Hannah Arendt
Parte II
IMPERIALISMO
Se eu pudesse, anexaria os planetas.
Cecil Rhodes
Dois novos mecanismos de organização política e de domínio dos povos estrangeiros foram
descobertos durante as primeiras décadas do imperialismo. Um foi a raça como princípio da
estrutura política; o outro, a burocracia como princípio do domínio no exterior. Sem a raça para
substituir a nação, a corrida para a África e a febre dos investimentos poderiam ter-se reduzido
— para usar a expressão de Joseph Conrad — à desnorteada "dança da morte e do comércio"
das corridas do ouro. Sem a burocracia para substituir o governo, a possessão britânica da índia
poderia ter sido abandonada à temeridade dos "infratores da lei na índia" (Burke), sem que isso
alterasse o clima político de toda uma época.
Ambas as descobertas foram realizadas no Continente Negro. A raça foi uma tentativa de
explicar a existência de seres humanos que ficavam à margem da compreensão dos europeus, e
cujas formas e feições de tal forma assustavam e humilhavam os homens brancos, imigrantes ou
conquistadores, que eles não desejavam mais pertencer à mesma comum espécie humana. Na
ideia da raça encontrou-se a resposta dos bôeres à "monstruosidade" esmagadora descoberta na
África — todo um continente povoado e abarrotado de selvagens — e a justificação da loucura
que os iluminou como "o clarão de um relâmpago num céu sereno" no brado: "Exterminemos
todos esses brutos!"[1] Dessa ideia resultaram os mais terríveis massacres da história: o
extermínio das tribos hotentotes pelos bôeres, as selvagens matanças de Carl Peters no Sudeste
Africano Alemão, a dizimação da pacata população do Congo reduzida de uns 20 milhões para
8 milhões; e, o que é pior, a adoção desses métodos de "pacificação" pela política externa
europeia comum e respeitável. Foi um chefe de Estado civilizado, o Kaiser Guilherme II, que
ousou pronunciar a exortação dirigida a um contingente expedicionário alemão em luta contra a
insurreição dos boxers* em 1900:
"Tal como os hunos, há mil anos, sob o comando de Atila, ganharam uma reputação que ainda
hoje vive na história, assim também possa o nome da Alemanha tornar-se de tal modo
conhecido na China que nenhum chinês jamais ouse novamente olhar com desdém um
alemão".[2]
A raça, quer sob forma de conceito ideológico gerado na Europa, ou como explicação de
emergência para experiências chocantes e sangrentas, sempre atraiu os piores elementos da
civilização ocidental. Já a burocracia foi descoberta pelas mais elevadas e, por vezes, as mais
esclarecidas camadas da intelli-gentsia europeia, às quais atraía a princípio. O administrador que
governava por relatórios[3] e decretos, num sigilo pior que o de qualquer déspota oriental, surgiu
de uma tradição de disciplina militar introduzida em meio a homens sem compaixão e sem lei.
Vivendo de acordo com os ideais sinceros e honestos da infância, sentia-se como moderno
cavaleiro enviado em missão para proteger a povos desamparados e primitivos. E cumpriu essa
tarefa de um modo ou de outro, enquanto vivia num mundo dominado pela velha "trindade —
guerra, comércio e pirataria" (Goethe). Porém, o complicado jogo de políticas de investimento
de longo alcance exigia a subjugação de um povo, não em virtude das suas riquezas, como
anteriormente, mas das riquezas de um outro país. Foi a burocracia a base organizacional do
grande jogo da expansão, no qual cada zona era considerada um degrau para envolvimentos
futuros, e cada povo era um instrumento para futuras conquistas.
Embora fossem múltiplas as relações entre o racismo e a burocracia, ambos foram descobertos e
se desenvolveram independentemente. E, entre aqueles que, de um modo ou de outro, tiveram
algo a ver com o seu aperfeiçoamento, ninguém chegou jamais a perceber todo o potencial de
acúmulo de poder e de destruição oferecido por essa combinação. Lorde Cromer, que no Egito
passou de mero chargê d'affaires britânico a burocrata imperialista, não teria sonhado em
misturar administração com massacre ("massacres administrativos", como Carthill francamente
os chamou quarenta anos mais tarde), do mesmo modo que os racistas fanáticos da África do
Sul jamais pensaram em organizar massacres com o fito de estabelecer comunidades políticas
circunscritas e racionais (como os nazistas fizeram nos campos de extermínio).
continua página 201...
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Parte II Imperialismo (3 - Raça e Burocracia)
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[1] Joseph Conrad, "Heart of Darkness" [O coração das trevas] em Youth and Other Tales, 1902, é a obra mais
elucidativa quanto a experiências raciais na Ãfrica.
[*] Chineses nacionalistas que combatiam a influência ocidental, os boxers massacraram missionários estrangeiros
em 1900, o que provocou a intervenção de um corpo expedicionário internacional comandado por Waldersee, um
general alemão. (N. E.)
[2] Citado por Carlton J. Hayes, A generationofmaterialism, Nova York, 1941, p. 338. Um caso ainda pior é o de Leopoldo II da
Bélgica, responsável pelas páginas mais negras da história da África. "Só havia um homem que podia ser acusado das atrocidades
que reduziram a população nativa do Congo de cerca de 20 a 40 milhões em 1890 para 8500000 em 1911: Leopoldo II". Ver Selwyn
James, South ofthe Congo, Nova York, 1943, p. 305.
[3] Ver A. Carthill e sua descrição do "sistema indiano de governo por meio de relatórios", em The lost dominion, 1924, p. 70.
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