Hannah Arendt
Parte I
ANTISSEMITISMO
Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória.
Roger Martin du Gard
2,1 - Os equívocos da emancipação e o banqueiro estatal judeu
No ápice do seu desenvolvimento no século XIX, o Estado-nação concedeu aos habitantes
judeus a igualdade de direitos. Esconde contradições profundas e fatais a evidente incoerência
do fato de que os judeus receberam a cidadania dos governos que, no decorrer dos séculos,
haviam feito da nacionalidade um pré-requisito da cidadania, e da homogeneidade de população
a principal característica da estrutura política.
As leis e éditos que outorgavam aos judeus o direito à emancipação seguiam na Europa, lenta e
hesitantemente, a lei francesa de 1792. Esses decretos foram precedidos e acompanhados pela
atitude ambígua da parte do Estado-nação em relação aos seus habitantes judeus. Do colapso da
ordem feudal surgiu o conceito revolucionário de igualdade, segundo o qual não se podia mais
tolerar uma "nação dentro de outra nação". Por conseguinte, as restrições e os privilégios dos
judeus tinham de ser abolidos juntamente com todos os outros direitos especiais. Contudo, essa
expansão da igualdade dependia em grande parte do crescimento da força de uma máquina
estatal independente que, sob forma de despotismo esclarecido ou de governo constitucional,
superior às classes e aos partidos, pudesse, em esplêndido isolamento, funcionar, governar e
representar os interesses da nação como um todo. Assim, quando a partir do fim do século XVII
a expansão econômica estatal aumenta a necessidade de créditos e o alargamento da esfera de
influência econômica do Estado, era natural que se recorresse ao auxílio dos judeus, velhos e
experimentados emprestadores de dinheiro, com ligações com a nobreza europeia, à qual
deviam muitas vezes proteção local e cujas finanças costumavam administrar, enquanto nenhum
outro grupo entre as populações da Europa estava disposto a conceder crédito ao Estado, ou a
participar ativamente da evolução dos negócios estatais. Era do interesse dos Estados conceder
aos judeus certos privilégios em troca e tratá-los como grupo à parte. De modo algum o Estado
poderia consentir que os judeus fossem assimilados pelo resto da população, a qual lhe recusava crédito, negando-se a participar dos negócios do Estado e a fomentá-los.
Portanto, a emancipação dos judeus, como lhes foi concedida pelo sistema de Estados nacionais
na Europa durante o século XIX, tinha dupla origem e o significado ambíguo. Por um lado, ela
decorria da estrutura política e jurídica de um sistema renovado, que só podia funcionar nas
condições de igualdade política e legal, a ponto de os governos, para seu próprio bem,
precisarem aplainar as desigualdades da velha ordem do modo mais completo e mais rápido
possível. Por outro lado, a emancipação resultava claramente da gradual extensão de privilégios
— originalmente concedidos a apenas alguns indivíduos e, depois, a pequenas camadas de
judeus ricos — e que passaram a ser outorgados a todos os judeus da Europa central e ocidental,
para que atendessem às crescentes exigências dos negócios estatais, a que os limitados
grupúsculos de judeus ricos não conseguiam mais fazer face sozinhos.[1]
Assim, a emancipação significava, ao mesmo tempo, igualdade e privilégios: a destruição da
antiga autonomia comunitária judaica e a consciente preservação dos judeus como grupo
separado na sociedade; a abolição de restrições e direitos especiais e a extensão desses direitos a
um grupo cada vez maior de indivíduos. A igualdade de condição para todos os cidadãos
constituiu a premissa do novo corpo político e, embora essa igualdade houvesse sido realmente
posta em prática — pelo menos no tocante à privação das antigas classes governantes do
privilégio de governar e das classes oprimidas do direito de serem protegidas —, o processo
coincidia com o nascimento de uma sociedade de classes, as quais novamente separavam os
cidadãos, econômica e socialmente, de modo tão eficaz quanto o antigo regime. A igualdade de
condição, como entendida pelos jacobinos da Revolução Francesa, só se tornou realidade na
América do Norte; no continente europeu, foi substituída por uma simples igualdade perante a
lei.
A contradição fundamental entre o corpo político baseado na igualdade perante a lei e a
sociedade baseada na desigualdade do sistema de classes impediu o desenvolvimento de
sistemas eficazes e o nascimento de uma nova hierarquia política. A intransponível
desigualdade da condição social — outorgada ao indivíduo e quase garantida por nascimento — coexistia paradoxalmente com a
igualdade política. Somente países politicamente atrasados, como a Alemanha imperial, haviam
conservado alguns vestígios feudais. Lá, os membros da aristocracia, que, pouco a pouco,
adquiriam a consciência de serem uma classe, dispunham de condição política privilegiada e,
assim, podiam conservar, como grupo, certa relação especial com o Estado. Mas tratava-se
apenas de vestígios do passado. O sistema de classes completamente desenvolvido e maduro
define a condição do indivíduo por sua associação com uma determinada classe dentro do
relacionamento dela com as outras, e não por sua posição pessoal no Estado.
Os judeus constituíam a única exceção a essa regra geral. Não formavam uma classe nem
pertenciam a qualquer das classes nos países em que viviam. Como grupo, não eram nem
trabalhadores nem gente da classe média, nem latifundiários, nem camponeses. Sua riqueza
parecia fazer deles membros da classe média, mas não participavam do seu desenvolvimento
capitalista; mal eram representados nas empresas industriais; e, se, na última fase de sua história
europeia, chegavam a conduzir importantes empresas, dirigiam pessoal burocrático ou
intelectual e não o operariado. Em outras palavras, embora seu status fosse definido pelo fato de
serem judeus, não o era por suas relações com as outras classes. A proteção especial que
recebiam do Estado (quer sob antiga forma de privilégios, quer sob forma de leis especiais de
emancipação, de que nenhum outro grupo necessitava e que, muitas vezes, precisava de reforço
legal ulterior, por causa da hostilidade da sociedade) e os serviços especiais que prestavam a governos impediam, ao mesmo tempo, que submergissem no sistema de classes, e que se
estabelecessem como classe.[2] Assim, mesmo que ingressassem na sociedade, formavam um
grupo bem definido que preservava a sua identidade mesmo dentro de uma das classes com as
quais se relacionavam, fosse esta aristocracia ou burguesia.
Não há dúvida de que o interesse do Estado-nação no sentido de conservar os judeus como
grupo especial, e evitar que fossem assimilados pela sociedade de classes, coincidia com o
interesse dos judeus no sentido de sobreviverem como grupo. Também é mais do que provável
que, sem essa coincidência, as tentativas dos governos teriam sido vãs: as fortes tendências de
igualar todos os cidadãos, por parte do Estado, e de incorporar cada indivíduo numa classe, por
parte da sociedade, implicavam claramente a completa assimilação dos judeus e só podiam ser
frustradas por uma combinação de dois elementos: intervenção do governo e cooperação
voluntária. Afinal, a política oficial em relação aos judeus não era sempre tão consistente e
inflexível como poderíamos pensar, se apenas considerássemos os resultados finais.[3] É realmente surpreendente ver com que uniformidade os judeus desprezaram as oportunidades de se
engajar em empresas e negócios capitalistas normais.[4] Mas, sem os interesses e as práticas dos
governos, os judeus mal poderiam ter conservado sua identidade grupal.
Em contraste cem todos os outros grupos, os judeus eram definidos pelo sistema político, e a sua
posição era determinada por ele. Como, porém, esse sistema político carecia de base assentada
em realidade social, eles se situavam, socialmente falando, no vácuo. Sua desigualdade social
era bem diferente da desigualdade decorrente do sistema de classes; novamente, ela resultava
da relação com o Estado, de modo que, na sociedade, o próprio fato de o indivíduo ter nascido
judeu significava que ou era superprivilegiado — por receber proteção especial do governo —
ou subprivilegiado, privado de certos direitos e oportunidades, negados aos judeus para impedir
a sua assimilação.
O esquema da ascensão e queda do sistema de Estados-nações europeus com relação ao povo
judeu segue, grosso modo, os seguintes estágios:
1. Nos séculos XVII e XVIII, o lento desenvolvimento dos Estados-nações processava-se sob a
tutela dos monarcas absolutos. Em toda parte, judeus emergiam individualmente do profundo
anonimato marginalizador para as posições às vezes atraentes e quase sempre influentes de
judeus-da-corte, que financiavam os negócios do Estado e administravam as transações
financeiras dos seus soberanos. Essas modificações afetavam de maneira insignificante os judeus em geral e as massas que continuavam a viver dentro dos padrões correspondentes à antiga
ordem feudal.
2. Após a Revolução Francesa, que alterou bruscamente as condições políticas de todo o
continente europeu, surgiram Estados-nações no sentido moderno, cujas transações comerciais
exigiam muito mais capital e crédito de que jamais dispuseram os judeus-da-corte. Somente
poderia satisfazer às novas e maiores necessidades governamentais a fortuna combinada dos
grupos judeus mais ricos da Europa ocidental e central, confiada por eles a banqueiros judeus
que, por conseguinte, como banqueiros, precisavam de coletividades judaicas organizadas como
fontes da captação do dinheiro, e as apoiavam nesse sentido. Nesse período, portanto, começou
a concessão de privilégios — até então só necessários, individualmente, aos judeus-da-corte —
à camada rica que havia conseguido estabelecer-se, no decorrer do século XVIII, nos centros
urbanos e financeiros mais importantes. Por fim, foi concedida aos judeus a emancipação em
todos os Estados-nações, exceto naqueles países em que os judeus, devido ao seu elevado
número e ao atraso social geral (como na Rússia), não conseguiram organizar-se como grupo
especial, à parte, de função econômica especificamente destinada a apoiar financeiramente o
governo.
governo.
3. Essa íntima relação entre judeus e governos era facilitada pela indiferença geral da burguesia
no tocante à política em geral e às finanças do Estado em particular. Esse período terminou com
o surgimento do imperialismo, no fim do século XIX, quando os negócios capitalistas em
expansão já não podiam ser realizados sem a intervenção e o apoio político ativo do Estado'. O
imperialismo, por outro lado, minou as próprias bases do Estado-nação e introduziu no conjunto
de nações europeias o espírito comercial de concorrência competitiva. Os judeus perderam
então sua posição exclusiva nos negócios do Estado para homens de negócios de mentalidade
imperialista, e a sua importância como grupo declinou, embora alguns judeus conservassem
individualmente sua influência como consultores financeiros e como mediadores intereuropeus.
Esses judeus, contudo, em contraste com os banqueiros estatais, não precisavam do apoio e
solidariedade das comunidades judaicas, como os judeus-da-corte dos séculos XVII e XVIII.
Assim, isolavam-se delas. Aliás, as comunidades judaicas já não eram financeiramente
organizadas e, embora alguns judeus em altas posições ainda representassem aos olhos do
mundo gentio o povo judeu como um todo, havia pouca ou nenhuma realidade material nesse
fato.
4. Como grupo, o povo judeu do Ocidente europeu desintegrou-se juntamente com o Estado
nação nas décadas que precederam a deflagração da Primeira Guerra Mundial. O rápido declínio
da Europa após a guerra já os encontrou destituídos do antigo poder, atomizados num rebanho
de indivíduos mais ou menos ricos. Mas, na era imperialista, a riqueza dos judeus havia se
tornado insignificante; para a Europa, desprovida de equilíbrio de poder entre as nações que a
compunham, e carente de noções de solidariedade intereuropeia, o elemento judeu,
intereuropeu e não nacional, tornou-se objeto de ódio, devido à sua riqueza inútil, e de desprezo,
devido à sua falta de poder.
continua página 26...
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Parte I Antissemitismo (2. Os Judeus. O Estado-Nação e o nascimento do antissemitismo: 2.1[a])
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[1] Para o historiador moderno, os direitos e liberdades concedidos aos judeus-da-corte durante os séculos XVII e XVIII podem
parecer precursores da igualdade: esses judeus podiam viver onde quisessem, tinham permissão de viajar livremente dentro do reino
do seu soberano, podiam portar armas e contavam com a proteção especial das autoridades locais. Na verdade, esses judeus-da
corte, caracteristicamente chamados, na Prússia, Generalprivilegierte Juden, gozavam não apenas de melhores condições de vida
que seus correligionários ainda sujeitos a restrições quase medievais, mas viviam até melhor que seus vizinhos não-judeus. Seu
padrão de vida era muito mais alto que o da classe média da época, e seus privilégios, na maioria dos casos, superavam os que eram
concedidos aos outros mercadores. Essa situação não deixou de ser percebida por seus contemporâneos. Christian Wilhelm Dohm,
eminente advogado da emancipação judaica na Prússia do século XVIII, queixou-se da prática, em vigor desde o tempo de Frederico
Guilherme I, de conceder aos judeus ricos "toda sorte de favores e apoio", muitas vezes "às custas e ao descaso de cidadãos
diligentes e legais [isto é, não-judeus]". Em Denkwürdigkeiten meinerZeite [Feitos memoráveis do meu tempo], Lemgo, 1814-9, IV,
p. 487.
[2] Jacob Lestschinsky, numa discussão anterior do problema judaico, salientou que os judeus não pertenciam a nenhuma classe social, e falou de uma Klasseneinschiebsel [interposição de classe] (em Weltwirtschafts-Archiv, 1939, vol. 30, p. 123 ss), mas viu apenas as desvantagens dessa situação na Europa oriental, não suas grandes vantagens nos países da Europa ocidental e central.
[2] Jacob Lestschinsky, numa discussão anterior do problema judaico, salientou que os judeus não pertenciam a nenhuma classe social, e falou de uma Klasseneinschiebsel [interposição de classe] (em Weltwirtschafts-Archiv, 1939, vol. 30, p. 123 ss), mas viu apenas as desvantagens dessa situação na Europa oriental, não suas grandes vantagens nos países da Europa ocidental e central.
[3] Por exemplo, na Prússia de Frederico II, após a Guerra dos Sete Anos, fez-se um esforço para incorporar os judeus numa
espécie de sistema mercantil. O antigo Juden-reglement de 1750 foi substituído por um sistema de licenças regulares concedidas apenas àqueles habitantes que investiam parte considerável de sua
fortuna nas novas empresas manufatureiras. Mas ali, como em toda parte, essas tentativas governamentais falharam completamente.
[4] Felix Priebatsch, no ensaio "Die Judenpolitik des fürstlichen Absolutismus im 17 und 18 Jahrhundert" [Política judaica do
absolutismo principesco nos séculos XVII e XVIII], publicado em Forschungen und Versuche zur Geschichte des Mittelalters und
der Neuzeit [Pesquisas e estudos da história medieval e moderna] (1915), cita um exemplo típico do início do século XVIII:
"Quando a fábrica de espelhos em Neuhaus, na Baixa Ãustria, que era subsidiada pela administração, deixou de produzir, o judeu
Wertheimer deu ao imperador dinheiro para comprá-la. Quando lhe pediram que assumisse a direção da fábrica, ele recusou,
afirmando que seu tempo estava todo tomado por suas transações financeiras". Ver também Max Kõhler, "Beitrage zur neueren jüdischen Wirtschaftsgeschichte. Die Juden in Halberstadt und Umgebung"
[Contribuições para a nova história econômica judaica. Os judeus em Halberstadt e Umgebung],em Studien zur Geschichte der
Wirtschaft und Geistkultur [Estudos para a história da economia e da cultura], 1927, vol. 3. Essa tradição, que evitou que os judeus ricos tivessem posições de real poder no capitalismo, é corroborada pelo fato de que, em
1911, os Rothschild de Paris venderam sua parte nos campos petrolíferos de Baku ao grupo Royal Shell, após haverem sido os
maiores magnatas de petróleo do mundo depois de Rockefeller. O incidente é narrado em Richard Lewinsohn, Wie sie gross und
reich wurden [Como se tornaram poderosos e ricos], Berlim, 1927. Pode ser tomada como regra geral a afirmação de André E. Sayou no ensaio "Les Juifs", publicado na Revue Economique
Internationale, março de 1932, como parte da polêmica com Werner Sombart, o qual identificava os judeus com o desenvolvimento
capitalista: "Os Rothschild e outros israelitas que estavam quase exclusivamente engajados no lançamento de empréstimos estatais e
no movimento internacional de capital, não procuraram absolutamente [...] criar grandes indústrias" (p. 531).
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