Graciliano Ramos
Volume I
Editora Record
PRIMEIRA PARTE
VIAGENS
17
CHAMARAM-NOS, ingressamos na confusão dos corredores, subimos, descemos, viramos esquinas, chegamos ao portão do quartel, juntamo-nos aos nossos vizinhos da prisão dos sargentos. Apenas reconheci dois: Sebastião Hora, bastante apreensivo, e Manuel Leal, empregado no balcão de d. Maroca Prado no meu tempo de colégio, depois caixeiro-viajante, um rapaz moreno, de olhos vivos, arrasado em poucos anos. Essa criatura tivera negócio comigo em época de prosperidade; sumira-se e, ao cabo de longa ausência, reaparecia, com rugas e cabelos brancos, em medonha decadência, transportando a bagagem pesada. Examinei o resto do grupo, notei a falta do advogado Nunes Leite. Bem, certamente haviam percebido que a dureza do regime carcerária não convinha a natureza tão sensível. Chamou-me a atenção um negro coberto de calombos, que se espalhavam nas mãos, no rosto luzidio, davam ao sujeito a aparência de um pé de jabuticaba As outras figuras passaram despercebidas: com certeza me achava preocupado, incapaz de observar direito.
A saída fizeram-nos entrar num caminhão, onde se arrumavam
caixotes, as nossas maletas, numerosos troços miúdos. Os oficiais, os
automóveis de luxo, as conversas amáveis tinham-se evaporado
Dávamos um salto para baixo, sem dúvida, mas por muito que sondasse
o terreno, não me era possível adivinhar onde iríamos cair. A nossa
escolta se compunha de tipos silenciosos, mal-encarados. Não vi as
divisas do comandante; devia ser cabo: naquela mistura de homens,
trouxas e caixões, aos solavancos, espremidos como galinhas em jacás,
não seríamos confiados a sargento. Alguns presos bazofiavam, riam,
procurando ambientar-se; os risos e as bazófias esmoreciam, sem
ressonância, dominados pelo barulho do motor. as pilhérias tinham
estridências lúgubres.
Partimos. Ignoro se chegamos logo ao destino, se nos demoramos a
rolar nas ruas estreitas, que não nos despertavam curiosidade.
Certamente ninguém se lembrava de observar o trajeto e consultar
relógio. Tínhamos vivido num quartel do exército, separados: talvez nos
houvessem oferecido tratamento diverso para semear discórdia.
Reuniam-nos agora, transferiam-nos à polícia – e os ressentimentos iam
explodir. Devia ser essa a razão do afastamento, embora só a tenhamos
percebido muito depois. Naquela hora, sacolejados no carro de molas
duras, entre fuzis ameaçadores e carrancas, éramos um pequeno rebanho
apático. A vontade e o entendimento murchavam; ditos espaçados,
vestígios da ruidosa despreocupação do começo. soavam falso como
rachar de vidros.
Alcançamos o porto, descemos, segurando maletas e pacotes,
alinhamo-nos e, entre filas de guardas, invadimos um navio atracado,
percorremos o convés, chegamos ao escotilhão da popa, mergulhamos
numa escadinha. Tinha-me atarantado e era o último da fila. Ao pisar o
primeiro degrau, senti um objeto roçar-me as costas: voltei-me, dei de
cara com um negro fornido que me dirigia uma pistola para-bellum.
Busquei evitar o contato, desviei-me; o tipo avançou a arma, encostou-me ao peito o cano longo, o dedo no gatilho. Certamente não dispararia à
toa: a exposição besta de força tinha por fim causar medo, radicalmente não diferia das ameaças do general.
Ridículo e vergonhoso. Um instante duvidei dos meus olhos, julguei-me
vítima de alucinação. O ferro tocava-me as costelas, impelia-me, os
bugalhos vermelhos do miserável endureciam-se, estúpidos. Em casos
semelhantes a surpresa nem nos deixa conhecer o perigo:
experimentamos raiva fria e impotente, desejamos fugir à humilhação e
nenhuma saída nos aparece. Temos de morder os beiços e baixar a
cabeça, engolir a afronta. Nunca nos vimos assim entalados, ainda na
véspera estávamos longe de supor que tal fato ocorresse. O absurdo se
realiza e não vamos discuti-lo. Irrisório, na verdade. No atordoamento,
no assombro imenso, temos a impressão de que não nos toca a roupa um
tubo de aço, mas um pouco de lama. Exatamente: lama. Aquilo decorreu
num ápice: o tempo necessário para voltar-me, enxergar o instrumento, a
cara tisnada e obtusa, procurar afugentar a intimidação, verificar a
inutilidade do gesto, virar-me de novo. Alguns segundos.
Avancei, um bolo na garganta, o coração a estalar, venci a pequena
distância que me separava dos companheiros. Chegamos ao fim da
escada, paramos à entrada de um porão, mas durante minutos não compreendi
onde me achava. Espaço vago, de limites imprecisos, envolto em sombra
leitosa. Lá fora anoitecera; ali duvidaríamos se era dia ou noite. Havia
luzes toldadas por espesso nevoeiro: uma escuridão branca. Detive-me,
piscando os olhos, tentando habituar a vista. Erguendo a cabeça, via-me
no fundo de um poço, enxergava estrelas altas, rostos curiosos, um plano
inclinado, próximo, onde se aglomeravam polícias e um negro
continuava a dirigir-me a pistola. Era como se fôssemos gado e nos
empurrassem para dentro de um banheiro carrapaticida. Resvaláramos
até ali, não podíamos recuar, obrigavam-nos ao mergulho. Simples
rebanho, apenas, rebanho gafento, na opinião dos nossos proprietários,
necessitando creolina. Os vaqueiros, armados e fardados, se
impacientavam.
Desviando-me deles, tentei sondar a bruma cheia de trevas
luminosas. Ideia absurda, que ainda hoje persiste e me parece razoável:
trevas luminosas. Havia muitas lâmpadas penduradas no teto baixo, ali
ao alcance da mão, aparentemente, mas eram como luas de inverno,
boiando na grossa neblina.
Arrisquei alguns passos, maquinalmente, parei meio sufocado por
um cheiro acre, forte, desagradável, começando a perceber em redor um
indeciso fervilhar. Antes que isto se precisasse, confuso burburinho
anunciou a multidão que ali se achava. Agora já não éramos pequeno
rebanho a escorregar num declive: constituíamos boiada numerosa; à
ideia do banheiro carrapaticida sucedeu a de um vasto curral. Certamente a perturbação visual durou um instante, mas ali de pé, sobraçando
a valise, a abanar-me com o chapéu de palha, tentando reduzir o calor,
afastar o cheiro horrível, mistura de suor e amoníaco, um pensamento me
assaltou, fez-me perder a noção do tempo. Que homens eram aqueles que
se arrumavam encaixados, tábuas em cima, embaixo, à frente, à
retaguarda, à esquerda, à direita? Imaginei-os criminosos e vagabundos.
Os contornos das pessoas e das coisas lentamente se precisavam.
Aglomeração incalculável, aglomeração desordeira Uma figura amável
vista de relance não abalou esta certeza O homem louro, tranquilo,
gordinho, se levantou da rede, acolhedor, fumando cachimbo, disse-nos
palavras que não entendi. Impossível fixar a atenção em qualquer ponto, a memória se embotava, observações imperfeitas se
atabalhoavam desconexas, deixando largos espaços obscuros. Outras
pessoas me falaram, inutilmente. O cachimbo do homem louro trouxe-me ao espírito uma relação – e contentou-me verificar que não me havia
tornado completamente imbecil. A fumaça dos cachimbos e dos cigarros
enchia o ar, produzia a garoa em que os focos luminosos nadavam. De
repente ouvi gritos. Um rapaz veio lá do fundo, acercou-se dos policiais,
gesticulando, esgoelando-se:
– Adeus, Valadares, responderam algumas vozes.
O rapaz subiu a escada e sumiu-se. No calor horrível, senti um
arrepio. Apesar da firmeza espetacular daquela despedida fúnebre,
continuei a julgar que me haviam reunido a criminosos e instintivamente
me achegava ao grupo escasso de alagoanos. Só havia ali duas pessoas
conhecidas, as outras se diluíam no fumaceiro, mas o transporte no caminhão e o arremesso à furna medonha ligavam-nos em
destino comum. Vivêramos uma quinzena próximos e impossibilitados
de comunicar; até a saudação à passagem deles no alpendre ficava sem
resposta. Impossível identificá-los. Talvez me houvessem deixado no
espírito sinais fisionômicos. Não me capacitava disto, e apenas as
jabuticabas esquisitas, as excrescências vistas uma hora antes tornavam
reconhecível a cara inexpressiva do negro. Avançamos à toa, evitando
corpos úmidos. No zunzum de feira nenhuma frase perceptível; os meus
pés machucavam coisas moles, davam-me a impressão de pisar em
lesmas. O terrível fedor sufocava-me, a quentura de fornalha punha-me
brasas na pele, e a certeza de encontrar-me cercado de imundícies
levava-me a proteger a valise, resguardá-la debaixo do braço. Aguentar-me-ia em semelhante lugar? Conseguiria resistir?
– Já se viu numa situação como esta? – Nunca, respondeu Mata
furioso.
Sempre manifestara despreocupação, afirmara que estávamos bem
e era tolice esperar coisa melhor, referira-se com minúcias a prisões
anteriores: nenhuma lhe havia deixado mossa. Vira-se em dificuldades
sérias, nada ignorava; nos momentos de aperto sabia tirar vantagem de
insignificâncias, mudava os obstáculos em . utilidades. Consultando-o,
desejava certificar-me de que não havia motivo para alarme e o porão
ignóbil estava previsto. A negativa indignada acabava de aniquilar-me.
Evidentemente eu não suportaria a temperatura de caldeira; sentia-me
num banho a vapor, o colarinho empapava-se, a camisa aderia ao peito e
às costelas, as meias afundavam num charco ardente, do rosto caíam
gotas sem descontinuar. Abanava-me com o chapéu e arfava. Não era a
degradação moral que me oprimia. Tinha capitão Mata alcançado bem a
minha pergunta? A cólera dele desalentava-me a nova interrogação. Nem
me sentia humilhado, no atordoamento; não buscava saber se me
restariam forças na alma dentro da realidade inconcebível. A alma fugia-me, na verdade, e inquietava-me adivinhar que a resistência física ia
abandonar-me também, de um momento para outro: jogar-me-ia sobre as
tábuas sujas, acabar-me-ia aos poucos, respirando amoníaco, envolto em
pestilências. Algumas horas depois atirar-me-iam na água o cadáver. Inquirindo o oficial, pretendia insinuar-me coragem, supor,
baseando-me na experiência alheia, que a vida ali era possível.
Experimentei com a resposta verdadeira decepção, realmente insensata.
Pois não via muitos indivíduos, talvez centenas de indivíduos, no curral
flutuante? Escapou-me a observação e lá fui ziguezagueando num
labirinto de redes, altas, baixas, do solo ao teto, a emaranhar-se, a
balançar com o movimento do navio.
Alguém cochichou-me, atraiu-me a um canto; ouvi o nome de
Miguel Bezerra, um moço de casquete, moreno e magro, que se pôs a
falar com abundância. No começo não entendi o que ele dizia, recordo
somente uma declaração repetida:
– Não somos comunistas.
Bem, eu os supunha vagabundos; surgiam-me dúvidas agora.
– Donde vêm os senhores?
Tinham embarcado no Rio Grande do Norte. – Mas não somos comunistas.
– Perfeitamente.
Porque a insistência? Entrei a conversar – e logo duas surpresas me
assaltaram Miguel parecia alegre, as minhas palavras soavam-me aos
ouvidos como se fossem pronuncia das por outra pessoa. Doidice rir em
semelhante inferno. Ou então me sensibilizara em demasia, os horrores
que estivera a desenvolver tinham existência fictícia. Possivelmente o
meu enjoo e a raiva do capitão Mata provinham da mudança repentina:
se nos houvessem feito percorrer escalas, não nos abalaríamos tanto.
Lembro-me de ter afirmado isto mentalmente. De qualquer modo nos
arranjaríamos, chegaríamos a um porto. Assim falava no interior e dizia
coisas diferentes,: pausadas, maquinais; pareciam gravadas num disco de
vitrola. Deviam ter significação, pois o diálogo se prolongou, mas não
me seria possível reproduzi-lo. A declaração inicial voltava com
frequência:
– Não somos comunistas.
Porque inocentar-se? A certeza de que estavam ali os revoltosos de
Natal acirrou-me a curiosidade, embora não me arriscasse a pedir
informações ao desconhecido cauteloso.
Duas mulheres achegaram-se, uma branca, nova, bonita, uma
pequena cafuza de olhos espertos. Fiquei sabendo que a primeira se
chamava Leonila e era casada com Epifânio Guilhermino.
– Esta é a nossa amiga Maria Joana. Se o senhor tiver negócio com
ela, pode procurá-la no camarote lá do fim.
Maria Joana desdenhou a
pilhéria, sem se escandalizar, mostrou os dentes alvos, contraiu num
sorriso infantil as pálpebras oblíquas E afastaram-se em silencio. Em
frente a uns beliches toscos haviam estendido cobertas, e ali as infelizes
criaturas se torravam, no mormaço invariável. Coitadas. Envergonhei-me
do desânimo que me invadira. Notaria alguém vestígios dele?
Uma dualidade, talvez efeito da cadeia, principiava a assustar-me:
a voz e os gestos a divergir de sentimentos e ideias cá dentro, uma
confusão, borbulhar de água a ferver Por fora, um sossego involuntário,
frieza, quase indiferença. A fala estranha me saía da garganta seca.
continua página 80....
_________________
_________________
Leia também:
Memórias do Cárcere - Viagens 17
Memórias do Cárcere - Viagens 18
_________________
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário