terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Memórias do Cárcere - Viagens 15

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

15


       CERTO dia, capitão Lobo me comunicou: – O senhor viaja amanhã.

– Para onde?

   Hesitou um instante e respondeu: – Não sei.
   Depois, corrigiu:

– Não posso responder.

– Diga ao menos se é para o norte ou para o sul. Recusou-me a informação e logo sugeriu:  

– Veja a lista dos navios e o destino, homem. Abra um jornal.

– Muito obrigado. Enfim para qualquer parte vou bem. O que desejo é ir-me embora.

   O oficial encarou-me ressentido:  

– Não devia falar desse jeito. O senhor aqui. tem amigos. – Desculpe, capitão. Ofendi-o sem querer. Mas esse plural vem fora de propósito. 

   Ao cabo de alguns minutos, a conversa findou com uma proposta que me assombrou, ainda me enche de espanto. Não a mencionaria se, anos atrás, num encontro inesperado, o homem estranho, já coronel grisalho, não a confirmasse, vago e indiferente, enquanto me censurava por me haverem fugido da memória as roupas de cama e as toalhas Sem esse depoimento, não me abalançaria a narrar o caso singular. Difícil acreditarem nele, e talvez eu próprio chegasse a convencer-me de que tinha sido vítima de uma ilusão. Tento reproduzi-lo, ainda receoso, perguntando a mim mesmo se se deu aquela inverossimilhança. Cumpridas algumas formalidades, capitão Lobo despediu-se. Ao sair, estacou junto à mesa:

– Ia-me esquecendo: quero fazer-lhe um pedido. Estranhei: não me achava em condições de ser-lhe útil em coisa nenhuma. Hesitou um instante e jogou-me de chofre este discurso:

– Bem. O tempo é curto para explicações e cerimônias. Trata-se disto: eu pus aí num banco algumas economias que não me fazem falta por enquanto. Ignoro as suas posses, mas sei que foi demitido inesperadamente. Caso as suas condições não sejam boas, eu lhe mostro daqui a pouco uma caderneta, o senhor põe num cheque a importância que necessita, eu assino e à tarde venho trazer-lhe o dinheiro. Convém? 

   Pedido realmente curioso: nunca me passara pela cabeça que alguém pudesse fazê-lo. Perturbei-me em excesso e no primeiro momento nem pude responder: tive a impressão de que me estavam a mistificar, julguei-me objeto de uma pilhéria cruel. Pouco a pouco me desengasguei, consegui enfim murmurar uma recusa chocha e um agradecimento rápido e sumido: 

– Não preciso. Estou bem. Muito obrigado. 

   Ainda não me convencia de que o rapaz falara sério, a mesquinha ideia do logro continuava a perseguir-me.

– Não lhe estou oferecendo dinheiro, bradou capitão Lobo, adivinhando-me talvez o sentimento infeliz. Não se oferece dinheiro a homem. Estou facilitando-lhe um empréstimo. E não é lá grande coisa, as minhas reservas são pequenas. Se aceita, o senhor mesmo determina, vê quanto lhe posso emprestar. Naturalmente não há prazo: paga-me lá fora quando se libertar. Sai logo, isso não há de ser nada. Também já estive preso e vivi no exílio: viajei num porão de São Paulo à Europa. 

   Foi pouco mais ou menos o que ele me disse. Tornei a agradecer e a recusar, as orelhas em fogo, na tremenda confusão que me causava a enorme surpresa. Teria realmente ouvido bem aquelas palavras? Apesar de se haverem prolongado longos instantes, entre pausas e gestos enérgicos, não me decidia a admiti-las; de fato eram claras, irrecusáveis, mas nos últimos dias ia-me habituando a perceber coisas aparentemente destituídas de senso Achava-me atordoado, como se tivesse recebido um murro na cabeça, e só sabia repetir as mesmas frases curtas e insossas: 

– Estou bem, não falta nada. Ora essa! Muito obrigado. Não é necessário.

   Horrível mal-estar, o desejo inútil de arrancar do interior qualquer coisa, evitar ao homem a deplorável impressão que naturalmente lhe causava. Pedia a Deus que ele se retirasse logo, pusesse termo à situação embaraçosa. Deixar-lhe-ia recordação infeliz, sem dúvida. Grosseiro, descortês. Nem me ocorria um lugar-comum besta, recurso entorpecedor. Frequentemente me surgiam na alma sulcos negros, hiatos, e as ideias se embaralhavam, a fala esmorecia, trôpega; havia agora, porém, espessa névoa e, através dela, muito longe, uma figura confusa a apertar-me rijo a mão, a desaparecer no alpendre, com certeza julgando-me estúpido e ingrato. E achei-me só: a presença do meu companheiro não diminuiu a solidão; algum comentário dele acaso feito sobre aquela derradeira visita passou despercebido. Das afirmações do oficial uma, exposta dias consecutivos, verrumava-me o espírito, fora do assunto principal: 

– Não há de ser nada.

   Isto se repetira muitas vezes, tornara-se um refrão, intercalava-se. entre dois períodos afastados, e, habituando-me às palestras, era-me possível adivinhar, pelo movimento da piteira, interrupção da marcha no soalho, simples mover de beiças, que um silêncio iria quebrar-se deste jeito:

– Não há de ser nada.

   Pouco me importava realmente o futuro, mas coragem, fazia-me sentir uma firmeza absurda. Mais absurda era aquela oferta largada ali de chofre, da mesa para a janela, da janela para a mesa, sem aviso, sem preparação. Considerei-a devagar, tentando recompor-me. Bem. Surgira como fato ordinário, entre gestos vulgares, no mesmo tom de voz com que, ainda na véspera, se emitiam conceitos mais ou menos agrestes sobre a questão social. Aparentemente não diferia dos sucessos normais: um ligeiro parêntese, logo encerrado, e regressamos à vida comum. Vinte e quatro horas depois me enviariam para lugar distante, e o meu interlocutor pensaria no regulamento, no ofício, na ordem do dia. Esquecer-nos-íamos, era como se nunca nos houvéssemos visto. Cada qual para o seu lado. tratando de negócios diferentes, alimentando esperanças diferentes. Uma proposição insensata encaixada em diálogo curto Apenas. Conseguiria, porém, desembaraçar-me dela, misturá-la às amofinações da cadeia, aos toques de corneta e à vigília da sentinela, recuperar, depois de solto, os pequenos tédios e as pequenas alegrias, completamente livre? Não. Decerto não me libertaria de todo. Já ali começava a sentir uma a alegre confiança, a amável insinuação de nova prisão, mais séria que a outra, a confundir-me terrivelmente as ideias. Não imaginara poder testemunhar semelhante ação. Pessimismo? De forma nenhuma. Não supunha os homens bons nem maus: julgava-os sofríveis, pouco mais ou menos razoáveis, naturalmente escravos dos seus interesses. Sem dúvida: uma razão miúda, variável com as circunstâncias e o egoísmo natural: dormir, comer, amar, reproduzir-se; um pouco acima disto, avaliar quadros e livros, inspirar respeito, mandar.
   Ora, a minha observação daquela manhã era desarrazoada e prejudicial ao seu agente. Isto me causava dolorosa surpresa: chocava exames anteriores, contradizia opiniões firmes – e experimentei uma sensação molesta, devo ter involuntariamente malsinado a criatura que me abalava. Era possível então alguém proceder de tal maneira? Porquê? Não conseguia orientar-me, agarrar um móvel qualquer, justificar o disparate. Sem dúvida um homem que resolvia prejudicar-se em benefício de um estranho não estava no seu juízo perfeito. Razoável, normal, não me comportaria nunca de tal modo. Não me comportaria? Nem sequer imaginava que alguém pudesse ter aquele procedimento. E chocava-me em demasia ver a insensatez realizada por um cavalheiro grave afeito à regra, de aspereza firme e autoritária. Realmente nem me dera a impressão de oferecer: parecera determinar, comandar: a proposta louca tinha feição de ordem. Resguardara-me, é claro. Estava certo de que me seria impossível readaptar-me lá fora, achar trabalho, eximir-me da terrível dívida. Não me sobrecarregaria com tal peso, ainda que me privasse de cigarros. De forma nenhuma, porém, me considerava livre: uma ideia nova me verrumava, brigava com outras ideias, e isto era intolerável. A quanto subiria o empréstimo? Pouco importava saber. Pequeno ou grande, consumado ou não, abalava-me noções que pareciam seguras. Porque se tinha dado aquilo? Se eu vestisse farda, pensasse em conformidade com o regulamento, andasse olhando vinte passos em frente, vertical, na cadência – um, dois, um, dois, – o caso teria explicação, duvidosa, mas enfim poderia ter explicação. As conveniências de um grupo social conduzem às vezes um indivíduo a sacrifícios. Eu não. vestia farda, esquecera a exígua disciplina formal e desatenta adquirida em alguns meses, varrera da memória alguns conceitos mal entrevistos, já não saberia desmontar as peças de um fuzil, ensurdecera ao mais simples toque de corneta e, enquanto o oficial rigoroso, de vinco na testa e olho fixo, media com pernadas iguais metade da sala, arriava-me bambo junto à mesa, firmava-me ora numa perna, ora noutra, o espinhaço curvo.
   Capitão Lobo usava uma língua diferente da minha – e enquanto repisava o discurso, martelando a expressão, limitava-me a atiçar o monólogo com alguma frase desfavorável, sorrir, contrariá-lo com movimentos de cabeça. Não me ocorrera apoiá-lo. Aceitava-lhe um reparo e negava a conclusão. Natural que ele me odiasse. Estávamos em polos opostos, era como se pertencêssemos a espécies diversas. Espécies diversas? Isto não é uma razão. Gostamos de um gato, de um cachorro, de um papagaio, mas não suportaríamos esses bichos se eles pensassem de maneira diferente da nossa. Sei bem que sou ilógico, pois o pensamento é consequência; a consequência tornou-se causa, leva-me a proceder desta ou daquela maneira, desejar mortandades. Se o capitalista fosse um bruto, eu o toleraria. Aflige-me é perceber nele uma inteligência, uma inteligência safada que aluga outras inteligências canalhas. Esforço-me por alinhavar esta prosa lenta, sairá daí um lucro, embora escasso – e este lucro fortalecerá pessoas que tentam oprimir-me. É o que me atormenta. Não é o fato de ser oprimido: é saber que a opressão se erigiu em sistema. O general manifestara desgosto por não poder fuzilar-me: revelara fraqueza. Se ele embirrasse comigo e quisesse matar-me, comportar-se-ia animalmente, honestamente. Não embirrara, deixara-se levar por informações, obedecera às conveniências da classe detestada. Tinha uma consciência, e isto nos incompatibilizava. Era inegável, porém, que ele procedia consequentemente e não devia espantar-me. Numa explosão de franqueza, expusera um intuito irrealizável certamente escondido em numerosos espíritos.
   Não acharíamos em capitão Lobo semelhante candura. Pessoa educada, embora vivendo a aspereza da caserna, abafaria propósitos violentos: queria talvez ver-me fuzilado sem espalhafato. Improvável achar disposições diversas num militar, esteio da ordem. Generais e capitães com certeza julgariam indispensáveis a rápida sentença obscura, o pelotão fúnebre, um corpo a cair junto a um muro. Iniquidade? Não se trata disso. O exemplo é necessário, a prisão serve de prova, pelo menos é indício forte, e a opinião pública se contenta com as aparências. Infelizmente não havia a pena de morte – eo general se lastimava por não conseguir usá-la a torto e a direito. Aquela derradeira entrevista me desconcertava. Contentar-me-ia se percebesse no capitão Lobo indiferença. As vezes ela nos chega como um favor. Se um indivíduo está em condições de nos causar dano e passa distraído, finge não nos enxergar, revela boa índole e agradecemos a desatenção. Esforçamo-nos por tornar-nos imperceptíveis: só assim temos probabilidade de evitar perigos. Não me havia esquivado. Ouvira os solilóquios do capitão e discordara; censuras imprecisas tinham ficado sem resposta. Como não se formulava acusação regular, era impossível defender-me; pusilanimidade inútil viver a declarar-me vítima; em consequência encorpavam suspeitas vagas, talvez me responsabilizassem pelos motins do ano anterior.
   Pois no momento de se despedir o homem seco me lançava a proposta alarmante. Não me cansava de examiná-la, revirá-la por todos os lados, sem alcançar entrever nela vestígio de senso comum. Um cidadão aparentemente normal decidia ferir os seus interesses e, coisa mais grave, os interesses da sua classe, envoltos em mantos sagrados. Obrigara-se a defender isso, por meios pacíficos ou com armas. Em tempo ordinário bastavam as paradas, tanques a rolar, discursos patrióticos, exibição de força; se, apesar de tudo, surgiam descontentamentos, alguns sacrifícios se tornavam indispensáveis. O general estava certo. Para isso nós lhe pagávamos. Sem dúvida, arruinando os músculos ou espremendo o cérebro, largávamos a contribuição, dávamos sangue ao Estado, à tropa. E não devíamos esperar procedimento diverso.
   Capitão Lobo, portanto, fugia ao preceito. De certo modo havia no caso uma espécie de deserção. Impossível explicá-la. Se ele condenava as minhas ideias, sem conhecê-las direito, porque me trazia aquele apoio incoerente? Insolência e brutalidade com certeza me atiçariam ódio, mas seriam compreensíveis, e nada pior que nos encontrarmos diante de uma situação inexplicável. Admitimos certo número de princípios, julgamo-los firmes, notamos de repente uma falha neles – e as coisas não se passam como havíamos previsto: passam-se de modo contrário. A exceção nos atrapalha, temos de reformar julgamentos. Qual seria a razão daquilo? Afinal aceitamos as defecções. Conflitos internos, zangas, ressentimentos levam muitas vezes um indivíduo a combater os amigos da véspera. Difícil era conceber que alguém se despojasse voluntariamente, em benefício de um adversário. Essa renúncia da propriedade me entontecia. Metemo-nos em briga política, afrontamos a polícia, berramos nos meetings e, se uma bala nos alcança, arriamos na padiola, entramos no hospital, aos solavancos, possivelmente no cemitério. Está certo. A nossa vida não tem muito valor, às vezes se encrenca e desejamos a morte; faltando-nos coragem para o suicídio, exibimos outra forma de coragem; queremos desaparecer: é uma perda individual. Mas ninguém, de senso perfeito, joga fora os seus bens, pois nisto repousa o organismo social – e o sacrifício constitui prejuízo coletivo. Afinal capitão Lobo devia ser muito mais revolucionário que eu. Tinha-me alargado em conversas no café, dissera cobras e lagartos do fascismo, escrevera algumas histórias. Apenas. Conservara-me na superfície, nunca fizera à ordem ataque sério, realmente era um diletante.
   O oferecimento do oficial tinha sentido mais profundo: revelava talvez que a classe dominante começava a desagregar-se, queria findar. Não me chegavam, porém, tais considerações. Achava-me diante de uma incrível apostasia, não me cansava de admirá-la, arrumava no interior palavras de agradecimento que não tinha sabido expressar. Realmente a desgraça nos ensina muito: sem ela, eu continuaria a julgar a humanidade incapaz de verdadeira nobreza. Eu passara a vida a considerar todos os bichos egoístas e ali me surgia uma sensibilidade curiosa, diferente das outras, pelo menos uma nova aplicação do egoísmo, vista na fábula, mas nunca percebida na realidade. Para descobri-la não era muito aguentar algumas semanas de cadeia. Seriam apenas algumas semanas?
   O tempo corria; a sentinela continuava firme, encostada ao fuzil; agora me comunicavam de supetão uma viagem. De qualquer forma valia a pena a experiência. O diabo é que, se me decidisse a narrar por miúdo a conversa do capitão, tachar-me-iam de fantasista. Ou dar-me-iam crédito indivíduos que andassem no mundo da lua, idiotas Ou românticos.

continua página 69....
_________________

Leia também:

Memórias do Cárcere - Viagens 15
Memórias do Cárcere - Viagens 16
_________________

Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário