Hannah Arendt
Parte II
IMPERIALISMO
Se eu pudesse, anexaria os planetas.
Cecil Rhodes
Ainda hoje é quase impossível descrever o que realmente aconteceu na Europa a 4 de agosto de
1914. Os dias que antecedem e os que se seguem à Primeira Guerra Mundial não são como o
fim de um velho período e o começo de um novo, mas como a véspera de uma explosão e o dia
seguinte. Contudo, esta figura de retórica é tão inexata como todas as outras, porque a calma
dolorosa que sobrevém à catástrofe perdura até hoje. A primeira explosão parece ter provocado
uma reação em cadeia que, desde então, nos engolfou e que ninguém tem o poder de estancar. A
Primeira Guerra Mundial foi uma explosão que dilacerou irremediavelmente a comunidade dos
países europeus, como nenhuma outra guerra havia feito antes. A inflação destruiu toda a classe
de pequenos proprietários a ponto de não lhes deixar esperança de recuperação, o que nenhuma
crise financeira havia feito antes de modo tão radical. O desemprego, quando veio, atingiu
proporções fabulosas, sem se limitar às classes trabalhadoras mas alcançando nações inteiras,
com poucas exceções. As guerras civis que sobrevieram e se alastraram durante os vinte anos de
paz agitada não foram apenas mais cruéis e mais sangrentas do que as anteriores: foram
seguidas pela migração de compactos grupos humanos que, ao contrário dos seus predecessores
mais felizes, não eram bem-vindos e não podiam ser assimilados em parte alguma. Uma vez
fora do país de origem, permaneciam sem lar; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se
apátridas; quando perdiam os seus direitos humanos, perdiam todos os direitos: eram o refugo
da terra. Nada do que estava sendo feito, por mais incrível que fosse e por mais numerosos que
fossem os homens que conheciam e previam as consequências, podia ser desfeito ou evitado.
Cada evento era definitivo como um julgamento final, um julgamento que não era passado nem
por Deus nem pelo Diabo, mas que parecia a expressão de alguma fatalidade irremediavelmente
absurda.
Antes que a política totalitária conscientemente atacasse e destruísse a própria estrutura da
civilização europeia, a explosão de 1914 e suas graves consequências de instabilidade haviam
destruído a fachada do sistema político — o bastante para deixar à mostra o seu esqueleto. Ficou
visível o sofrimento de um número cada vez maior de grupos de pessoas às quais, subitamente,
já não se aplicavam as regras do mundo que as rodeava. Era precisamente a aparente estabilidade do
mundo exterior que levava cada grupo expulso de suas fronteiras, antes protetoras, parecer uma
infeliz exceção a uma regra sadia e normal, e que, ao mesmo tempo, inspirava igual cinismo
tanto às vítimas quanto aos observadores de um destino aparentemente injusto e anormal. Para
ambos, esse cinismo parecia sabedoria em relação às coisas do mundo, mas na verdade todos
estavam mais perplexos e, portanto, mais ignorantes do que nunca. O ódio, que certamente não
faltara ao mundo, antes da guerra começou a desempenhar um papel central nos negócios
públicos de todos os países, de modo que o cenário político, nos anos enganadoramente calmos
da década de 20, assumiu uma atmosfera sórdida e estranha de briga em família à Strindberg.
Nada talvez ilustre melhor a desintegração geral da vida política do que esse ódio universal
vago e difuso de todos e de tudo, sem um foco que lhe atraísse a atenção apaixonada, sem
ninguém que pudesse ser responsabilizado pelo estado de coisas — nem governo, nem
burguesia, nem potência estrangeira. Partia, consequentemente, em todas as direções, cega e
imprevisivelmente, incapaz de assumir um ar de indiferença sadia em relação a coisa alguma
sob o sol.
Essa atmosfera de desintegração, embora característica de toda a Europa entre as duas guerras,
era mais visível nos países derrotados que nos vitoriosos, e atingiu o seu ponto mais alto nos
Estados recém-estabelecidos após a liquidação da Monarquia Dual e do império czarista. Os
últimos restos de solidariedade entre as nacionalidades não emancipadas do "cinturão de
populações mistas" evaporaram-se com o desaparecimento de uma despótica burocracia central,
que também havia servido para centralizar e desviar uns dos outros os ódios difusos e as
reivindicações nacionais em conflito. Agora todos estavam contra todos, e, mais ainda, contra os
seus vizinhos mais próximos — os eslovacos contra os tchecos, os croatas contra os sérvios, os
ucranianos contra os poloneses. E isso não resultava do conflito entre as nacionalidades e os
povos formadores de Estados, ou entre minorias e maiorias: os eslovacos não apenas sabotavam
constantemente o governo democrático de Praga como, ao mesmo tempo, perseguiam a minoria
húngara em seu próprio solo, enquanto semelhante hostilidade contra o "povo estatal", por um
lado, e entre si mesmas, por outro, animava as minorias insatisfeitas da Polônia.
À primeira vista, esses distúrbios no velho centro nevrálgico da Europa pareciam ser apenas
mesquinhas querelas nacionalistas, sem consequência para os destinos políticos do continente.
Contudo, nessas regiões, e como resultado da liquidação dos dois Estados multinacionais
europeus de antes da guerra — a Rússia e a Áustria-Hungria — surgiram dois grupos de
vítimas, cujos sofrimentos foram muito diferentes dos de todos os outros grupos, no intervalo
entre as duas guerras mundiais; ambos estavam em pior situação que as classes médias
desapossadas, os desempregados, os pequenos rentiers, os pensionistas aos quais os eventos
haviam privado da posição social, da possibilidade de trabalhar e do direito de ter propriedades:
eles haviam perdido aqueles direitos que até então eram tidos e até definidos como inalienáveis,
ou seja, os Direitos do Homem. Os apátridas e as minorias, denominados com razão "primos em
primeiro grau",[1] não dispunham de governos que os representassem e protegessem e, por isso,
eram forçados a viver ou sob as leis de exceção dos Tratados das Minorias — que todos os
governos (com exceção da Tchecoslováquia) haviam assinado sob protesto e nunca
reconheceram como lei —, ou sob condições de absoluta ausência da lei.
Com o surgimento das minorias na Europa oriental e meridional e com a incursão dos povos
sem Estado na Europa central e ocidental, um elemento de desintegração completamente novo
foi introduzido na Europa do após-guerra. A desnacionalização tornou-se uma poderosa arma da
política totalitária, e a incapacidade constitucional dos Estados-nações europeus de proteger os
direitos humanos dos que haviam perdido os seus direitos nacionais permitiu aos governos
opressores impor a sua escala de valores até mesmo sobre os países oponentes. Aqueles a quem
haviam escolhido como refugo da terra — judeus, trotskistas etc. — eram realmente recebidos
como o refugo da terra em toda parte; aqueles a quem a perseguição havia chamado de
indesejáveis tornavam-se de fato os indésirables da Europa. O jornal oficial da SS, o Schwartze
Korps, disse explicitamente em 1938 que, se o mundo ainda não estava convencido de que os
judeus eram o refugo da terra, iria convencer-se tão logo, transformados em mendigos sem
identificação, sem nacionalidade, sem dinheiro e sem passaporte, esses judeus começassem a
atormentá-los em suas fronteiras.[2] E o fato é que esse tipo de propaganda factual funcionou
melhor que a retórica de Goebbels, não apenas porque fazia dos judeus o refugo da terra, mas
também porque a incrível desgraça do número crescente de pessoas inocentes demonstrava na
prática que eram certas as cínicas afirmações dos movimentos totalitários de que não existiam
direitos humanos inalienáveis, enquanto as afirmações das democracias em contrário revelavam
hipocrisia e covardia ante a cruel majestade de um mundo novo. A própria expressão "direitos
humanos" tornou-se para todos os interessados — vítimas, opressores e espectadores — uma
prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia.
continua página 289...
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Parte II Imperialismo (5. O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Homem)
Parte II Imperialismo (5.1 - A"A nação de Minorias" e os Povos sem Estado)
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[1] S. Lawford Childs, "Refugees — a permanent problem in international organization", em War is not inevitable.
Problems of peace. 13? série, Londres, 1938, publicado pelo Internacional
Labor Office.
[2] O início da perseguição dos judeus alemães pelos nazistas deve ser considerado uma tentativa de espalhar o anti
semitismo entre "aqueles povos que simpatizam com os judeus, principalmente as democracias ocidentais", e não um
esforço de se descartar dos judeus. Uma circular do Ministério das Relações Exteriores para todas as autoridades
alemãs no exterior, logo depois dos pogroms de novembro de 1938, dizia: "O movimento imigratório de apenas cerca
de 100 mil judeus já foi suficiente para despertar o interesse de muitos países para o perigo judaico. (...) A Alemanha
está muito interessada em manter a dispersão dos judeus; (...) o influxo de judeus em todas as partes do mundo
desperta a oposição da população nativa e, assim, se constitui na melhor propaganda para a política judaica alemã (...)
Quanto mais pobre for o imigrante judeu e, portanto, quanto mais incômodo para o país que o absorve, mais
fortemente reagirá o país". Ver Nazi conspiracy and agression. Washington, 1946, publicado pelo governo norte
americano, VI, 87 ss.
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