quinta-feira, 17 de julho de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (Prefácio)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

Prefácio

     Poucas vezes o começo de um período histórico pôde ser datado com tanta precisão, e raramente os observadores contemporâneos tiveram tanta possibilidade de presenciar o seu fim definitivo, como no caso da era imperialista. Porque foi só a partir de 1884 que o imperialismo — surgido do colonialismo e gerado pela incompatibilidade do sistema de Estados nacionais com o desenvolvimento econômico e industrial do último terço do século XIX — iniciou a sua política de expansão por amor à expansão, e esse novo tipo de política expansionista diferia tanto das conquistas de característica nacional, antes levadas adiante por meio de guerras fronteiriças, quanto diferia a política imperialista da verdadeira formação de impérios, ao estilo de Roma.
     Por outro lado, o seu fim parecia inevitável depois que a "liquidação do Império de Sua Majestade", a que Churchill não quis "presidir", se tornou fato consumado em consequência da declaração de independência da índia. O fato de os ingleses haverem liquidado voluntariamente o seu domínio colonial ainda constitui um dos mais momentosos acontecimentos da história do século XX; depois disso, nenhuma outra nação europeia poderia continuar a reter as suas possessões de ultramar. Portugal constituía a única exceção, e a estranha capacidade portuguesa de continuar uma luta, da qual todas as outras potências coloniais europeias já haviam desistido, pode ter resultado do seu atraso nacional mais do que da ditadura salazarista. Pois não foi apenas mera fraqueza ou cansaço provocados por duas guerras sangrentas numa só geração, mas também os escrúpulos morais e as apreensões políticas dos Estados nacionais plenamente desenvolvidos, que desaconselharam tanto a introdução de medidas extremas como "massacres administrativos" (A. Carthill) para derrotar a rebelião pacífica da índia, quanto a continuação do "governo sobre raças inferiores" (lorde Cromer), cada vez mais temido pelo efeito de bumerangue que poderia exercer sobre o país colonizador. Quando finalmente a França, graças à até então incólume autoridade de De Gaulle, ousou desfazer-se da Argélia, à qual antes considerava parte tão integrante do seu território quanto o Département de Ia Seine,* o mundo em sua evolução política havia atingido um ponto de onde era impossível voltar.
     Aparentemente, era dos mais válidos o caminho percorrido com tanta esperança. Mas, diante da "guerra fria" entre a União Soviética e os Estados Unidos que se seguiu à "guerra quente" contra a Alemanha nazista, é preciso considerar as últimas décadas como o período em que as duas nações mais poderosas da terra trataram de ocupar posições hegemônicas mais ou menos nas mesmas regiões em que as nações europeias haviam imperado antes. Da mesma forma, somos tentados a ver a política de détente entre a Rússia e os Estados Unidos como a consequência do surgimento de uma terceira potência mundial, a China, e não como resultado natural da destotalitarização da Rússia após a morte de Stálin. E, se os eventos futuros derem razão a estas interpretações provisórias, isso significará, em termos históricos, que estaremos de volta ao mesmo ponto em que estávamos antes, isto é, na era imperialista e naquele desastroso caminho que levou o mundo à Primeira Guerra Mundial.
     Já se disse muitas vezes que ps ingleses adquiriram o seu império num momento de descuido, em consequência de tendências automáticas, cedendo ao que parecia factível e ao que era tentador, e não como resultado de uma política deliberada. Se isso é verdade, então o caminho que leva ao inferno pode muito bem ser construído pela ausência de intenções, em lugar das proverbiais boas intenções. E os fatos objetivos que convidam ao retorno à política imperialista são realmente tão graves hoje que somos inclinados a crer que a afirmação é, pelo menos, verdadeira pela metade, apesar das boas intenções de ambos os lados — a "acomodação" norte-americana com o inviável status quo da corrupção e da incompetência, e a arenga pseudo-revolucionária da Rússia quanto a guerras de libertação nacional. O processo de criar nações em áreas atrasadas, onde a ausência de todos os pré-requisitos para a independência nacional é tão marcante quanto é óbvio o chauvisnismo violento e estéril, leva a enormes vácuos de poder, pelos quais a competição entre as superpotências cresce em proporção tanto maior quanto, uma vez desenvolvidas as armas nucleares, parece estar definitivamente afastada a confrontação direta dos meios de violência que proporcionam um recurso para "resolver" todos os conflitos. Não apenas cada conflito entre as pequenas nações subdesenvolvidas nessas vastas áreas — seja uma guerra civil no Vietnã, seja um conflito nacional no Oriente Médio — atrai imediatamente a intervenção, potencial ou real, das superpotências, mas esses mesmos conflitos, ou pelo menos o momento em que são deflagrados, parecem estar sendo manipulados ou provocados diretamente por interesses e manobras que nada têm a ver com as lutas e interesses em jogo na própria região. Nada caracteriza melhor a política de poder da era imperialista do que a transformação de objetivos de interesse nacional, localizados, limitados e, portanto, previsíveis, em busca ilimitada de poder, que ameaça devastar e varrer o mundo inteiro sem qualquer finalidade definida, sem alvo nacional e territorialmente delimitado e, portanto, sem nenhuma direção previsível. Essa volta à antiga prática surge também no nível ideológico, pois a famosa teoria de dominó, segundo a qual a política externa norte-americana se julga obrigada a fazer a guerra em determinado país em prol da integridade de outros que nem ao menos são seus vizinhos, evidentemente não passa de nova versão do "Grande Jogo", cujas regras permitiam, e até mesmo exigiam, que nações inteiras fossem vistas como simples degraus para a conquista das riquezas e para o domínio de um terceiro país que, por sua vez, se tornava mero degrau no infindável processo de expansão e de acúmulo de poder. Foi a respeito dessa reação em cadeia, inerente à política imperialista de poder e tão bem representada no nível humano pela figura do agente secreto, que Kipling disse (em Kim): "Só quando todos estiverem mortos o Grande Jogo acabará: não antes". O único motivo pelo qual essa profecia não se realizou foi o freio constitucional dos Estados-nações, ao passo que hoje, se a nossa esperança de que não venha a realizar-se no futuro baseia-se em parte também na contenção constitucional da república norte americana, ela decorre, simultaneamente, da auto coibição imposta pelo desenvolvimento tecnológico da era nuclear.
     Não pretendemos negar que o ressurgimento da política e dos métodos imperialistas ocorre em condições e circunstâncias completamente diferentes. A iniciativa da expansão ultramarina transferiu-se na direção do oeste, da Inglaterra e da Europa ocidental para a América, e a iniciativa da expansão continental, em cerrada continuidade geográfica, já não parte da Europa central e oriental, mas se localiza exclusivamente na Rússia. Foi a política imperialista, mais que qualquer outro fator, que provocou o declínio da Europa, e parecem ter-se realizado as previsões dos estadistas e historiadores de que os dois gigantes localizados nos flancos leste e oeste das nações europeias emergiriam finalmente como herdeiros do poder europeu. Hoje ninguém mais procura justificar a expansão com afirmações que a veem como "a carga do homem branco" ou como a decorrência da "consciência tribal ampliada" que pretendia unir os povos de origem étnica semelhante; em vez disso, fala-se de "compromissos" com nações aliadas ou de responsabilidade do poder ou de solidariedade com os movimentos revolucionários "de libertação nacional". A própria palavra "expansão" desapareceu do vocabulário político, que agora emprega termos como "extensão" ou "união", o que diz quase a mesma coisa. Mais importantes politicamente, os investimentos privados em terras distantes, que originalmente constituíam a motivação básica do imperialismo, estão hoje superados pela ajuda externa, econômica e militar, fornecida diretamente aos governos pelos governos. (Apenas em 1966, o governo americano despendeu 4,6 bilhões de dólares em ajuda econômica e créditos para o exterior, mais 1,3 bilhão por ano em ajuda militar na década de 1956-65, enquanto o fluxo de capital privado foi de 3,69 bilhões de dólares em 1965 e de 3,91 bilhões em 1966. [1]) Isso significa que a era do chamado imperialismo do dólar, que foi a versão especificamente norte-americana, e politicamente menos perigosa, do imperialismo anterior à Segunda Guerra Mundial, terminou definitivamente. Os investimentos privados — "as atividades de quase mil companhias norte-americanas que operam numa centena de países estrangeiros, concentradas nos setores mais modernos, mais estratégicos e de mais rápido crescimento da economia estrangeira" — criam muitos problemas políticos, mesmo que não sejam protegidos pelo poder da nação que os origina,[2] mas o auxílio externo, mesmo que seja fornecido por motivos puramente humanitários, é político por natureza, uma vez que desconhece a motivação do lucro. Bilhões de dólares têm sido gastos em desertos políticos e econômicos onde a corrupção e a incompetência fizeram-nos desaparecer antes que se pudesse dar início a algo produtivo, e esse dinheiro não é o capital "supérfluo", que não podia ser investido produtiva e lucrativamente no país de origem, mas o estranho produto da mera abundância que os países ricos podem dar-se ao luxo de perder. Em outras palavras, a motivação do lucro, cuja importância para a política imperialista foi frequentemente exagerada, mesmo no passado, agora desapareceu, e somente os países muito ricos e muito poderosos podem suportar as enormes perdas que o imperialismo acarreta.
     Provavelmente é muito cedo, e foge a estas considerações, analisar e definir com certa confiança essas tendências recentes. O que parece incomodamente claro, desde já, é a força de certos processos, aparentemente incontroláveis, que tendem a destruir todas as esperanças de evolução constitucional nos novos países e a solapar as instituições republicanas dos países mais velhos. Os exemplos são numerosos demais para permitirem uma enumeração mesmo sucinta, mas a intromissão do "governo invisível" de serviços secretos nos assuntos domésticos, nos setores culturais, educacionais e econômicos da vida, é um sinal por demais ominoso para passar desapercebido. Não há por que duvidar da declaração de Allan W. Dulles de que o serviço de espionagem dos Estados Unidos desde 1947 vem desfrutando de "uma posição mais influente em nosso governo do que a espionagem desfruta em qualquer outro governo do mundo",[3] nem há motivo para acreditar que essa influência tenha diminuído desde que ele fez essa declaração, em 1958. O perigo mortal do "governo invisível" para as instituições do "governo visível" já foi apontado muitas vezes; o que talvez seja menos conhecido é a íntima ligação que tradicionalmente existiu entre a política imperialista e o domínio por meio do "governo invisível" e dos agentes secretos. É um erro pensar que a criação de uma rede de serviços secretos nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial tenha sido a resposta a uma ameaça direta à sua sobrevivência nacional pela rede de espionagem da Rússia soviética; a guerra havia guindado os Estados Unidos à posição de maior potência mundial, e esse poder mundial, e não a existência nacional, é que era desafiado pelo poder revolucionário do comunismo dirigido por Moscou.[4]
     Quaisquer que tenham sido as causas da ascensão dos Estados Unidos à posição de potência mundial, certamente não foi a adoção deliberada de uma política estrangeira que a visasse, nem qualquer pretensão de domínio global. E o mesmo provavelmente se aplica aos passos recentes e ainda inseguros que esta nação tem dado na direção da política de poder imperialista, para a qual a sua forma de governo é menos adequada que a de qualquer outro país. O enorme abismo entre os países ocidentais e o resto do mundo, não só — e nem principalmente — em riqueza, mas em educação, know-how técnico e competência geral, constitui o grave problema das relações internacionais desde o começo da implantação da genuína política de coexistência. E esse abismo, longe de diminuir nas últimas décadas sob a pressão dos sistemas de comunicação em rápido desenvolvimento e o consequente encolhimento das distâncias da terra, tem constantemente aumentado e está agora assumindo proporções verdadeiramente alarmantes. "O crescimento populacional nos países menos desenvolvidos foi duas vezes maior que o dos países mais avançados";[5] e, embora esse fator os obrigue a se voltarem para os que dispõem de alimentos excedentes e de conhecimentos técnicos e políticos, ele inutiliza toda a ajuda.
     Obviamente, quanto maior a população de um país, menos ajuda será recebida per capita, e a verdade é que, após duas décadas de maciços programas de ajuda, todos aqueles países que não tinham a capacidade de se ajudarem a si mesmos — como fez o Japão — estão hoje mais pobres e mais distantes da estabilidade econômica ou política do que nunca. Isso aumenta assustadoramente as possibilidades do imperialismo pela simples razão de que os números, em si, nunca tiveram tão pouca importância; o domínio do branco na África do Sul, onde a minoria tirânica é superada em números numa proporção de um para dez nativos, provavelmente nunca foi tão seguro como hoje. E é essa situação objetiva que transforma toda ajuda externa em instrumento de domínio e coloca todos os países que necessitam desse auxílio para sua sobrevivência física em posição cada vez mais difícil, diante da alternativa entre a aceitação de alguma forma de "governo de raças superiores" e a probabilidade de afundar rapidamente na ruína da anarquia.
     Este livro trata apenas do imperialismo colonial estritamente europeu, que terminou com a liquidação do domínio britânico na índia. Conta a história da desintegração do Estado nacional, que continha quase todos os ingredientes necessários para gerar o subsequente surgimento dos movimentos e governos totalitários. Antes da era imperialista não existia o fenômeno de política mundial, e sem ele a pretensão totalitária de governo global não teria sentido. Durante esse período, contudo, o sistema de Estados nacionais revelou-se incapaz de elaborar novas normas para o tratamento dos assuntos estrangeiros que se haviam tornado assuntos globais e de impor a sua pax romana ao resto do mundo. Sua estreiteza ideológica e miopia política conduziram ao desastre do totalitarismo, cujos horrores sem precedentes anularam a gravidade dos eventos ominosos e a mentalidade ainda mais ominosa do período precedente. Assim, os estudiosos do período totalitário têm-se concentrado quase exclusivamente na Alemanha de Hitler e na Rússia de Stálin, esquecendo os seus predecessores menos nocivos, enquanto o domínio imperialista, a não ser para fins de insulto, parece semi esquecido, o que é deplorável, principalmente porque é mais do que óbvia a sua relevância para todos os acontecimentos contemporâneos. Assim, a controvérsia sobre a guerra não declarada dos Estados Unidos contra o Vietnã tem sido conduzida, de ambos os lados, em termos de comparações com exemplos tomados aos anos 30, época em que o domínio totalitário era, realmente, o único perigo claro e presente — demasiado presente —; mas as ameaças e palavras têm semelhança muito mais agourenta com os atos e justificações verbais que precederam a eclosão da Primeira Grande Guerra, quando uma centelha em região periférica e de interesse secundário para todos os interessados serviu de estopim a uma conflagração de dimensões mundiais.
     Acentuar a infeliz relevância desse período semi esquecido para os eventos contemporâneos não significa, naturalmente, nem que a sorte esteja lançada e que estejamos entrando em novo período de política imperialista, nem que o imperialismo deva sempre terminar no desastre do totalitarismo. Por mais que possamos aprender com o passado, isso não nos torna capazes de conhecer o futuro.
 
Hannah Arendt, Julho de 1967.

Parte II Imperialismo (Prefácio)
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* Denominação administrativa, oficial, do município de Paris. (N. E.)
[1] Esses números são retirados de Leo Model, "The politics of private foreign investment", e Kenneth M. Kauffman e Helena Stalson, "U. S. assistance to less developed countries, 1956-65", respectivamente, ambos em Foreign Affairs, julho de 1967.
[2] O artigo de L. Model citado acima (p. 641) fornece uma análise muito valiosa e pertinente desses problemas.
[3]  Foi o que disse Allan Dulles num discurso na Universidade Yale em 1957, segundo David Wise e Thomas B. Ioss, The invisibile government, Nova York, 1946, p. 2.
[4] Dizia Allan Dulles que o governo tinha de combater "fogo com fogo" e, com a desconcertante franqueza que distinguia o ex-chefe da CIA dos seus colegas de outros países, passava a explicar o que isso queria dizer. Pelo visto, a CIA tinha de seguir o modelo do Serviço de Segurança do Estado Soviético, que é "mais que uma organização de polícia secreta, mais que uma organização de espionagem e contra-espionagem. É um instrumento para a subversão, manipulação e violência, para a intervenção secreta nos assuntos de outros países". (O grifo é do autor.) Ver Allan W. Dulles, Thecraftofintelligence, Nova York, 1963, p. 155.
[5] Ver o artigo de Orville L. Freeman, "Malthus, Marx and the North American bread-basket", em Foreign Affairs, julho de 1967.

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