Hannah Arendt
Parte III
TOTALITARISMO
Os homens normais não sabem que tudo é possível.
David Rousset
1-
O manuscrito original de As origens do totalitarismo foi terminado no outono de 1949, mais de
quatro anos depois da derrota da Alemanha de Hitler e menos de quatro anos antes da morte de
Stálin. A primeira edição do livro veio à luz em 1951. Os anos em que foi redigido, de 1945 em
diante, pareciam ser o primeiro período de relativa calma após décadas de tumulto, confusão e
horror — desde as revoluções que se seguiram à Primeira Guerra Mundial até o surgimento de
toda sorte de novas tiranias, fascistas e semifascistas, unipartidárias e militares, e, por fim, o
firme estabelecimento de governos totalitários baseados no apoio das massas:[1] na Rússia em
1929, ano do que se costuma chamar de "segunda revolução", e na Alemanha em 1933.
A derrota da Alemanha nazista pôs fim a um capítulo da história. O momento parecia
apropriado para olhar os eventos contemporâneos com a retrospecção do historiador e com o
zelo analítico do cientista político, a primeira oportunidade para tentar narrar e compreender o
que havia acontecido — não ainda sine ira et studio, e sim com desgosto e pesar e, portanto,
com certa tendência à lamentação, mas já sem a cólera muda é sem o horror impotente. Era,
pelo menos, o primeiro momento em que se podia elaborar e articular as perguntas com as quais
a minha geração havia sido obrigada a viver a maior parte da sua vida adulta: O que havia
acontecido? Por que havia acontecido?
Como pôde ter acontecido? Porque, da derrota alemã, que havia deixado para trás um país em
ruínas e uma nação que sentia haver retornado ao "ponto zero" da sua história, haviam emergido
montanhas de papéis virtualmente intactos, uma superabundância de documentação a respeito
de todos os aspectos dos doze anos que durou o Reich milenar de Hitler. As primeiras e ricas
seleções desse embarras de richesses, que até hoje não foram adequadamente divulgadas e
investigadas, começaram a aparecer em decorrência do Julgamento de Nurem-bergue dos
Principais Criminosos de Guerra, em 1946, nos doze volumes de Nazi conspiracy and
aggression.[2]
Contudo, muitos outros documentos e as mais diversas contribuições sobre o regime nazista
haviam chegado às bibliotecas e arquivos quando a segunda edição deste livro apareceu em
1958. O que então aprendi foi muito interessante e, embora não chegasse a exigir mudanças
substanciais na análise nem no argumento da minha tese original, tornava necessárias
numerosas adições e substituições do material citado nas notas e considerável aumento do texto.
Além disso, com um certo número de adendos, levei em consideração alguns dos eventos mais
importantes ocorridos depois da morte de Stálin — como a crise da sucessão e o discurso de
Khrushchev perante o Vigésimo Congresso do Partido — bem como novas informações sobre o
regime de Stálin fornecidas em publicações mais recentes. Fiz, assim, uma revisão da Parte III e
do último capítulo da Parte II, enquanto a Parte I, sobre o antissemitismo, e os primeiros quatro
capítulos da Parte II, sobre o imperialismo, permaneceram inalterados. Ademais, havia certos
conhecimentos de natureza estritamente teórica, intimamente ligados à minha análise dos
elementos do domínio total, de que eu não dispunha quando terminei o manuscrito original. O
último capítulo desta edição, "Ideologia e terror", substituiu as "Conclusões" da primeira edição,
que foram incorporadas a outros capítulos. A segunda edição trazia ainda um "Epílogo", no qual
se discutia a introdução do sistema russo-soviético nos países satélites e a Revolução Húngara
[de 1956]. Superado em muitos detalhes, esse "Epílogo" foi eliminado.
Obviamente, o fim da guerra em 1945 não trouxe o fim do governo totalitário na Rússia. Pelo
contrário, foi seguido pela bolchevização da Europa oriental, ou seja, pela expansão do regime
totalitário, e a paz nada mais era que uma oportunidade de analisar as semelhanças e diferenças
nos métodos e instituições dos dois regimes totalitários. Decisivo nesse sentido não foi o fim da
guerra, mas a morte de Stálin, oito anos depois. Retrospectivamente, parece que essa morte foi
seguida não apenas de uma crise de sucessão e de um temporário "degelo", até que um novo
líder se houvesse afirmado, mas de um autêntico, se bem que sinuoso e equívoco, processo de
destotalitarização. Do ponto de vista dos acontecimentos, portanto, não havia por que atualizar essa parte do meu livro; e, no tocante
ao nosso conhecimento daquele período, nada sofreu mu-, danças suficientemente drásticas para
exigir extensas revisões e adições. Em contraste com a Alemanha, onde Hitler usou a guerra
conscientemente para desenvolver e aperfeiçoar o governo totalitário, o período da guerra na
Rússia foi uma época de suspensão temporária do domínio total. Para fins do meu estudo, os
anos de 1929 a 1941 e de 1945 a 1953 são de interesse fundamental, e, para esses períodos,
nossas fontes desinformações são da mesma natureza e tão escassas como o eram em 1958 ou
mesmo em 1949. Nada aconteceu, nem parece provável que aconteça no futuro, que nos
apresente o mesmo inequívoco fim da história ou as mesmas provas horríveis, claras e
irrefutáveis desse fim, como foi o caso da Alemanha nazista.
A única contribuição nova para o nosso conhecimento — o conteúdo dos Arquivos de Smolensk
(publicados em 1958 por Merle Fainsod) — demonstrou a que ponto a escassez da mais
elementar documentação e estatística prejudicará todos os estudos desse período da história
russa. Porque, embora os arquivos (descobertos no quartel-general do partido em Smolensk
pelos alemães e depois capturados, na Alemanha derrotada, pela força de ocupação norte
americana) contenham cerca de 200 mil páginas de documentos e estejam virtualmente intactos
no tocante ao período de 1917 a 1938, a quantidade de informação que eles claramente deixam
de fornecer é realmente espantosa. Apesar da abundância de material sobre os expurgos de 1929 a 1937, não contêm indicação alguma do número de vítimas nem quaisquer outros dados
estatísticos vitais. Os algarismos, quando surgem, são irremediavelmente contraditórios; cada
uma das organizações fornece dados diferentes, e tudo o que ficamos sabendo com certeza é que
muitos deles foram retidos "na fonte" por ordem do governo.[3] Além disso, os arquivos não
informam das relações entre os vários setores de autoridade, "entre o Partido, os militares e a
NKVD", ou entre o partido e o governo, e silenciam quanto aos canais de comunicação e
comando. Enfim, nada nos ensinam quanto à estrutura organizacional do regime, da qual tanto
sabemos no que tange à Alemanha nazista.[4] Em outras palavras, embora sempre se tenha sabido
que as publicações oficiais soviéticas serviam a fins de propaganda e eram completamente
indignas de confiança, agora parece claro que nunca existiram, em parte alguma, fontes dignas
de fé e material estatístico em que se pudesse confiar.
Mais séria ainda é outra questão: um estudo do totalitarismo pode ignorar o que aconteceu e está
acontecendo na China? Aqui, o nosso conhecimento é ainda menos seguro do que era em
relação à Rússia dos anos 30, em parte porque esse país conseguiu isolar-se muito mais
radicalmente contra os estrangeiros após a vitória da Revolução, e em parte porque ainda não
tivemos o auxílio de desertores dos escalões superiores do Partido Comunista Chinês — o que, aliás, é bem significativo. Durante dezessete anos, as poucas informações claras que possuíamos
indicavam diferenças muito importantes: após o período inicial de sangrentos expurgos, cujas vítimas são
estimadas em cerca de 15 milhões, ou cerca de 3% da população de 1949 (isto é, em termos percentuais,
muito menos que as perdas populacionais devidas à "segunda revolução" de Stálin), não houve
recrudescimento do terror, nem massacres de pessoas inocentes, nem categorias de "inimigos objetivos",
nem julgamentos para fins de propaganda (embora tenha havido muitas confissões e "autocríticas"
públicas). O famoso discurso de Mao em 1957, "Sobre o modo correto de tratar as contradições do povo",
conhecido sob o título "Que mil flores floresçam", certamente não era nenhuma declaração de liberdade,
mas reconhecia as contradições não-antagônicas entre as classes e, o que era mais importante, entre o
povo e o governo comunista. O modo de lidar com os oponentes era a "retificação do pensamento", um
complicado processo de constante moldagem e remoldagem dos espíritos, ao qual aparentemente quase
toda a população estava sujeita. Nunca soubemos muito bem como isso funcionava na vida de cada dia e
quem era isento — isto é, quem procedia à "remoldagem" dos outros —, e não tínhamos a menor idéia
dos resultados da "lavagem cerebral", se era duradoura e se realmente produzia mudanças de
personalidade. Se era isso terror, como certamente era, tratava-se de um terror diferente e, quaisquer que
tenham sido os seus resultados, não dizimou a população. Reconhecia claramente o interesse nacional,
permitiu que o país se desenvolvesse em paz, utilizou a competência dos descendentes das antigas classes
governantes e não destruiu os critérios acadêmicos e profissionais — pelo menos até a Revolução
Cultural, cujo alvo e métodos nos escapam. Enfim, era óbvio que os "pensamentos" de Mao Tse-Tung
não seguiam as linhas estabelecidas por Stálin (ou Hitler), que ele não era um assassino instintivo, e que o
sentimento nacionalista, tão proeminente em todos os levantes revolucionários nos países que tinham sido
colônias, era suficientemente forte para impor limites ao domínio total. Tudo isso parece contrariar certos
receios expressos neste livro.
Por outro lado, o Partido Comunista Chinês, após a vitória, procurou logo ser "internacional em sua
organização, universal em sua ideologia e global em suas aspirações políticas", evidenciando o caráter
totalitário que se tornou mais nítido durante o desenvolvimento do conflito sino-soviético, embora o
próprio conflito possa ter sido provocado por questões nacionais e não ideológicas. A insistência dos
chineses em reabilitar Stálin e denunciar as tentativas russas de destotalitarização como um desvio
"revisionista" era, por si, bastante ominosa e, para tornar as coisas piores, foi seguida de uma política
internacional que visava a infiltrar com agentes chineses todos os movimentos revolucionários. É difícil
julgar todos esses acontecimentos neste instante, em parte porque não sabemos o suficiente, e em parte
porque tudo está ainda em estado de fluidez. A essas incertezas, inerentes à situação, acrescentamos
infelizmente nossos próprios preconceitos. Pois o fato de havermos herdado do período da guerra fria
uma "contra ideologia" oficial — o anticomunismo — não facilita as coisas, nem na teoria nem na
prática; e esse anticomunismo tende também a tornar-se global em sua aspiração, e nos leva a construir uma ficção nossa, de sorte que nos recusamos, em
princípio, a distinguir entre as várias ditaduras uniparti-dárias comunistas, com as quais nos defrontamos
na realidade, e o autêntico governo totalitário que possa vir a surgir, mesmo sob formas diferentes, na
China. O que importa, naturalmente, não é que a China comunista seja diferente da Rússia comunista,
como não importava que a Rússia de Stálin fosse diferente da Alemanha de Hitler. A embriaguez e a
incompetência, tão comuns em qualquer descrição da Rússia dos anos 20 e 30 e tão comuns ainda hoje,
não representaram qualquer papel importante na Alemanha nazista, enquanto a indescritível crueldade
gratuita dos campos de concentração e de extermínio alemães parece ter estado geralmente ausente dos
campos russos, onde os prisioneiros morriam de abandono e não de tortura. A corrupção, que foi desde o
início a maldição da administração russa, esteve também presente nos últimos anos do regime nazista,
mas parece estar completamente ausente da China após a revolução. Poderíamos dar muitos exemplos
dessas diferenças, que são muito significativas e fazem parte da história nacional dos respectivos países,
mas não influem diretamente sob/e a forma de governo. Sem dúvida, a monarquia absoluta foi muito
diferente na Espanha do que foi na França, na Inglaterra ou na Prússia; mas em todos esses países a forma
de governo era a mesma. Q que é importante em
_Hp,sso contexto é que o governo totalitário é diferente
das tiranias e das ditaduras
; a distinção entre eles não é de modo algum uflia~qüês-tãõ~ãcãdemica que
possa ser deixada, sem riscos, aos cuidados dos "teóricos", porque o domínio total é a única forma de
governo com a qual não é possível coexistir. Assim, temos todos os motivos para usar a palavra
"totalitarismo" com cautela.
Em absoluto contraste com a escassez e a incerteza das novas fontes de informação sobre os governos
totalitários, vemos uma enorme afluência de estudos sobre as novas ditaduras, totalitárias ou não. Isso se
aplica de modo especial à Alemanha nazista e à Rússia soviética. Existem hoje muitas obras realmente
indispensáveis para posteriores consultas e estudos do assunto, e fiz o possível para fazê-las constar de
minha bibliografia. O único tipo de literatura que, com raras exceções, propositadamente omiti são as
diversas memórias publicadas por antigos generais e altos funcionários nazistas após o fim da guerra, pois
é perfeitamente compreensível que esse tipo de apologia não prime pela honestidade. Se isso não deve
eliminá-la de nossas considerações, a falta de compreensão que essas reminiscências demonstram quanto
ao que estava realmente acontecendo e ao papel que os seus autores representaram no curso dos
acontecimentos é verdadeiramente espantosa e rouba-lhes todo o interesse, a
não ser, talvez, para os psicólogos.
continua página 323...
________________
Parte III Totalitarismo (Prefácio - 1)
___________________[1] É muito perturbador o fato de o regime totalitário, malgrado o seu caráter evidentemente criminoso, contar com o
apoio das massas. Embora muitos especialistas neguem-se a aceitar essa situação, preferindo ver nela o resultado da
força da máquina de propaganda e de lavagem cerebral, a publicação, em 1965, dos relatórios, originalmente
sigilosos, das pesquisas de opinião pública alemã dos anos 1939-44, realizadas então pelos serviços secretos da SS
(Meldungen aus dem Reich Auswahl aus den Geheimen Lageberichten des Sicherheitsdienstes der S. S. 1939-1945
[Relatórios do Reich. Seleção dos relatórios sigilosos colhidos pelo Serviço de Segurança da SS], Neu-wied & Berlin,
1965), demonstra que a população alemã estava notavelmente bem informada sobre o que acontecia com os judeus
ou sobre a preparação do ataque contra a Rússia, sem que com isso se reduzisse o apoio dado ao regime.
[2] Desde o início, a investigação e a publicação de material documental têm-se guiado pelo interesse quanto a
atividades criminosas, e usualmente a seleção tem sido feita para fins de acusação de criminosos de guerra. Como
resultado, uma grande quantidade de material altamente interessante foi negligenciada. O livro mencionado na nota 1
é uma exceção muito bem-vinda à regra.
[3] Ver Merle Fainsod, Smolensk under Soviet rule, Cambridge, 1958, pp. 210, 306, 365 etc.
[4] Ibid., pp. 73,93.
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