me uma fraqueza por um dos lacaios.
Nos caracteres ousados e orgulhosos há somente um passo da cólera contra si mesma à violência contra os outros; os transportes de fúria são, nesse caso, um intenso prazer.
Num instante, a srta. de La Mole passou a mostrar a Julien as marcas de desprezo mais excessivas. Ela era muito inteligente, e essa inteligência triunfava na arte de torturar o amor-próprio alheio e de infligir-lhe feridas cruéis.
Pela primeira vez na vida, Julien via-se submetido a uma inteligência superior, animada contra ele do ódio mais violento. Longe de pensar em defender-se nesse instante, passou a desprezar a si mesmo. Ao ver-se atingido por palavras de desprezo tão cruéis, e calculadas com tanto espírito para destruir qualquer boa opinião que pudesse ter de si próprio, parecia-lhe que Mathilde tinha razão e que ela não dizia o suficiente.
Quanto a ela, era com um delicioso prazer de orgulho que punia desse modo, a ela e a ele, pela adoração que sentira alguns dias atrás.
Ela não tinha necessidade de inventar e de pensar pela primeira vez as coisas cruéis que lhe dirigia com tanta complacência. Apenas repetia o que há oito dias lhe ditava em seu coração o advogado do partido contrário ao amor.
Cada palavra multiplicava por cem a terrível infelicidade de Julien. Ele quis fugir, a srta. de La Mole reteve-o pelo braço com autoridade.
– Queira observar, disse ele, que está falando muito alto, irão escutá-la na peça vizinha.
– Que importa!, respondeu orgulhosamente a srta. de La Mole, quem ousará dizer-me que me escutam? Quero curar para sempre seu pequeno amor-próprio das ideias que ele pôde formar a meu respeito.
Quando Julien pôde sair da biblioteca, estava tão espantado que sentia menos sua infelicidade. Com que então ela não mais me ama, repetia, falando a si mesmo como para tomar consciência de sua posição. Parece que ela me amou por oito ou dez dias, e eu a amarei a vida inteira.
Será possível? Há poucos dias ela não significava nada, nada para o meu coração!
As satisfações do orgulho inundavam o coração de Mathilde; ela fora capaz de romper para sempre. Triunfar tão completamente de uma inclinação tão poderosa a faria perfeitamente feliz. Assim esse pequeno burguês compreenderá, e de uma vez por todas, que não tem e jamais terá nenhum domínio sobre mim. Estava tão feliz que realmente não sentia mais amor naquele momento.
Depois de uma cena tão cruel, tão humilhante, num indivíduo menos apaixonado que Julien, o amor teria se tornado impossível. Sem afastar-se um só instante do que devia a si mesma, a srta. de La Mole dissera-lhe aquelas coisas desagradáveis de uma forma tão bem calculada que elas podiam parecer uma verdade, mesmo quando examinadas depois com frieza.
A conclusão que Julien tirou, no primeiro momento, de uma cena tão espantosa foi que Mathilde tinha um orgulho infinito. Ele acreditava firmemente que tudo estava acabado para sempre entre os dois; no entanto, no dia seguinte durante o almoço, mostrou-se desajeitado e tímido diante dela. Era um defeito que não lhe podiam ter reprovado até então. Tanto nas pequenas como nas grandes coisas, ele sabia claramente o que devia e queria fazer, e o executava.
Naquele dia, depois do almoço, como a sra. de La Mole lhe pedisse um folheto sedicioso e no entanto muito raro que, de manhã, o pároco lhe trouxera em segredo, Julien, ao pegá-lo sobre um console, deixou cair um vaso de porcelana azul, horrivelmente feio.
A sra. de La Mole levantou-se, dando um grito de pesar, e veio examinar de perto as ruínas de seu querido vaso. Era um antigo vaso japonês, dizia, pertenceu à minha tia-avó, a abadessa de Chelles; era um presente dos holandeses ao duque de Orléans, o regente, que o dera à filha...
Mathilde seguira o movimento da mãe, encantada de ver quebrado esse vaso azul que julgava horroroso. Julien estava em silêncio e não muito perturbado; viu a srta. de La Mole muito perto de si.
– Esse vaso, ele disse a ela, está destruído para sempre, como o está um sentimento que foi outrora senhor do meu coração; peço-lhe aceitar minhas desculpas por todas as loucuras que ele me fez fazer; e saiu.
– Na verdade, disse a sra. de La Mole quando ele se retirou, o sr. Sorel parece até estar contente e orgulhoso do que acaba de fazer.
Essa frase caiu em cheio sobre o coração de Mathilde. É verdade, ela pensou, minha mãe adivinhou com exatidão, é esse o sentimento que o anima. Somente então cessou a alegria da cena que ela lhe fizera na véspera. Pois bem, tudo está acabado, disse a si mesma com uma calma aparente; resta-me um grande exemplo; esse erro foi terrível, humilhante! Ele me ensinará a prudência pelo resto da vida.
Terei dito a verdade?, pensava Julien.
Por que o amor que eu tinha por essa louca me atormenta ainda? Esse amor, longe de extinguir-se como ele esperava, fez progressos rápidos. Ela de fato é louca, ele pensava, mas é menos adorável? É possível ser mais encantadora? Tudo o que a civilização mais elegante pode oferecer de prazeres vivos não estava reunido, como que à porfia, na srta. de La Mole? Essas lembranças de felicidade passada apoderavam-se de Julien e destruíam rapidamente todo o trabalho de sua razão.
A razão luta em vão contra lembranças desse tipo; seus esforços severos não fazem senão aumentar o encanto delas.
Vinte e quatro horas depois de ter quebrado o velho vaso japonês, Julien era decididamente um dos homens mais infelizes.
Leia também:
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)O Vermelho e o Negro: A nota secreta (XXI)
Teria sido difícil ser mais sedutora e mais amável para com eles. Depois do jantar apareceram os srs. de Luz, de Caylus e vários de seus amigos. Dir-se-ia que a srta. de La Mole havia retomado, com o culto da amizade fraterna, o das conveniências mais exatas. Embora o tempo estivesse agradável nessa noite, ela insistiu para que não fossem ao jardim; quis que não se afastassem da bergère onde estava a sra. de La Mole. O canapé azul foi o centro do grupo, como no inverno.
Mathilde estava indisposta contra o jardim, ou ao menos este lhe parecia perfeitamente enfadonho: estava ligado à lembrança de Julien.
A infelicidade diminui a inteligência. Nosso herói teve a má ideia de ficar junto àquela cadeira de palha, que outrora fora a testemunha de triunfos tão brilhantes. Nesse dia ninguém lhe dirigiu a palavra; sua presença era como despercebida, e pior ainda. Aqueles dentre os amigos da srta. de La Mole que estavam perto dele, na extremidade do canapé, fingiam de certo modo virar-lhe as costas, pelo menos ele teve essa impressão.
É um banimento de corte, pensou. Quis estudar por um instante as pessoas que pretendiam acabrunhá-lo com seu desdém.
O tio do sr. de Luz tinha um cargo importante junto ao rei, o que fazia esse elegante oficial colocar no começo de sua conversação, com cada interlocutor que aparecesse, esta curiosidade: seu tio pusera-se a caminho de Saint-Cloud às sete da manhã e contava passar a noite lá. Esse detalhe era dito com toda a aparência da naturalidade, mas sempre se repetia.
Observando o sr. de Croisenois com o olhar severo da infelicidade, Julien notou a extrema influência que esse bom e amável jovem supunha às causas ocultas, a ponto de entristecer-se e ficar mal-humorado se visse um acontecimento um pouco importante ser atribuído a uma causa simples e natural. Há nisso um pouco de loucura, pensou Julien. Esse caráter tem uma relação impressionante com o do imperador Alexandre, tal como me descreveu o príncipe Korasoff. Durante o primeiro ano de sua estada em Paris, o pobre Julien, recém-saído do seminário e deslumbrado com os encantos para ele tão novos desses amáveis jovens, não pudera senão admirá-los. O verdadeiro caráter deles somente agora começava a desenhar-se a seus olhos.
Desempenho aqui um papel indigno, ele pensou, de repente. A questão era deixar sua pequena cadeira de palha de um modo que não fosse muito inábil. Quis inventar, pedia algo de novo a uma imaginação muito ocupada com outras coisas. Era preciso recorrer à memória; a dele, tinha que admitir, era pouco rica em recursos desse gênero. O pobre rapaz tinha ainda pouca prática; assim, ele foi de uma inabilidade perfeita e notada por todos quando se levantou para deixar o salão. A infelicidade era demasiado evidente em toda a sua maneira de ser. Há três quartos de hora desempenhava o papel de um importuno subalterno ao qual ninguém se dá o trabalho de esconder o que pensa dele.
Contudo, as observações críticas que acabava de fazer sobre os rivais impediram-no de tomar sua infelicidade como algo muito trágico; para sustentar seu orgulho, ele tinha a lembrança do que se passara na antevéspera. Não importa as vantagens que eles possuam, pensava, ao entrar sozinho no jardim, Mathilde não foi para nenhum deles o que por duas vezes na vida foi para mim.
Sua sabedoria não foi mais longe. Ele não compreendia de modo algum o caráter da pessoa singular que o acaso transformara em dona absoluta de toda a sua felicidade.
Limitou-se, no dia seguinte, a matar de cansaço a si e ao cavalo. Não tentou mais aproximar-se, à noite, do canapé azul, ao qual Mathilde era fiel. Notou que o conde Norbert não se dignava sequer olhá-lo quando o encontrava na casa. Sendo naturalmente tão polido, pensou, ele deve impor-se uma estranha violência.
Para Julien, o sono teria sido a felicidade. A despeito do cansaço físico, lembranças sedutoras começavam a invadir sua imaginação. Ele não soube perceber que, por suas corridas a cavalo nos bosques dos arredores de Paris, não agindo senão sobre si próprio e de maneira nenhuma sobre o coração ou o espírito de Mathilde, deixava ao acaso a disposição de seu destino.
Parecia-lhe que uma coisa traria à sua dor um alívio infinito: falar a Mathilde. Mas o que ousaria dizer a ela?
Era nisso que ele pensava profundamente, uma manhã, às sete horas, quando a viu de repente entrar na biblioteca.
– Sei que deseja falar-me, senhor.
– Santo Deus! Quem lhe disse?
– Eu sei, que importa? Se o senhor não tiver honra, poderá arruinar-me ou ao menos tentar arruinar-me; mas não creio que esse perigo seja real, e ele certamente não me impedirá de ser sincera. Não o amo mais, senhor, minha imaginação louca me enganou...
A esse golpe terrível, perdido de amor e de infelicidade, Julien tentou justificar-se. Nada mais absurdo. Alguém justifica-se por desagradar? Mas a razão não tinha mais nenhum domínio sobre as ações dele. Um instinto cego o impelia a retardar a decisão de sua sorte. Parecia-lhe que, enquanto falasse, nem tudo estava terminado. Mathilde escutava suas palavras, o som delas a irritava, ela não concebia que ele tivesse a audácia de interrompê-la.
Os remorsos da virtude e os do orgulho tornavam-na, naquela manhã, igualmente infeliz. Sentia-se, de certo modo, arrasada pela terrível ideia de ter dado direitos sobre ela a um padrezinho, filho de um camponês. É mais ou menos, dizia a si mesma nos momentos em que exagerava sua infelicidade, como se eu tivesse que censurar-me uma fraqueza por um dos lacaios.
Nos caracteres ousados e orgulhosos há somente um passo da cólera contra si mesma à violência contra os outros; os transportes de fúria são, nesse caso, um intenso prazer.
Num instante, a srta. de La Mole passou a mostrar a Julien as marcas de desprezo mais excessivas. Ela era muito inteligente, e essa inteligência triunfava na arte de torturar o amor-próprio alheio e de infligir-lhe feridas cruéis.
Pela primeira vez na vida, Julien via-se submetido a uma inteligência superior, animada contra ele do ódio mais violento. Longe de pensar em defender-se nesse instante, passou a desprezar a si mesmo. Ao ver-se atingido por palavras de desprezo tão cruéis, e calculadas com tanto espírito para destruir qualquer boa opinião que pudesse ter de si próprio, parecia-lhe que Mathilde tinha razão e que ela não dizia o suficiente.
Quanto a ela, era com um delicioso prazer de orgulho que punia desse modo, a ela e a ele, pela adoração que sentira alguns dias atrás.
Ela não tinha necessidade de inventar e de pensar pela primeira vez as coisas cruéis que lhe dirigia com tanta complacência. Apenas repetia o que há oito dias lhe ditava em seu coração o advogado do partido contrário ao amor.
Cada palavra multiplicava por cem a terrível infelicidade de Julien. Ele quis fugir, a srta. de La Mole reteve-o pelo braço com autoridade.
– Queira observar, disse ele, que está falando muito alto, irão escutá-la na peça vizinha.
– Que importa!, respondeu orgulhosamente a srta. de La Mole, quem ousará dizer-me que me escutam? Quero curar para sempre seu pequeno amor-próprio das ideias que ele pôde formar a meu respeito.
Quando Julien pôde sair da biblioteca, estava tão espantado que sentia menos sua infelicidade. Com que então ela não mais me ama, repetia, falando a si mesmo como para tomar consciência de sua posição. Parece que ela me amou por oito ou dez dias, e eu a amarei a vida inteira.
Será possível? Há poucos dias ela não significava nada, nada para o meu coração!
As satisfações do orgulho inundavam o coração de Mathilde; ela fora capaz de romper para sempre. Triunfar tão completamente de uma inclinação tão poderosa a faria perfeitamente feliz. Assim esse pequeno burguês compreenderá, e de uma vez por todas, que não tem e jamais terá nenhum domínio sobre mim. Estava tão feliz que realmente não sentia mais amor naquele momento.
Depois de uma cena tão cruel, tão humilhante, num indivíduo menos apaixonado que Julien, o amor teria se tornado impossível. Sem afastar-se um só instante do que devia a si mesma, a srta. de La Mole dissera-lhe aquelas coisas desagradáveis de uma forma tão bem calculada que elas podiam parecer uma verdade, mesmo quando examinadas depois com frieza.
A conclusão que Julien tirou, no primeiro momento, de uma cena tão espantosa foi que Mathilde tinha um orgulho infinito. Ele acreditava firmemente que tudo estava acabado para sempre entre os dois; no entanto, no dia seguinte durante o almoço, mostrou-se desajeitado e tímido diante dela. Era um defeito que não lhe podiam ter reprovado até então. Tanto nas pequenas como nas grandes coisas, ele sabia claramente o que devia e queria fazer, e o executava.
Naquele dia, depois do almoço, como a sra. de La Mole lhe pedisse um folheto sedicioso e no entanto muito raro que, de manhã, o pároco lhe trouxera em segredo, Julien, ao pegá-lo sobre um console, deixou cair um vaso de porcelana azul, horrivelmente feio.
A sra. de La Mole levantou-se, dando um grito de pesar, e veio examinar de perto as ruínas de seu querido vaso. Era um antigo vaso japonês, dizia, pertenceu à minha tia-avó, a abadessa de Chelles; era um presente dos holandeses ao duque de Orléans, o regente, que o dera à filha...
Mathilde seguira o movimento da mãe, encantada de ver quebrado esse vaso azul que julgava horroroso. Julien estava em silêncio e não muito perturbado; viu a srta. de La Mole muito perto de si.
– Esse vaso, ele disse a ela, está destruído para sempre, como o está um sentimento que foi outrora senhor do meu coração; peço-lhe aceitar minhas desculpas por todas as loucuras que ele me fez fazer; e saiu.
– Na verdade, disse a sra. de La Mole quando ele se retirou, o sr. Sorel parece até estar contente e orgulhoso do que acaba de fazer.
Essa frase caiu em cheio sobre o coração de Mathilde. É verdade, ela pensou, minha mãe adivinhou com exatidão, é esse o sentimento que o anima. Somente então cessou a alegria da cena que ela lhe fizera na véspera. Pois bem, tudo está acabado, disse a si mesma com uma calma aparente; resta-me um grande exemplo; esse erro foi terrível, humilhante! Ele me ensinará a prudência pelo resto da vida.
Terei dito a verdade?, pensava Julien.
Por que o amor que eu tinha por essa louca me atormenta ainda? Esse amor, longe de extinguir-se como ele esperava, fez progressos rápidos. Ela de fato é louca, ele pensava, mas é menos adorável? É possível ser mais encantadora? Tudo o que a civilização mais elegante pode oferecer de prazeres vivos não estava reunido, como que à porfia, na srta. de La Mole? Essas lembranças de felicidade passada apoderavam-se de Julien e destruíam rapidamente todo o trabalho de sua razão.
A razão luta em vão contra lembranças desse tipo; seus esforços severos não fazem senão aumentar o encanto delas.
Vinte e quatro horas depois de ter quebrado o velho vaso japonês, Julien era decididamente um dos homens mais infelizes.
continua página 257...
__________________________________________
ADVERTÊNCIA DO EDITOR
Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.
_______________________
Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.
_______________________
Leia também:
O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: O Vaso Japonês (XX)
Nenhum comentário:
Postar um comentário