segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (Prefácio - 1)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

Prefácio
     1- 
          O manuscrito original de As origens do totalitarismo foi terminado no outono de 1949, mais de quatro anos depois da derrota da Alemanha de Hitler e menos de quatro anos antes da morte de Stálin. A primeira edição do livro veio à luz em 1951. Os anos em que foi redigido, de 1945 em diante, pareciam ser o primeiro período de relativa calma após décadas de tumulto, confusão e horror — desde as revoluções que se seguiram à Primeira Guerra Mundial até o surgimento de toda sorte de novas tiranias, fascistas e semifascistas, unipartidárias e militares, e, por fim, o firme estabelecimento de governos totalitários baseados no apoio das massas:[1] na Rússia em 1929, ano do que se costuma chamar de "segunda revolução", e na Alemanha em 1933.
     A derrota da Alemanha nazista pôs fim a um capítulo da história. O momento parecia apropriado para olhar os eventos contemporâneos com a retrospecção do historiador e com o zelo analítico do cientista político, a primeira oportunidade para tentar narrar e compreender o que havia acontecido — não ainda sine ira et studio, e sim com desgosto e pesar e, portanto, com certa tendência à lamentação, mas já sem a cólera muda é sem o horror impotente. Era, pelo menos, o primeiro momento em que se podia elaborar e articular as perguntas com as quais a minha geração havia sido obrigada a viver a maior parte da sua vida adulta: O que havia acontecido? Por que havia acontecido?
     Como pôde ter acontecido? Porque, da derrota alemã, que havia deixado para trás um país em ruínas e uma nação que sentia haver retornado ao "ponto zero" da sua história, haviam emergido montanhas de papéis virtualmente intactos, uma superabundância de documentação a respeito de todos os aspectos dos doze anos que durou o Reich milenar de Hitler. As primeiras e ricas seleções desse embarras de richesses, que até hoje não foram adequadamente divulgadas e investigadas, começaram a aparecer em decorrência do Julgamento de Nurem-bergue dos Principais Criminosos de Guerra, em 1946, nos doze volumes de Nazi conspiracy and aggression.[2]
     Contudo, muitos outros documentos e as mais diversas contribuições sobre o regime nazista haviam chegado às bibliotecas e arquivos quando a segunda edição deste livro apareceu em 1958. O que então aprendi foi muito interessante e, embora não chegasse a exigir mudanças substanciais na análise nem no argumento da minha tese original, tornava necessárias numerosas adições e substituições do material citado nas notas e considerável aumento do texto. Além disso, com um certo número de adendos, levei em consideração alguns dos eventos mais importantes ocorridos depois da morte de Stálin — como a crise da sucessão e o discurso de Khrushchev perante o Vigésimo Congresso do Partido — bem como novas informações sobre o regime de Stálin fornecidas em publicações mais recentes. Fiz, assim, uma revisão da Parte III e do último capítulo da Parte II, enquanto a Parte I, sobre o antissemitismo, e os primeiros quatro capítulos da Parte II, sobre o imperialismo, permaneceram inalterados. Ademais, havia certos conhecimentos de natureza estritamente teórica, intimamente ligados à minha análise dos elementos do domínio total, de que eu não dispunha quando terminei o manuscrito original. O último capítulo desta edição, "Ideologia e terror", substituiu as "Conclusões" da primeira edição, que foram incorporadas a outros capítulos. A segunda edição trazia ainda um "Epílogo", no qual se discutia a introdução do sistema russo-soviético nos países satélites e a Revolução Húngara [de 1956]. Superado em muitos detalhes, esse "Epílogo" foi eliminado.
     Obviamente, o fim da guerra em 1945 não trouxe o fim do governo totalitário na Rússia. Pelo contrário, foi seguido pela bolchevização da Europa oriental, ou seja, pela expansão do regime totalitário, e a paz nada mais era que uma oportunidade de analisar as semelhanças e diferenças nos métodos e instituições dos dois regimes totalitários. Decisivo nesse sentido não foi o fim da guerra, mas a morte de Stálin, oito anos depois. Retrospectivamente, parece que essa morte foi seguida não apenas de uma crise de sucessão e de um temporário "degelo", até que um novo líder se houvesse afirmado, mas de um autêntico, se bem que sinuoso e equívoco, processo de destotalitarização. Do ponto de vista dos acontecimentos, portanto, não havia por que atualizar essa parte do meu livro; e, no tocante ao nosso conhecimento daquele período, nada sofreu mu-, danças suficientemente drásticas para exigir extensas revisões e adições. Em contraste com a Alemanha, onde Hitler usou a guerra conscientemente para desenvolver e aperfeiçoar o governo totalitário, o período da guerra na Rússia foi uma época de suspensão temporária do domínio total. Para fins do meu estudo, os anos de 1929 a 1941 e de 1945 a 1953 são de interesse fundamental, e, para esses períodos, nossas fontes desinformações são da mesma natureza e tão escassas como o eram em 1958 ou mesmo em 1949. Nada aconteceu, nem parece provável que aconteça no futuro, que nos apresente o mesmo inequívoco fim da história ou as mesmas provas horríveis, claras e irrefutáveis desse fim, como foi o caso da Alemanha nazista.
     A única contribuição nova para o nosso conhecimento — o conteúdo dos Arquivos de Smolensk (publicados em 1958 por Merle Fainsod) — demonstrou a que ponto a escassez da mais elementar documentação e estatística prejudicará todos os estudos desse período da história russa. Porque, embora os arquivos (descobertos no quartel-general do partido em Smolensk pelos alemães e depois capturados, na Alemanha derrotada, pela força de ocupação norte americana) contenham cerca de 200 mil páginas de documentos e estejam virtualmente intactos no tocante ao período de 1917 a 1938, a quantidade de informação que eles claramente deixam de fornecer é realmente espantosa. Apesar da abundância de material sobre os expurgos de 1929 a 1937, não contêm indicação alguma do número de vítimas nem quaisquer outros dados estatísticos vitais. Os algarismos, quando surgem, são irremediavelmente contraditórios; cada uma das organizações fornece dados diferentes, e tudo o que ficamos sabendo com certeza é que muitos deles foram retidos "na fonte" por ordem do governo.[3] Além disso, os arquivos não informam das relações entre os vários setores de autoridade, "entre o Partido, os militares e a NKVD", ou entre o partido e o governo, e silenciam quanto aos canais de comunicação e comando. Enfim, nada nos ensinam quanto à estrutura organizacional do regime, da qual tanto sabemos no que tange à Alemanha nazista.[4] Em outras palavras, embora sempre se tenha sabido que as publicações oficiais soviéticas serviam a fins de propaganda e eram completamente indignas de confiança, agora parece claro que nunca existiram, em parte alguma, fontes dignas de fé e material estatístico em que se pudesse confiar.
     Mais séria ainda é outra questão: um estudo do totalitarismo pode ignorar o que aconteceu e está acontecendo na China? Aqui, o nosso conhecimento é ainda menos seguro do que era em relação à Rússia dos anos 30, em parte porque esse país conseguiu isolar-se muito mais radicalmente contra os estrangeiros após a vitória da Revolução, e em parte porque ainda não tivemos o auxílio de desertores dos escalões superiores do Partido Comunista Chinês — o que, aliás, é bem significativo. Durante dezessete anos, as poucas informações claras que possuíamos indicavam diferenças muito importantes: após o período inicial de sangrentos expurgos, cujas vítimas são estimadas em cerca de 15 milhões, ou cerca de 3% da população de 1949 (isto é, em termos percentuais, muito menos que as perdas populacionais devidas à "segunda revolução" de Stálin), não houve recrudescimento do terror, nem massacres de pessoas inocentes, nem categorias de "inimigos objetivos", nem julgamentos para fins de propaganda (embora tenha havido muitas confissões e "autocríticas" públicas). O famoso discurso de Mao em 1957, "Sobre o modo correto de tratar as contradições do povo", conhecido sob o título "Que mil flores floresçam", certamente não era nenhuma declaração de liberdade, mas reconhecia as contradições não-antagônicas entre as classes e, o que era mais importante, entre o povo e o governo comunista. O modo de lidar com os oponentes era a "retificação do pensamento", um complicado processo de constante moldagem e remoldagem dos espíritos, ao qual aparentemente quase toda a população estava sujeita. Nunca soubemos muito bem como isso funcionava na vida de cada dia e quem era isento — isto é, quem procedia à "remoldagem" dos outros —, e não tínhamos a menor idéia dos resultados da "lavagem cerebral", se era duradoura e se realmente produzia mudanças de personalidade. Se era isso terror, como certamente era, tratava-se de um terror diferente e, quaisquer que tenham sido os seus resultados, não dizimou a população. Reconhecia claramente o interesse nacional, permitiu que o país se desenvolvesse em paz, utilizou a competência dos descendentes das antigas classes governantes e não destruiu os critérios acadêmicos e profissionais — pelo menos até a Revolução Cultural, cujo alvo e métodos nos escapam. Enfim, era óbvio que os "pensamentos" de Mao Tse-Tung não seguiam as linhas estabelecidas por Stálin (ou Hitler), que ele não era um assassino instintivo, e que o sentimento nacionalista, tão proeminente em todos os levantes revolucionários nos países que tinham sido colônias, era suficientemente forte para impor limites ao domínio total. Tudo isso parece contrariar certos receios expressos neste livro.
     Por outro lado, o Partido Comunista Chinês, após a vitória, procurou logo ser "internacional em sua organização, universal em sua ideologia e global em suas aspirações políticas", evidenciando o caráter totalitário que se tornou mais nítido durante o desenvolvimento do conflito sino-soviético, embora o próprio conflito possa ter sido provocado por questões nacionais e não ideológicas. A insistência dos chineses em reabilitar Stálin e denunciar as tentativas russas de destotalitarização como um desvio "revisionista" era, por si, bastante ominosa e, para tornar as coisas piores, foi seguida de uma política internacional que visava a infiltrar com agentes chineses todos os movimentos revolucionários. É difícil julgar todos esses acontecimentos neste instante, em parte porque não sabemos o suficiente, e em parte porque tudo está ainda em estado de fluidez. A essas incertezas, inerentes à situação, acrescentamos infelizmente nossos próprios preconceitos. Pois o fato de havermos herdado do período da guerra fria uma "contra ideologia" oficial — o anticomunismo — não facilita as coisas, nem na teoria nem na prática; e esse anticomunismo tende também a tornar-se global em sua aspiração, e nos leva a construir uma ficção nossa, de sorte que nos recusamos, em princípio, a distinguir entre as várias ditaduras uniparti-dárias comunistas, com as quais nos defrontamos na realidade, e o autêntico governo totalitário que possa vir a surgir, mesmo sob formas diferentes, na China. O que importa, naturalmente, não é que a China comunista seja diferente da Rússia comunista, como não importava que a Rússia de Stálin fosse diferente da Alemanha de Hitler. A embriaguez e a incompetência, tão comuns em qualquer descrição da Rússia dos anos 20 e 30 e tão comuns ainda hoje, não representaram qualquer papel importante na Alemanha nazista, enquanto a indescritível crueldade gratuita dos campos de concentração e de extermínio alemães parece ter estado geralmente ausente dos campos russos, onde os prisioneiros morriam de abandono e não de tortura. A corrupção, que foi desde o início a maldição da administração russa, esteve também presente nos últimos anos do regime nazista, mas parece estar completamente ausente da China após a revolução. Poderíamos dar muitos exemplos dessas diferenças, que são muito significativas e fazem parte da história nacional dos respectivos países, mas não influem diretamente sob/e a forma de governo. Sem dúvida, a monarquia absoluta foi muito diferente na Espanha do que foi na França, na Inglaterra ou na Prússia; mas em todos esses países a forma de governo era a mesma. Q que é importante em _Hp,sso contexto é que o governo totalitário é diferente das tiranias e das ditaduras ; a distinção entre eles não é de modo algum uflia~qüês-tãõ~ãcãdemica que possa ser deixada, sem riscos, aos cuidados dos "teóricos", porque o domínio total é a única forma de governo com a qual não é possível coexistir. Assim, temos todos os motivos para usar a palavra "totalitarismo" com cautela.
     Em absoluto contraste com a escassez e a incerteza das novas fontes de informação sobre os governos totalitários, vemos uma enorme afluência de estudos sobre as novas ditaduras, totalitárias ou não. Isso se aplica de modo especial à Alemanha nazista e à Rússia soviética. Existem hoje muitas obras realmente indispensáveis para posteriores consultas e estudos do assunto, e fiz o possível para fazê-las constar de minha bibliografia. O único tipo de literatura que, com raras exceções, propositadamente omiti são as diversas memórias publicadas por antigos generais e altos funcionários nazistas após o fim da guerra, pois é perfeitamente compreensível que esse tipo de apologia não prime pela honestidade. Se isso não deve eliminá-la de nossas considerações, a falta de compreensão que essas reminiscências demonstram quanto ao que estava realmente acontecendo e ao papel que os seus autores representaram no curso dos acontecimentos é verdadeiramente espantosa e rouba-lhes todo o interesse, a não ser, talvez, para os psicólogos.

Parte III Totalitarismo (Prefácio - 1)
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[1] É muito perturbador o fato de o regime totalitário, malgrado o seu caráter evidentemente criminoso, contar com o apoio das massas. Embora muitos especialistas neguem-se a aceitar essa situação, preferindo ver nela o resultado da força da máquina de propaganda e de lavagem cerebral, a publicação, em 1965, dos relatórios, originalmente sigilosos, das pesquisas de opinião pública alemã dos anos 1939-44, realizadas então pelos serviços secretos da SS (Meldungen aus dem Reich Auswahl aus den Geheimen Lageberichten des Sicherheitsdienstes der S. S. 1939-1945 [Relatórios do Reich. Seleção dos relatórios sigilosos colhidos pelo Serviço de Segurança da SS], Neu-wied & Berlin, 1965), demonstra que a população alemã estava notavelmente bem informada sobre o que acontecia com os judeus ou sobre a preparação do ataque contra a Rússia, sem que com isso se reduzisse o apoio dado ao regime.
[2] Desde o início, a investigação e a publicação de material documental têm-se guiado pelo interesse quanto a atividades criminosas, e usualmente a seleção tem sido feita para fins de acusação de criminosos de guerra. Como resultado, uma grande quantidade de material altamente interessante foi negligenciada. O livro mencionado na nota 1 é uma exceção muito bem-vinda à regra.
[3] Ver Merle Fainsod, Smolensk under Soviet rule, Cambridge, 1958, pp. 210, 306, 365 etc.
[4] Ibid., pp. 73,93.

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