terça-feira, 19 de julho de 2022

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo XVII

UMA VELHA ESPADA


I now mean to be serious; – it is time,
Since laughter now-a-days is deem’d too serious
A jest at vice by virtue’s called a crime.

DON JUAN, C. XIII.



ELA NÃO APARECEU NO ALMOÇO. À noite, veio por um instante ao salão, mas não olhou para Julien. Essa conduta pareceu-lhe estranha; mas, ele pensou, não conheço seus hábitos, ela me dará uma boa razão para tudo isso. Todavia, agitado por uma extrema curiosidade, ele examinava a fisionomia de Mathilde; não pôde dissimular-se que seu aspecto era seco e maldoso. Evidentemente não era a mesma mulher que, na noite precedente, tinha ou fingia transportes de felicidade demasiado excessivos para serem verdadeiros. 
No dia seguinte, e no outro, a mesma frieza da parte dela; ela não o olhava, não se apercebia de sua existência. Julien, devorado pela mais viva inquietação, estava a mil léguas dos sentimentos de triunfo que o haviam animado no primeiro dia. Seria por acaso, pensou, um retorno à virtude? Mas essa era uma palavra muito burguesa para a altaneira Mathilde. 
Nas situações ordinárias da vida, ela praticamente não crê na religião, pensava Julien, apenas a considera útil aos interesses de sua casta. 
Mas, por simples delicadeza, não pode ela reprovar-se vivamente a falta que cometeu? Julien acreditava ser seu primeiro amante. 
Mas é preciso admitir, ele pensava noutros instantes, que não há nada de ingênuo, de simples, de terno em toda a sua maneira de ser; jamais a vi tão altaneira. Ela me desprezaria? Seria digno dela reprovar-se o que fez por mim, unicamente por causa da humildade de meu nascimento. 
Enquanto Julien, repleto de ideias preconcebidas tiradas dos livros e das lembranças de Verrières, perseguia a quimera de uma amante terna e que não pensasse mais em sua própria existência a partir do momento em que fez a felicidade do amante, a vaidade de Mathilde enfurecia-se contra ele. 
Como já fazia dois meses que não se entediava, ela não receou mais o tédio; assim, sem que pudesse ter a menor suspeita disso, Julien perdera sua maior vantagem. 
Arranjei-me um mestre!, pensava a srta. de La Mole, às voltas com o mais negro desgosto. Ele já se sente todo honrado; mas, se faço calar sua vaidade, irá vingar-se fazendo conhecer a natureza de nossas relações. Mathilde nunca tivera amante e, nessa circunstância da vida que dá alguma ilusões ternas mesmo às almas mais secas, suas reflexões eram as mais amargas. 
Ele tem sobre mim um domínio imenso, pois reina pelo terror e pode punir-me com um castigo atroz se eu o repelir. Essa simples ideia era suficiente para levar a srta. de La Mole a execrá-lo. A coragem era a primeira qualidade de seu caráter. Nada era mais capaz de agitá-la e de curá-la de um tédio sempre a renascer, quanto a ideia de que jogava no cara ou coroa sua existência inteira. 
No terceiro dia, como a srta. de La Mole se obstinasse em não olhar para ele, Julien seguiu-a depois do almoço até a sala de bilhar, evidentemente contra a vontade dela. 

– Então acredita, senhor, ter adquirido direitos muito poderosos sobre mim, disse ela com uma cólera mal contida, uma vez que, contra minha vontade claramente expressa, pretende me falar?... Sabe que ninguém no mundo jamais ousou tanto? 

Nada tão curioso como o diálogo desses dois amantes; sem suspeitarem, estavam animados um contra o outro do sentimento do mais vivo ódio. Como nenhum dos dois era tolerante, e como ambos tinham hábitos de boas maneiras, logo resolveram declarar-se que rompiam relações para sempre. 

– Juro-lhe um segredo eterno, disse Julien, diria até que nunca mais lhe dirigirei a palavra, se sua reputação não pudesse sofrer com essa mudança muito visível. Saudou-a com respeito e partiu. 

Ele cumpria sem muita dificuldade o que acreditava ser um dever; estava longe de julgar-se apaixonado pela srta. de La Mole. Certamente ele não a amava três dias antes, quando se escondera no grande armário de mogno. Mas tudo mudou rapidamente em sua alma a partir do momento em que viu suas relações rompidas para sempre. 
Sua memória cruel pôs-se a reconstituir-lhe as menores circunstâncias daquela noite que, em realidade, o deixara tão frio. 
Na noite mesma que seguiu a declaração de rompimento eterno, Julien quase enlouqueceu ao ser obrigado a confessar-se que amava a srta. de La Mole. 
Terríveis combates seguiram-se a essa descoberta, todos os seus sentimentos estavam abalados. 
Dois dias depois, em vez de mostrar-se orgulhoso para com o sr. de Croisenois, teria sido capaz de abraçá-lo, em lágrimas. 
O hábito da desgraça deu-lhe um vislumbre de bom senso; decidiu partir para o Languedoc, fez sua mala e foi até a Posta. 
Sentiu-se desfalecer quando, ao chegar à sede da mala postal, informaram-lhe que, por um singular acaso, havia um lugar na carruagem do dia seguinte para Toulouse. Fez a reserva e voltou à mansão de La Mole para anunciar sua partida ao marquês. 
O sr. de La Mole havia saído. Mais morto que vivo, Julien foi esperá-lo na biblioteca. Qual não foi sua surpresa ao encontrar ali a srta. de La Mole! 
Ao vê-lo, ela assumiu um ar de maldade que ele não pôde deixar de perceber. 
Tomado por sua infelicidade, extraviado pela surpresa, Julien teve a fraqueza de dizer a ela, com o tom mais terno que lhe vinha da alma: Então, não me ama mais? 

– Tenho horror de ter-me entregue ao primeiro que apareceu, disse Mathilde, chorando de raiva contra si mesma. 

Ao primeiro que apareceu!, exclamou Julien, e lançou-se em direção a uma velha espada da Idade Média que era conservada na biblioteca como uma curiosidade.
 
Sua dor, que ele acreditava extrema no momento em que dirigiu a palavra à srta de La Mole, foi centuplicada pelas lágrimas de vergonha que a via derramar. Se pudesse matá-la, teria sido o mais feliz dos homens. 
No momento em que tirava a espada, com alguma dificuldade, da bainha antiga, Mathilde, feliz ante uma sensação tão nova, avançou altivamente em direção a ele; suas lágrimas haviam estancado. 
A ideia do marquês de La Mole, seu benfeitor, apresentou-se vivamente a Julien. Eu mataria a filha dele!, disse a si mesmo. Que horror! Fez um movimento para jogar de lado a espada. Certamente, pensou, ela vai rir ao ver esse movimento de melodrama: esse pensamento permitiu-lhe recuperar todo o seu sangue-frio. Examinou a lâmina da espada com curiosidade, como se nela buscasse alguma mancha de ferrugem, depois tornou a embainhá-la e com a maior tranquilidade a recolocou no prego de bronze dourado que a sustentava. 
Todo esse movimento, muito lento no final, durou bem um minuto; a srta. de La Mole fitava-o espantada. Então estive a ponto de ser morta por meu amante!, ela pensava. 
Essa ideia transportava-a aos mais belos tempos do século de Carlos IX e Henrique III. 
Ela estava imóvel diante de Julien que acabava de recolocar a espada, fitava-o com olhos em que não havia mais ódio. É preciso convir que estava muito sedutora nesse momento, certamente mulher alguma assemelhava-se menos a uma boneca parisiense (essa palavra era a grande objeção de Julien contra as mulheres desse lugar). 
Vou recair numa fraqueza por ele, pensou Mathilde; e desta vez mesmo é que ele se julgará meu mestre e senhor, depois de uma recaída, e bem no momento em que acabo de lhe falar com firmeza. Ela fugiu. 
Meu Deus! Como é bela!, disse Julien ao vê-la correr: eis aí uma criatura que se precipitava em meus braços com tanto furor, não faz oito dias... E aqueles instantes não retornarão jamais! E a culpa é minha! No momento de uma ação tão extraordinária, tão interessante para mim, não fui sensível!... Tenho que admitir que nasci com um caráter muito vulgar e muito infeliz. 
O marquês chegou. Julien apressou-se em anunciar-lhe sua partida. 

– Para onde?, disse o sr. de La Mole. 

– Para o Languedoc. 

– Não, por favor, você está reservado a mais altos destinos, se partir será para o Norte... inclusive, em termos militares, proíbo sua saída da mansão. Comprometa-se a não se ausentar por mais de duas ou três horas, posso ter necessidade de sua presença de um momento para outro. 
Julien cumprimentou e retirou-se sem dizer nada, deixando o marquês muito espantado. Não estava em condições de falar e encerrou-se em seu quarto. Lá, pôde exagerar com liberdade toda a atrocidade de sua sorte. 
Assim não posso sequer afastar-me!, pensava. Deus sabe quantos dias o marquês irá reter-me em Paris. Ó Deus! que será de mim? E nem um amigo que eu possa consultar! O abade Pirard não me deixaria terminar a primeira frase, o conde Altamira me proporia filiar-me a alguma conspiração! 
E no entanto enlouqueço, sinto que enlouqueço! 
Quem poderá guiar-me? O que será de mim?


continua página 243...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)

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