quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (5.1 - A"A Nação de Minorias" e os Povos sem Estado)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

5. O Declínio do Estado-Nação e o Fim dos Direitos do Homem
     5.1 - A"A Nação de Minorias" e os Povos sem Estado
          As modernas condições do poder, que, exceto para os Estados gigantes, transformam a soberania nacional em pilhéria, junto com o advento do imperialismo e dos movimentos de unificação étnica, foram fatores externos que solaparam a estabilidade do sistema europeu de Estados-nações. Nenhum deles adviera diretamente da tradição e das instituições dos próprios Estados-nações. Sua desintegração interna só começou após a Primeira Guerra Mundial, em consequência do surgimento das minorias criadas pelos Tratados de Paz, e do movimento crescente de refugiados, resultado de revoluções.
     A inadequação dos Tratados de Paz tem sido frequentemente explicada pelo fato de que os seus autores pertenciam a uma geração formada pelas experiências da era anterior à guerra, e jamais chegaram a compreender inteiramente todo o impacto da guerra cujo armistício tiveram de assinar. A melhor prova disso é a tentativa de resolver o problema da Europa oriental e meridional criando Estados-nações e introduzindo tratados de minorias. Se já se podia colocar em dúvida a prudência de estender uma forma de governo que, mesmo nos países de antiga e estabelecida tradição nacional, não sabia como resolver os novos problemas da política mundial, era ainda mais duvidoso que ela pudesse ser transplantada para uma área onde sequer existiam as condições básicas para o surgimento de Estados-nações, ou seja, a homogeneidade da população e a fixação ao solo. Mas pensar que fosse possível criar Estados-nações pelos métodos dos Tratados de Paz era simplesmente absurdo. De fato, "basta um olhar ao mapa etnográfico da Europa para mostrar que o princípio do Estado-nação não pode ser introduzido na Europa oriental".[3] Os Tratados aglutinaram vários povos num só Estado, outorgaram a alguns o status de "povos estatais" e lhes confiaram o governo, supuseram silenciosamente que os outros povos nacionalmente compactos (como os eslovacos na Tchecoslováquia ou os croatas e eslovenos na Iugoslávia) chegassem a ser parceiros no governo, o que naturalmente não aconteceu,[4] e, com igual arbitrariedade, criaram com os povos que sobraram um terceiro grupo de nacionalidades chamadas minorias, acrescentando assim aos muitos encargos dos novos Estados o problema de observar regulamentos especiais, impostos de fora, para uma parte de sua população.[5] Como resultado, os povos não agraciados com Estados, fossem "minorias nacionais" ou "nacionalidades", consideraram os Tratados um jogo arbitrário que dava poder a uns, colocando em servidão os outros. Os Estados recém-criados, por sua vez, que haviam recebido a independência com a promessa de plena soberania nacional, acatada em igualdade de condições com as nações ocidentais, olhavam os Tratados das Minorias como óbvia quebra de promessa e, como prova de discriminação, uma vez que somente os novos Estados, e nem mesmo a Alemanha derrotada [com exceção do território da Silésia oriental, dividida em 1920 com a Polônia em decorrência de plebiscito], ficavam subordinados a eles.
     O desconcertante vácuo de poder deixado pela dissolução da Monarquia Dual e pela libertação da Polônia e dos países bálticos do despotismo da Rússia não foi o único fator que levou os estadistas a essa desastrosa experiência. Muito mais importante era a impossibilidade de continuar ignorando mais de 100 milhões de europeus que nunca haviam atingido o estágio de liberdade nacional e de autodeterminação a que já aspiravam até os povos coloniais, mas que lhes era negada [a esses europeus] pela manutenção de tradições políticas. Na Europa ocidental e central, o papel do proletariado, ou seja, do grupo oprimido e historicamente sofredor, cuja emancipação era uma questão de vida ou de morte para todo o sistema social europeu, era representado no Leste pelos "povos sem história".[6] Os movimentos de libertação nacional do Leste europeu eram revolucionários no mesmo sentido em que os movimentos trabalhistas do Oeste: ambos refletiam os anseios das camadas "não-históricas" da população europeia, e ambos lutavam por reconhecimento e participação dos grupos marginais nos negócios públicos. Como o objetivo de todos era preservar o status quo europeu, a concessão do direito à autodeterminação nacional e à soberania a todos os povos europeus parecia realmente inevitável: a alternativa seria condená-los impiedosamente à posição de povos coloniais (coisa que os movimentos de unificação étnica sempre propuseram), introduzindo assim métodos coloniais na convivência europeia.[7]
     Na verdade, porém, o status quo europeu não podia ser mantido. Só após a queda dos últimos remanescentes da autocracia europeia ficou claro que a Europa havia sido governada por um sistema que nunca levou em conta as necessidades de pelo menos 25% da sua população. Esse mal, contudo, não foi sanado pela criação dos Estados sucessores dos impérios desmembrados, porque cerca de 30% dos seus quase 100 milhões de habitantes eram oficialmente reconhecidos como exceções a serem especialmente protegidas por tratados de minorias. Além disso, esse algarismo de modo nenhum conta toda a história; apenas indica a diferença entre povos com governo próprio e aqueles que supostamente eram pequenos ou dispersos demais para obterem o direito de atingir o status pleno de nação. Assim mesmo, os Tratados das Minorias protegiam apenas nacionalidades das quais existia um número considerável em pelo menos dois Estados sucessórios, mas não mencionaram, deixando-as à margem de direito, todas as outras nacionalidades sem governo próprio, concentradas num só país, de sorte que, em alguns desses Estados, os povos nacionalmente frustrados constituíam 50% da população total.[8] O pior aspecto dessa situação não era o fato de que se tornava natural às nacionalidades serem desleais com o governo que lhes fora imposto, e aos governos oprimirem suas nacionalidades do modo mais eficiente possível, e sim que a população nacionalmente frustrada estava firmemente convencida — como, aliás, todo o mundo — de que a verdadeira liberdade, a verdadeira emancipação e a verdadeira soberania popular só podiam ser alcançadas através da completa emancipação nacional, e que os povos privados do seu próprio governo nacional ficariam sem a possibilidade de usufruir dos direitos humanos. Essa convicção, baseada no conceito da Revolução Francesa que conjugou os Direitos do Homem com a soberania nacional, era reforçada pelos próprios Tratados das Minorias». Os quais não confiavam aos respectivos governos a proteção das diferentes nacionalidades do país, mas entregavam à Liga das Nações a salvaguarda dos direitos daqueles que, por motivos de negociações territoriais, haviam ficado sem Estados nacionais próprios, ou deles separados, quando existiam.
     Mas as minorias não confiavam na Liga das Nações mais do que haviam confiado ou confiariam nos povos estatais. A Liga, afinal, era composta de estadistas nacionais, cujas simpatias obviamente estavam com os governos e principalmente com os governos novos, que sofriam oposição de cerca de 25% a 50% dos seus habitantes. Os criadores dos Tratados das Minorias, portanto, logo tiveram de formular as suas reais intenções e dar uma interpretação mais precisa dos deveres das minorias em relação aos novos Estados;[9] verificou-se, então, que os Tratados haviam sido concebidos meramente como método indolor e supostamente humano de assimilação, e isso enfureceu as minorias.[10] Mas não se podia esperar outra coisa de um sistema de Estados-nações soberanos; se os Tratados das Minorias tivessem sido concebidos como algo mais do que mero remédio temporário para uma situação caótica, sua restrição implícita à soberania nacional teria afetado a própria soberania nacional das potências europeias mais antigas. Os representantes das grandes nações sabiam demasiado bem que as minorias existentes num Estado-nação deviam, mais cedo ou mais tarde, ser assimiladas ou liquidadas. E não importa se foram movidos por considerações humanitárias de proteger contra a perseguição as nacionalidades minoritárias, ou se as considerações políticas os levaram a opor-se a tratados bilaterais entre os Estados onde havia minorias e os países nacionais dessas minorias (afinal, os alemães residentes fora da Alemanha constituíam a mais forte de todas as minorias oficialmente reconhecidas, tanto em número como em posição econômica); o fato é que não quiseram nem puderam revogar as leis às quais os Estados-nações deviam a sua existência.[11]
     Nem a Liga das Nações nem os Tratados das Minorias teriam evitado que os Estados recém estabelecidos assimilassem as suas minorias mais ou menos à força. O fator mais poderoso contra a assimilação era a fraqueza numérica e cultural dos chamados povos estatais. A minoria russa ou judaica da Polônia não considerava a cultura polonesa superior à sua, e nem uma nem outra se impressionava muito com o fato de os poloneses constituírem cerca de 60% da população da Polônia.
     Amarguradas, e ignorando completamente a Liga das Nações, as nacionalidades minoritárias logo decidiram tratar do assunto por conta própria. Agruparam-se num congresso de minorias que, já pelo nome, contradizia a própria ideia geradora dos tratados da Liga, pois se denominou "Congresso dos Grupos Nacionais Organizados nos Estados Europeus", anulando assim o esforço dos estadistas despendido durante as negociações de paz para evitar a expressão "Nacional".[12] Em consequência, todas as nacionalidades — mesmo oficialmente iguais ao povo estatal —, e não apenas as "minorias", aderiram ao Congresso, e o número de "nações de minorias" cresceu de modo tão considerável que, somadas, as nacionalidades minoritárias dos Estados sucessórios superavam em número os povos estatais. Mas também sob outro aspecto o "Congresso dos Grupos Nacionais" assestou um golpe decisivo nos tratados da Liga. Um dos mais desconcertantes aspectos do problema das nacionalidades da Europa oriental (mais desconcertante que o pequeno tamanho e o grande número dos povos envolvidos, ou o "cinturão de populações mistas"[13]) era o caráter inter-regional das nacionalidades que, quando colocavam seus interesses nacionais acima dos interesses de seus próprios governos, constituíam óbvio perigo à segurança de seus países.[14] Os tratados da Liga haviam tentado ignorar o caráter interestatal das minorias, assinando com cada país um tratado separado, bilateral e não multilateral, como se não existissem minorias judaica ou germânica fora das fronteiras dos respectivos Estados. O "Congresso dos Grupos Nacionais" não apenas colocou de lado o princípio territorial da Liga; ele foi naturalmente dominado pelas duas nacionalidades que, representadas em todos os Estados sucessórios dos antigos impérios, estavam em posição de fazer sentir o seu peso em toda a Europa oriental e meridional. Esses dois grupos foram os alemães e os judeus. As minorias alemãs da Romênia e da Tchecoslováquia votavam naturalmente junto com as minorias alemãs da Polônia e da Hungria, da Letônia ou Lituânia, e ninguém podia esperar que os judeus poloneses, por exemplo, permanecessem indiferentes às práticas discriminatórias antijudaicas do governo romeno. Em outras palavras, a verdadeira base da associação no Congresso eram os interesses nacionais de cada minoria, e não o interesse comum de todas as minorias.[15] A harmoniosa relação entre os judeus e os alemães — até o advento de Hitler — mantinha o congresso coeso. Mas, quando em 1933 a delegação judaica exigiu um protesto contra o tratamento dos judeus no Terceiro Reich (moção que, a rigor, não tinha o direito de fazer, pois os judeus alemães não eram considerados e não constituíam uma minoria), [*] os alemães nacionalmente minoritários anunciaram sua solidariedade com a Alemanha, já nazista, e conseguiram o apoio da maioria das delegações dos grupos minoritários, que abraçaram o antissemitismo, florescente em todos os Estados sucessórios. O Congresso, abandonado para sempre pela delegação judaica, mergulhou desde então em completa insignificância.
     A verdadeira importância dos Tratados das Minorias não está na sua aplicação prática, mas no fato de que eram garantidos por uma entidade internacional, a Liga das Nações. Minorias haviam existido antes,[16] mas a minoria como instituição permanente, o reconhecimento de que milhões de pessoas viviam fora da proteção legal normal e normativa, necessitando de uma garantia adicional dos seus direitos elementares por parte de uma entidade externa, e a admissão de que esse estado de coisas não era temporário, mas que os Tratados eram necessários para criar um modus vivendi duradouro — tudo isso constituía novidade na história europeia, pelo menos em tal escala. Os Tratados das Minorias diziam em linguagem clara aquilo que até então era apenas implícito no sistema operante dos Estados-nações, isto é, que somente os "nacionais" podiam ser cidadãos, somente as pessoas da mesma origem nacional podiam gozar de toda a proteção das instituições legais, que os indivíduos de nacionalidade diferente precisavam de alguma lei de exceção até que, ou a não ser que, estivessem completamente assimilados e divorciados de sua origem. Os discursos interpretativos sobre os tratados da Liga das Nações, pronunciados por estadistas de países sem obrigações com as minorias, eram ainda mais claros: aceitavam como natural que a lei de um país não pudesse ser responsável por pessoas que insistiam numa nacionalidade diferente.[17] Confessavam assim — e logo tiveram oportunidade de demonstrá-lo na prática, com o surgimento dos povos sem Estado — que havia sido consumada a transformação do Estado de instrumento da lei em instrumento da nação; a nação havia conquistado o Estado, e o interesse nacional chegou a ter prioridade sobre a lei muito antes da afirmação de Hitler de que "o direito é aquilo que é bom para o povo alemão". Mais uma vez, a linguagem da ralé era apenas a linguagem da opinião pública, expurgada da hipocrisia e do comedimento.
     Certamente, o perigo desse desfecho já era inerente à estrutura do Estado-nação. Mas, como a sua criação coincidia com a de governos constitucionais, os Estados-nações sempre haviam representado o domínio da lei, e nele se baseavam, em contraste com o domínio da burocracia administrativa e do despotismo — ambos arbitrários. De modo que, ao se romper o precário equilíbrio entre a nação e o Estado, entre o interesse nacional e as instituições legais, ocorreu com espantosa rapidez a desintegração dessa forma de governo e de organização espontânea de povos. E a desintegração, por mais curioso que pareça, começou precisamente no momento em que o direito à autodeterminação era reconhecido em toda a Europa, e quando a convicção fundamental da supremacia da nação sobre todas as instituições legais e "abstratas" do Estado tornava-se universalmente aceita.
     Por ocasião dos Tratados das Minorias, poder-se-ia dizer a seu favor — e de fato se disse, quase como desculpa — que as nações mais antigas gozavam de constituições que, implícita ou explicitamente (como no caso da França, a nationpar excellence), se fundamentavam nos Direitos do Homem; que, mesmo se existisse outras nacionalidades em seu território, não precisariam de leis adicionais; e que somente nos Estados criados como sucessórios aos impérios desintegrados tornava-se necessária a excepcional imposição temporária dos direitos humanos.[18] Essa ilusão acabou ao surgirem os povos sem Estado.
     Na realidade, as minorias eram povos sem Estado apenas parcialmente; de jure, pertenciam a algum corpo político, embora necessitassem de proteção adicional sob forma de tratados e garantias especiais; certos direitos secundários, tais como o uso do seu próprio idioma e a preservação da sua própria cultura, estavam ameaçados e só relutantemente eram protegidos por uma entidade estatal externa, habitada em sua maioria pela mesma etnia (nação), cuja parte constituía uma minoria num outro Estado, mas os direitos elementares, como o de residir, viver e trabalhar, sempre permaneciam intactos. Os arquitetos dos Tratados das Minorias não previram a possibilidade de transferências maciças de população, nem o problema de pessoas tornadas "indeportáveis" por falta de um país que as quisesse acolher. As minorias podiam ser olhadas ainda como fenômeno excepcional, peculiar a certos territórios que diferiam da "norma". Era um argumento sempre tentador, pois deixava intacto o próprio sistema; e, de certa forma, sobreviveu à Segunda Guerra Mundial, cujos pacificadores, convencidos da impraticabilidade dos tratados de minorias, puseram-se a "repatriar" o maior número possível de nacionalidades, a fim de desembaralhar o "cinturão de populações mistas".[19] Essa tentativa de repatriação em massa não resultou diretamente das desastrosas experiências com os Tratados das Minorias; representava, antes, a esperança de que tal providência resolvesse finalmente o problema dos povos sem Estado, que, nas décadas anteriores, assumira proporções cada vez mais agudas e para o qual simplesmente não existia método internacionalmente reconhecido e aceito.
     Muito mais persistentes na realidade e muito mais profundas em suas consequências têm sido a condição de apátrida, que é o mais recente fenômeno de massas da história contemporânea, e a existência de um novo grupo humano, em contínuo crescimento, constituído de pessoas sem Estado, grupo sintomático do mundo após a Segunda Guerra Mundial.[20] A culpa da sua existência não pode ser atribuída a um único fator, mas, se considerarmos a diversidade grupai dos apátridas, parece que cada evento político, desde o fim da Primeira Guerra Mundial, inevitavelmente acrescentou uma nova categoria aos que já viviam fora do âmbito da lei, sem que nenhuma categoria, por mais que se houvesse alterado a constelação original, jamais pudesse ser devolvida à normalidade.[21]
     Entre eles, viam-se ainda os mais antigos entre os apátridas, os Heimat-losen [apátridas], produzidos pelos Tratados de Paz de 1919, pela dissolução da Áustria-Hungria e pelo estabelecimento dos Estados bálticos. Em certos casos foi impossível determinar a sua verdadeira origem, especialmente se, ao terminar a guerra, não estavam residindo em sua cidade natal;[22] outras vezes, o seu lugar de origem mudara de mãos tantas vezes no burburinho de disputas do pós-guerra que a nacionalidade de seus habitantes alterava-se de ano para ano (como acontecia com Vilna, que um funcionário francês uma vez chamou de la capitale des apatrides);[*] e, mais frequentemente do que se imagina, certas pessoas se refugiaram na situação de apátridas após a Primeira Guerra Mundial para permanecer onde estavam, e evitar a deportação para uma "pátria" onde seriam estranhos (como no caso de muitos judeus poloneses e romenos residentes na França e na Alemanha, que, como apátridas, tinham ali mais direitos do que teriam como cidadãos nos países em que nasceram, onde eram excluídos do convívio social por serem judeus. Nessas tentativas foram misericordiosamente ajudados pela atitude antissemita dos seus respectivos consulados).
     Desprovido de importância, aparentemente apenas uma anomalia legal, o apatride recebeu atenção e consideração tardias quando, após a Segunda Guerra Mundial, sua posição legal foi aplicada também aos refugiados que, expulsos de seus países pela revolução social, eram desnacionalizados pelos governos vitoriosos. A esse grupo pertencem milhões de russos e de alemães, centenas de milhares de armênios, romenos, húngaros e espanhóis — para citar apenas as categorias mais importantes. A conduta desses governos pode hoje parecer apenas consequência natural da guerra; mas, na época, as desnacionalizações em massa constituíam fenômeno inteiramente novo e imprevisto. Pressupunham uma estrutura estatal que, se não era ainda inteiramente totalitária, já demonstrava a incapacidade de tolerar qualquer oposição, preferindo perder os seus cidadãos a abrigá-los com opiniões diferentes da vigente. Revelavam, além disso, que não era necessária uma guerra para que as soberanias de países vizinhos entrassem em conflito, e que este podia se desenvolver em termos ideológicos não só no caso extremo da guerra, mas também durante a paz. Tornava-se claro que a completa soberania nacional só era possível enquanto existisse uma convivência supranacional de nações europeias, porque só o espírito de solidariedade podia impedir o exercício por algum governo de todo o poder potencialmente soberano. Em teoria, a lei internacional admitia que em questões de "emigração, naturalização, nacionalidade e expulsão" a soberania é mais absoluta.[23] Na verdade, as considerações práticas e o reconhecimento tácito de interesses recíprocos restringiram a soberania nacional mesmo nessa área, até o surgimento dos regimes totalitários. Somos quase tentados a medir o grau de infecção totalitária de um governo pelo grau em que usa o seu soberano direito de desnacionalização (e, se o fizéssemos, seria interessante verificar que a Itália de Mussolini relutou muito em tratar os seus refugiados dessa forma[24]). Mas, ao mesmo tempo, devemos lembrar que mal restava um país no continente europeu que não houvesse aprovado, entre as duas guerras, alguma legislação formulada de modo a permitir a rejeição de elevado número de seus habitantes a qualquer momento oportuno,[25] mesmo que este direito não chegasse a ser usado.
     Nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosamente irônico como a discrepância entre os esforços de idealistas bem-intencionados, que persistiam teimosamente em considerar "inalienáveis" os direitos desfrutados pelos cidadãos dos países civilizados, e a situação de seres humanos sem direito algum. Essa situação deteriorou-se, até que o campo de internamente — que, antes da Segunda Guerra Mundial, era exceção e não regra para os grupos apátridas — tornou-se uma solução de rotina para o problema domiciliar dos "deslocados de guerra".
     Até a terminologia aplicada ao apátrida deteriorou-se. A expressão "povos sem Estado" pelo menos reconhecia o fato de que essas pessoas haviam perdido a proteção do seu governo e tinham necessidade de acordos internacionais que salvaguardassem a sua condição legal. A expressão displaced persons [pessoas deslocadas] foi inventada durante a guerra com a finalidade única de liquidar o problema dos apátridas de uma vez por todas, por meio do simplório expediente de ignorar a sua existência. O não-reconhecimento de que uma pessoa pudesse ser "sem Estado" levava as autoridades, quaisquer que fossem, à tentativa de repatriá-la, isto é, de deportá-la para o seu país origem, mesmo que este se recusasse a reconhecer o repatriado em perspectiva como cidadão ou, pelo contrário, desejasse o seu retorno apenas para puni-lo. Como os países não-totalitários, a despeito do clima de guerra, geralmente têm evitado repatriações em massa, o número de pessoas sem Estado era substancialmente elevado — ainda doze anos após o fim da guerra. A decisão dos estadistas de resolver o problema do apátrida ignorando-o é revelada ainda pela falta de quaisquer estatísticas dignas de confiança sobre o assunto. Contudo, sabe-se pelo menos que, enquanto existia 1 milhão de apátridas "reconhecidos", havia mais de 10 milhões de apátridas de facto, embora ignorados. O pior é que o número de pessoas que são apátridas em potencial continua a aumentar. Antes da última guerra, somente os países totalitários ou as ditaduras semitotalitárias recorriam à arma da desnaturalização contra pessoas que eram cidadãos por nascimento; mas chegou-se ao ponto em que até as democracias livres, como, por exemplo, os Estados Unidos, pensaram seriamente em privar da cidadania os americanos natos que fossem comunistas. O aspecto sinistro dessas medidas é que são estudadas com toda a inocência. No entanto, para que se compreendam as verdadeiras implicações da condição do apátrida, basta lembrar o extremo zelo dos nazistas, que insistiam em que todos os judeus de nacionalidade não-alemã "deviam ser privados de sua cidadania antes da deportação ou, ao mais tardar, no dia em que fossem deportados"[25a] (para os judeus alemães, esse decreto não era necessário, porque existia uma lei no Terceiro Reich segundo a qual todo judeu que deixasse o território — inclusive se fosse deportado — perdia automaticamente a cidadania).
     O primeiro e grave dano causado aos Estados-nações pela chegada de centenas de milhares de apátridas foi a abolição tácita do direito de asilo, antes símbolo dos Direitos do Homem na esfera das relações internacionais. Sua longa e sagrada história data do começo da vida política organizada. Desde os tempos antigos, com esse direito protegeu-se o refugiado — e a área que o acolhia — contra situações que o forçassem a colocar-se fora da lei por circunstâncias alheias ao seu controle. Assim, o asilo era o único remanescente moderno do princípio de que quid est in território est de território, pois em todos os outros casos o Estado moderno tendia a proteger os seus cidadãos além de suas fronteiras para que, graças a tratados recíprocos, permanecessem sujeitos às leis do seu país, mesmo morando fora dele. Mas, embora o direito de asilo continuasse a funcionar num mundo organizado em Estados-nações e em certos casos, tenha até sobrevivido às duas guerras mundiais, tornou-se paulatinamente anacrônico, entrando até em conflito com os direitos internacionais do Estado. Assim, não se encontra esse direito na lei escrita, em nenhuma constituição ou acordo internacional, e o Pacto da Liga das Nações nem ao menos o menciona.[26] A esse respeito, tem o mesmo destino da Declaração dos Direitos do Homem, que também nunca em lugar algum foi transformada em lei, levando uma existência mais ou menos irreal, como recurso em certos casos excepcionais em que as instituições legais normais não eram suficientes.[27]
     O segundo choque que o mundo europeu sofreu com o surgimento dos refugiados[28] decorria da dupla constatação de que era impossível desfazer-se deles e era impossível transformá-los em cidadãos do país de refúgio, principalmente porque todos concordavam em que só havia duas maneiras de resolver o problema: repatriação ou naturalização.[29] Quando o exemplo das primeiras ondas de refugiados armênios e russos demonstrou que nem uma coisa nem outra levavam a resultados tangíveis, os países de refúgio simplesmente se recusaram a reconhecer a condição de apátrida nos que vieram depois, tornando assim ainda mais intolerável a situação dos refugiados.[30] Do ponto de vista dos governos interessados, era bastante compreensível que constantemente lembrassem à Liga das Nações "que [o seu] trabalho sobre os refugiados devia ser concluído com a maior rapidez possível";[31] tinham muita razão de recear que os expulsos da velha trindade Estado-povo-território constituíssem apenas o começo de um movimento crescente, primeira gota de um dilúvio que se prenunciava cada vez maior. Era óbvio, e até mesmo a Conferência de Evian o reconheceu em 1938, que todos os judeus alemães e austríacos eram apátridas em potencial; e era natural que os países com numerosos grupos minoritários se sentissem encorajados pelo exemplo da Alemanha a livrar-se de algumas dessas populações minoritárias.[32] Dentre as minorias, judeus e armênios corriam o risco maior, e logo exibiram a mais alta proporção de apátridas; mas também demonstraram que os tratados de minorias não eram necessariamente uma proteção, podendo servir de instrumento de escolha de certos grupos para futura expulsão coletiva.
     Quase tão assustador quanto esses novos perigos, que provinham do antigo centro nevrálgico da Europa, era o tipo inteiramente novo de conduta de todos os cidadãos europeus nas lutas "ideológicas". Não apenas se expulsavam pessoas de um país e se lhes roubava a cidadania, mas crescia o número de pessoas que, em todos os países, inclusive nas democracias ocidentais, se apresentavam para lutar em guerras civis estrangeiras (o que, até então, só pertencia ao campo de ação de poucos idealistas ou aventureiros), mesmo que isso significasse a sua separação das comunidades nacionais a que pertenciam. Essa foi a lição da Guerra Civil Espanhola e uma das razões pelas quais os governos se assustaram tanto com a Brigada Internacional. O fenômeno não teria sido tão negativo se apenas significasse que os homens já não se apegavam tanto a nacionalidade e estavam dispostos a serem eventualmente assimilados por outra comunidade nacional. Mas este não era absolutamente o caso. As pessoas sem Estado haviam demonstrado surpreendente teimosia em reter a sua nacionalidade; os refugiados pertencentes a minorias estrangeiras evitavam a sua diluição e nem sequer se agrupavam às outras, como as minorias haviam feito temporariamente, para defender interesses comuns.[33] A Brigada Internacional dividia-se em batalhões nacionais, nos quais os alemães pensavam estar lutando contra Hitler e os italianos contra Mussolini, da mesma forma que, apenas alguns anos depois, na Resistência, os refugiados espanhóis julgavam estar lutando contra Franco, quando ajudavam os franceses contra o governo colaboracionista de Vichy. O que os governos europeus temiam tanto nesse processo era que os povos apátridas já não pudessem mais ser declarados de nacionalidade dúbia ou duvidosa (de nationalité indeterminéé). Mesmo que tivessem renunciado à sua cidadania, deixando de lado qualquer conexão ou lealdade em relação ao país de origem, e sem se identificarem com uma nacionalidade legalmente oriunda do governo reconhecido, retinham um forte apego à sua nacionalidade de fato. Já não era apenas o Leste europeu que possuía grupos nacionais minoritários, sem raízes no território do Estado e sem qualquer lealdade a esse Estado. Agora, sob a forma de refugiados e apátridas, esses grupos se haviam infiltrado também nos países da Europa ocidental.
     A dificuldade surgiu em consequência de fracassos da aplicação dos dois remédios reconhecidos como válidos: a repatriação e a naturalização. As medidas de repatriação falharam, pois nenhum país aceitou admitir aquelas pessoas. E falharam não porque os apátridas se recusassem a regressar à pátria que rejeitavam (como pode parecer hoje, quando a Rússia soviética reclama seus ex-cidadãos e os países democráticos têm de protegê-los contra uma repatriação que eles não desejam), e não em virtude de sentimentos humanitários por parte dos países abarrotados de refugiados, mas sim porque nem o país de origem nem qualquer outro concordavam em recebê-los. Pode parecer que essa inde portabilidade de uma pessoa sem Estado impedisse um governo de expulsá-la; mas, como o homem sem Estado — um fora-da-lei por definição — era uma "anomalia para a qual não existia posição apropriada na estrutura da lei geral",[34] ficava completamente à mercê da polícia, que, por sua vez, não hesitava muito em cometer atos ilegais para diminuir a carga de indésirables no país.[35] Em outras palavras, o Estado, insistindo em seu soberano direito de expulsão, era forçado, pela natureza ilegal da condição de apátrida, a cometer atos confessadamente ilegais.[36] Os apátridas assim expulsos eram contrabandeados para os países vizinhos, com o resultado de que esses últimos retribuíam do mesmo modo. A solução ideal da repatriação — contrabandear o refugiado de volta ao seu país de origem — só teve sucesso em poucos casos, em parte porque uma polícia não-totalitária ainda era refreada por certas considerações éticas rudimentares, e em parte porque todo esse tráfico só podia realizar-se entre países vizinhos. Em consequência desse contrabando eclodiam conflitos entre polícias fronteiriças, que não contribuíam exatamente para melhorar as relações internacionais, e cresciam as sentenças de prisão para os apátridas que, com auxílio da polícia de um país, haviam entrado "ilegalmente" em outro.
     Todas as tentativas das conferências internacionais no sentido de estabelecer alguma condição legal para os apátridas falharam, porque nenhum acordo poderia jamais substituir o território para o qual um estrangeiro, dentro da estrutura da lei existente, poderia ser deportado. Enquanto a discussão do problema do refugiado girava em torno da questão de como podia o refugiado tornar-se deportável novamente, o campo de internamente tornava-se único substituto prático de uma pátria. De fato, desde os anos 30 esse era o único território que o mundo tinha a oferecer aos apátridas.[37]
     Por outro lado, a naturalização também resultou em fracasso. Todo o sistema de naturalização dos países europeus desmoronou pelo mesmo motivo que levou ao abandono o direito de asilo, quando teve de defrontar-se com os povos sem Estado. Fundamentalmente, a naturalização era um apêndice à legislação do Estado-nação que levava em conta tão-somente os "nacionais", isto é, as pessoas nascidas em seu território e cidadãs por nascimento. A naturalização nos países europeus previa casos excepcionais, para indivíduos a quem as circunstâncias haviam levado a um território estrangeiro. O processo falhou, porém, quando foi preciso atender a pedidos de naturalização em massa;[38] mesmo do ponto de vista meramente administrativo, nenhum serviço público europeu estava em condições de lidar com o problema. Em lugar de naturalizar pelo menos parte dos recém-chegados, os países começaram a cancelar naturalizações concedidas no passado, em parte devido ao pânico geral, em parte porque a chegada de grandes massas realmente alterava a posição sempre precária dos cidadãos naturalizados da mesma origem.[39] O cancelamento de naturalizações ou a introdução de novas leis que obviamente abriam o caminho para a desnaturalização em massa[40] destruíram a pouca confiança que os refugiados ainda pudessem ter na possibilidade de se ajustarem a uma vida normal; se a assimilação a um novo país havia, no passado, parecido um tanto vergonhosa e desleal, agora era simplesmente ridícula. A diferença entre um cidadão naturalizado e um residente apátrida não era suficientemente grande para justificar o esforço de se naturalizar, pois o primeiro era frequentemente privado de direitos civis e ameaçado a qualquer momento com o destino do segundo. As pessoas naturalizadas eram, em geral, equiparadas aos estrangeiros comuns, e, como o naturalizado já havia perdido a sua cidadania anterior, essas medidas simplesmente ameaçavam tornar apátrida um outro grupo considerável.
     Era quase patético verificar quão impotentes eram os governos europeus, a despeito da sua consciência do perigo que era a condição do apátrida para as suas instituições legais e políticas, e a despeito de todos os seus esforços no sentido de deter o dilúvio. Já não havia necessidade de acontecimentos explosivos. Uma vez que dado número de pessoas sem Estado era admitido num país, o "despatriamento" se alastrava como doença contagiosa. Não apenas os cidadãos naturalizados corriam o risco de reverter ao estado de apátridas, mas as condições de vida de todos os estrangeiros deterioravam visivelmente. Nos anos 30 tornou-se cada vez mais difícil distinguir claramente entre refugiados sem Estado — isto é, apátridas — e estrangeiros residentes — isto é, cidadãos de um outro país. Sempre que o governo tentava usar o seu direito, repatriando um estrangeiro residente contra a sua vontade, este fazia o máximo para se refugiar na condição de apátrida. Durante a Primeira Guerra Mundial, estrangeiros "inimigos" (isto é, cidadãos de um país inimigo) já haviam descoberto as vantagens dessa condição. Mas aquilo que, na época, fora a esperteza de indivíduos que encontravam uma brecha na lei agora constituía a reação instintiva das massas. A França — a maior área de recepção de imigrantes da Europa,[41] pois controlava o caótico mercado de mão-de-obra ao apelar para trabalhadores estrangeiros em tempos de necessidade e deportando-os em tempos de desemprego e de crise — ensinou aos "seus" estrangeiros uma lição sobre as vantagens da condição do apátrida que eles não iriam esquecer facilmente. Depois de 1935, ano da repatriação em massa empreendida pelo governo de Lavai, da qual só os apátridas escaparam, os assim chamados "imigrantes econômicos" e outros grupos que haviam vindo antes — balcânicos, italianos, poloneses e espanhóis — misturaram-se às ondas de refugiados numa mixórdia que jamais pôde ser destrinçada novamente.
     Muito pior que o dano causado pela condição de apátrida às antigas e necessárias distinções entre nacionais e estrangeiros e ao direito soberano dos Estados em questões de nacionalidade e expulsão, foi aquele sofrido pela própria estrutura das instituições legais da nação, quando um crescente número de residentes teve de viver fora da jurisdição dessas leis, sem ser protegido por quaisquer outras. O apátrida, sem direito à residência e sem o direito de trabalhar, tinha, naturalmente, de viver em constante transgressão à lei. Estava sujeito a ir para a cadeia sem jamais cometer um crime. Mais do que isso, toda a hierarquia de valores existente nos países civilizados era invertida no seu caso. Uma vez que ele constituía a anomalia não-prevista na lei geral, era melhor que se convertesse na anomalia que ela previa: o criminoso.
     A melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do âmbito da lei é perguntar se, para ela, seria melhor cometer um crime. Se um pequeno furto pode melhorar a sua posição legal, pelo menos temporariamente, podemos estar certos de que foi destituída dos direitos humanos. Pois o crime passa a ser, então, a melhor forma de recuperação de certa igualdade humana, mesmo que ela seja reconhecida como exceção à norma. O fato — importante — é que a lei prevê essa exceção. Como criminoso, mesmo um apátrida não será tratado pior que outro criminoso, isto é, será tratado como qualquer outra pessoa nas mesmas condições. Só como transgressor da lei pode o apátrida ser protegido pela lei. Enquanto durem o julgamento e o pronunciamento da sua sentença, estará a salvo daquele domínio arbitrário da polícia, contra o qual não existem advogados nem apelações. O mesmo homem que ontem estava na prisão devido à sua mera presença no mundo, que não tinha quaisquer direitos e vivia sob ameaça de deportação, ou era enviado sem sentença e sem julgamento para algum tipo de internação por haver tentado trabalhar e ganhar a vida, pode tornar-se quase um cidadão completo graças a um pequeno roubo. Mesmo que não tenha um vintém, pode agora conseguir advogado, queixar-se contra os carcereiros e ser ouvido com respeito. Já não é o refugo da terra: é suficientemente importante para ser informado de todos os detalhes da lei sob a qual será julgado. Ele torna-se pessoa respeitável.[42]
     Um modo muito menos seguro e muito mais difícil de passar de anomalia não-reconhecida à posição de exceção reconhecida seria tornar-se gênio. Assim como a lei só conhece uma diferença entre seres humanos, a diferença entre o não-criminoso normal e o criminoso anômalo, também a sociedade conformista reconhece apenas uma forma de individualismo determinado, o gênio. A sociedade burguesa europeia queria que o gênio permanecesse além das leis humanas, que fosse uma espécie de monstro cuja principal função social fosse criar excitamento, e não importava realmente que fosse um fora-da-lei. Além do mais, a perda da cidadania privava a pessoa não apenas de proteção, mas também de qualquer identidade claramente estabelecida e oficialmente reconhecida, fato cujo símbolo exato era o seu eterno esforço de obter pelo menos certidão de nascimento do país que a desnacionalizava. Mas o seu problema só estava resolvido quando conseguia aquele grau de distinção que separa o homem da multidão gigantesca e anônima. Somente a fama podia vir a atender a repetida queixa dos refugiados de todas as camadas sociais de que "ninguém aqui sabe quem eu sou"; e a verdade é que as chances de um refugiado famoso aumentam, da mesma forma que um cachorro perdido com pedigree sobrevive mais facilmente que um outro cachorro perdido, que é apenas um cão como os demais.[43]
     O Estado-nação, incapaz de prover uma lei para aqueles que haviam perdido a proteção de um governo nacional, transferiu o problema para a polícia. Foi essa a primeira vez em que a polícia da Europa ocidental recebeu autoridade para agir por conta própria, para governar diretamente as pessoas; nessa esfera da vida pública, já não era um instrumento para executar e fazer cumprir a lei, mas se havia tornado autoridade governante independente de governos e de ministérios.[44] A sua força e a sua independência da lei e do governo cresceram na proporção direta do influxo de refugiados. Quanto maior era o número de apátridas e de apátridas em potencial — e na França antes da Segunda Guerra Mundial esse grupo atingiu 10% da população total —, maior era o perigo da gradual transformação do Estado da lei em Estado policial.
     Não é preciso dizer que os regimes totalitários, onde a polícia havia galgado o auge do poder, ansiavam particularmente pela consolidação desse poder através do domínio de vastos grupos de pessoas que, independentemente de quaisquer ofensas cometidas por indivíduos, estavam de qualquer modo fora, do âmbito da lei. Na Alemanha nazista, as leis de Nuremberg, com a sua distinção entre os cidadãos do Reich (Reichsbürger — cidadãos completos) e nacionais (Volksbürger — cidadãos de segunda classe sem direitos políticos), haviam aberto o caminho para um estágio final no qual os "nacionais" de "sangue estrangeiro" podiam perder a nacionalidade por decretos; só a deflagração da guerra evitou a promulgação de uma legislação nesse sentido, que havia sido detalhadamente preparada.[44a] Por outro lado, os crescentes grupos de apátridas nos países não totalitários levaram a uma forma de ilegalidade, organizada pela polícia, que praticamente resultou na coordenação do mundo livre com a legislação dos países totalitários. O fato de virem a existir campos de concentração para os mesmos grupos em todos os países, embora houvesse diferenças consideráveis no tratamento dos internos, foi característico da época: se os nazistas confinavam uma pessoa num campo de concentração e ela conseguisse fugir, digamos, para a Holanda, os holandeses a colocavam num campo de internação. Assim, muito antes do início da guerra, as policias em muitos países ocidentais, a pretexto da "segurança nacional", haviam, por iniciativa própria, estabelecido íntimas ligações com a Gestapo e a GPU, de modo que se poderia dizer que existia uma política estrangeira policial independente. Essa política estrangeira dirigida pela polícia funcionava à margem das diretrizes dos governos oficiais; as relações entre a Gestapo e a polícia francesa, por exemplo, nunca foram tão cordiais como na época do governo da Frente Popular de Léon Blum, que determinou uma política decididamente antigermânica. Em contraste com os governos, as organizações policiais não nutriam "preconceitos" contra os regimes totalitários; as informações e denúncias recebidas de agentes da GPU eram tão bem-vindas quanto a dos agentes fascistas e da Gestapo. Conheciam o papel do aparelho policial em todos os regimes totalitários, sabiam da sua elevada posição social e importância política, e nunca se preocuparam em esconder as suas simpatias. O fato de que os alemães encontraram tão pouca resistência por parte das polícias dos países que haviam ocupado, e de que os alemães puderam organizar o terror com a ajuda das polícias locais, foi em parte devido à poderosa posição que a polícia havia conquistado no decorrer dos anos em seu irrestrito e arbitrário domínio sobre os apátridas e os refugiados.
     Os judeus tiveram papel importante tanto na história da "nação de minorias" como na formação dos povos apátridas. Estiveram à frente do chamado movimento de minorias, não só em virtude de sua necessidade de proteção (somente igualada pela necessidade dos armênios) e da capacidade de aproveitamento de suas excelentes conexões internacionais, mas, acima de tudo, porque não constituíam maioria em país algum e, portanto, podiam ser considerados a minoritépar excellence, isto é, a única minoria cujos interesses só podiam ser defendidos por uma proteção garantida internacionalmente.[45]
     As necessidades especiais do povo judeu constituíam o melhor pretexto para que se negasse que os Tratados fossem uma solução entre a tendência das novas nações de assimilarem povos estrangeiros e a situação de nacionalidades às quais, tão-só por questões de conveniência, não se podia conceder o direito de autodeterminação nacional.
     Aliás, os primeiros Heimatlosen ou apatrides, como foram denominados pelos Tratados de Paz, eram, na maioria, exatamente judeus que vinham dos Estados sucessórios e não podiam ou não queriam colocar-se sob a proteção da maioria que havia sido levada ao poder nos seus países de origem. Somente quando a Alemanha forçou os judeus alemães a emigrar, tornando-os apátridas, é que os judeus passaram a constituir uma parte realmente significativa dos grupos apátridas. Mas, nos anos que se seguiram à bem-sucedida perseguição de Hitler aos judeus, todos os países com minorias começaram a pensar em se desfazer de algum modo de seus grupos minoritários, e era natural que começassem a realizar essas ideias a partir da minoritépar excellance, a única nacionalidade que realmente não tinha qualquer outra proteção além de um sistema de minorias que, a essa altura, não era mais que simples zombaria.
     A noção de que o problema do apátrida era primariamente judeu[46] foi um pretexto usado por todos os governos que tentavam resolver o problema ignorando-o. Nenhum dos estadistas se apercebia de que a solução de Hitler para o problema judaico — primeiro, reduzir os judeus alemães a uma minoria não-reconhecida na Alemanha; depois, expulsá-los como apátridas; e, finalmente, reagrupá-los em todos os lugares em que passassem a residir para enviá-los aos campos de extermínio — era uma eloquente demonstração para o resto do mundo de como realmente "liquidar" todos os problemas relativos às minorias e apátridas. Depois da guerra, viu se que a questão judaica, considerada a única insolúvel, foi realmente resolvida — por meio de um território colonizado e depois conquistado —, mas isso não resolveu o problema geral das minorias nem dos apátridas. Pelo contrário, a solução da questão judaica meramente produziu uma nova categoria de refugiados, os árabes, acrescentando assim cerca de 700 mil a 800 mil pessoas ao número dos que não têm Estado nem direitos. E o que aconteceu na Palestina, em território menor e em termos de poucas centenas de milhares de pessoas, foi repetido depois na índia em larga escala, envolvendo muitos milhões de homens. Desde os Tratados de Paz de 1919 e 1920, os refugiados e os apátridas têm-se apegado como uma maldição aos Estados recém-estabelecidos, criados à imagem do Estado-nação.
     Para esses novos Estados, essa maldição contém o germe de uma doença mortal. Pois o Estado nação não pode existir quando o princípio de igualdade perante a lei é quebrado. Sem essa igualdade legal, que originalmente se destinava a substituir as leis e ordens mais antigas da sociedade feudal, a nação se dissolve numa massa anárquica de indivíduos super e subprivilegiados. As leis que não são iguais para todos transformam-se em direitos e privilégios, o que contradiz a própria natureza do Estado-nação. Quanto mais clara é a demonstração da sua incapacidade de tratar os apátridas como "pessoas legais", e quanto mais extenso é o domínio arbitrário do decreto policial, mais difícil é para os Estados resistir à tentação de privar todos os cidadãos da condição legal e dominá-los com uma polícia onipotente.

Parte II Imperialismo (5.1 - A"A Nação de Minorias" e os Povos sem Estado)
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[3] Kurt Tramples, "Volkerbund und Võlkerfreiheit" [União dos povos e liberdade dos povos], em Süddeutsche Monatshefte, 26. Jahrgang, julho de 1929.
[4] A luta dos eslovacos contra o governo tcheco de Praga terminou com a independência da Eslováquia apoiada por Hitler; a Constituição iugoslava de 1921 foi aceita pelo Parlamento dominado pelos sérvios contra os votos de todos os representantes croatas e eslovenos. Um bom resumo da história da Iugoslávia entre as duas guerras se encontra em Propylàen Weltgeschichte. Das Zeit-alter des Imperialismus, 1933, vol. 10, p. 471 ss.
[5] Mussolini tinha toda a razão quando escreveu, após a crise de Munique: "Se a Tchecoslováquia se encontra hoje no que se pode chamar de situação delicada, é porque ela não era apenas Tchecoslováquia, mas Tcheco-germano polono-magiaro-ruteno-romeno-eslováquia". (Citado por Hubert Ripka, Munich: before and after, Londres, 1939, p. 117).
[6] Essa expressão foi cunhada primeiro por Otto Bauer, Die Nationalitàtenfrage und die ósterreischische Sozialdemokratie [O problema das nacionalidades e a social-democracia austríaca], Viena, 1907.
A consciência histórica tinha papel importante na formação da consciência nacional. A emancipação das nações do domínio dinástico e da soberania de uma aristocracia internacional nascia da emancipação da literatura nacional da língua "internacional" dos eruditos (latim e, mais tarde, francês), desenvolvendo-se as línguas nacionais a partir do vernáculo popular. Aqueles povos cuja língua chegava a ser usada na literatura eram considerados como tendo atingido a maturidade nacional. Portanto, os movimentos de liberação das nacionalidades da Europa oriental começavam impondo a seus membros a renovação filológica, com resultados que iam do grotesco ao sério e útil. A função política dessa "ascensão" de idioma consistia em provar que o povo que possuía uma literatura e uma história próprias tinha o direito à soberania nacional.
[7] Essa não era, naturalmente, uma alternativa muito clara. Até hoje ninguém se deu ao trabalho de descobrir as semelhanças entre a exploração colonial e a exploração da minoria. Somente Jacob Robinson, "Staatsbürgerliche und wirtschaftliche Gleichberechtigung" (Igualdade cívico-estatal e econômica), em Süddeutsche Monatshefte, 26. Jahrgang, julho de 1929, observa de passagem: "Surgiu um tipo peculiar de protecionismo econômico, não dirigido contra outros países, mas contra certos grupos da população. É surpreendente que se pudessem observar certos métodos de exploração colonial na Europa central".
[8] Calcula-se que, antes de 1914, existiam cerca de 100 milhões de pessoas cujas aspirações nacionais não haviam sido realizadas. (Ver Charles Kingsley Webster, "Minorities: history", em Encyclopedia britannica, 1929.) A população das minorias foi calculada em cerca de 25 a 30 milhões. (P. de Azcarate, "Minorities: League of Nations", ibid.). A situação real na Tchecoslováquia e na Iugoslávia era muito pior. Na primeira, o "povo estatal" tcheco constituía, com 7.200.000 pessoas, cerca de 50% da população; na última, os 5 milhões de sérvios compunham apenas 42% do total. Ver W. Winkler, Statistisches Handbuch der europãischen Nationalitàten [Manual estatístico das nacionalidades europeias], Viena, 1931; Otto Junghann, National minorities in Europe, 1932. Algarismos ligeiramente diferentes são apresentados por Tramples, op. cit
[9] P. de Azcarate, op. cit.: "Os Tratados não estipulavam os 'deveres' das minorias em relação aos Estados dos quais faziam parte. Mas a Terceira Assembleia Ordinária da Liga [das Nações], em 1922, (...) adotou (...) resoluções a respeito dos deveres das minorias (...)".
[10] Os delegados franceses e ingleses foram bem claros a esse respeito. Disse Briand: "O processo que devemos ter em mente não é o desaparecimento das minorias, mas uma espécie de assimilação". E sir Austen Chamberlain, representante inglês, chegou a dizer que "o objetivo dos Tratados das Minorias [é] (...) assegurar (...) o tipo de proteção e justiça que gradualmente as prepararão para se fundirem à comunidade à qual pertencem" (C. A. Macartney, National states and national minorities, Londres, 1934, pp. 276, 277).
[11] É verdade que alguns estadistas tchecos, os mais liberais e democratas dos líderes dos movimentos nacionais, chegaram a sonhar com uma república tcheca como a da Suíça. O motivo pelo qual nem Benes tentou seriamente levar a cabo essa solução é que a Suíça não era um modelo que pudesse ser imitado, mas sim uma exceção particularmente feliz que comprovava a regra estabelecida. Os Estados recém-formados não tinham a segurança suficiente para abandonar uma aparelhagem estatal centralizada, e não podiam criar da noite para o dia aquelas pequenas comunas e cantões autônomos, sobre cujos vastos poderes se baseia o sistema federativo suíço.
[12] Wilson, ardente defensor da ideia de se concederem "direitos raciais, religiosos e linguísticos às minorias", "receava que 'direitos nacionais' podiam ser danosos, porquanto os grupos minoritários caracterizados como entidades nacionalmente separadas poderiam ficar 'sujeitos a inveja e ataques'" (Oscar J. Janowsky, TheJews and minority rights, Nova York, 1933, p. 351).
[13] O termo é de Macartney's, op. cit., passim.
[14]  "Como resultado da negociação da Paz, cada Estado situado no cinturão de populações mistas (...) se considerava agora um Estado nacional. Mas os fatos contrariavam essa asserção. (...) Nenhum desses Estados era realmente uni nacional, da mesma forma como não havia, por outro lado, nação alguma da qual todos os membros vivessem num único Estado" (Macartney, op. cit., p. 21D).
[15] Em 1933, o presidente do Congresso fez questão de acentuar: "Uma coisa é certa: não nos reunimos em nossos congressos apenas como membros de minorias abstratas; cada um de nós pertence de corpo e alma a um povo específico, o seu próprio povo, e se sente ligado ao destino desse povo para mal ou para bem. Consequentemente, cada um de nós está aqui, se me permitem dizer, como um alemão puro ou um judeu puro, como um húngaro puro ou como um ucraniano puro". Em Sitzungsbericht des Kongresses der oganisierten nationalen Gruppen in den Staaten Europas [Relatório da Assembleia do Congresso dos Grupos Nacionais Organizados nos Estados Europeus), 1938, p. 8.
[*] Os judeus alemães — ao contrário dos poloneses, romenos, lituanos etc. — tinham cidadania alemã e nacionalidade alemã, que lhes seriam retiradas por Hitler. Os judeus dos países sucessórios dos impérios russo e austro-húngaro tinham a cidadania do país em que viviam, mas a nacionalidade judaica definida, indicada em todos os seus documentos. (N. E.)
[16] As primeiras minorias surgiram quando o princípio protestante de liberdade de consciência conseguiu suprimir o princípio cuius regio eius religio [de tal região, sua religião]. O Congresso de Viena em 1815 (realizado vinte anos após a partilha da Polônia) já havia tomado medidas para assegurar certos direitos às populações polonesas incorporadas à Rússia, Prússia e Áustria, direitos esses que certamente não eram apenas "religiosos"; contudo, é bem característico o fato de que todos os tratados posteriores — o que garantia a independência da Grécia em 1830, o que garantia a independência da Moldávia e da Valáquia (precursoras da Romênia) em 1856, e o Congresso de Berlim, em 1878, que tratou especificamente da Romênia — falam de minorias "religiosas" e não "nacionais", que receberiam direitos "civis" mas não "políticos".
[17] Afrânio de Mello Franco, representante do Brasil no Conselho da Liga das Nações, definiu o problema claramente: "Quer-me parecer óbvio que aqueles que conceberam esse sistema de proteção não sonhavam criar dentro de certos Estados um grupo de habitantes que se consideraria permanentemente estranho à organização geral do país" (Macartney, op. cit., p. 277).
[18]  "O regime de proteção das minorias destinava-se a remediar aqueles casos em que a negociação territorial era inevitavelmente imperfeita do ponto de vista da nacionalidade" (Joseph Roucek, The minority principie as a problem of political science, Praga, 1928, p. 29). O problema é que a imperfeição dos acordos territoriais não existia apenas nos acordos das minorias, mas também no próprio estabelecimento dos Estados sucessórios, porquanto não havia território naquela região que não pudesse ser reivindicado por várias nacionalidades ao mesmo tempo e sob várias alegações igualmente válidas.
[19] Uma prova quase simbólica dessa mudança de atitude é encontrada em declarações do presidente Eduard Benes, da Tchecoslováquia, o único país que após a Primeira Guerra Mundial havia aceito de bom grado as obrigações dos Tratados das Minorias. Pouco depois de irromper a Segunda Guerra Mundial, Benes começou a dar o seu apoio ao princípio da transferência de populações, que finalmente levou à expulsão da minoria alemã da região dos Sudetos. Quanto à posição de Benes, ver Oscar I. Janowsky, Nationalities and national minorities, Nova York, 1945, pp. 136 136 ss.
[20] "O problema dos apátridas tornou-se de extrema importância depois da Segunda Grande Guerra. Antes da guerra, existiam leis em alguns países, principalmente nos Estados Unidos, segundo as quais a naturalização podia ser revogada nos casos em que a pessoa naturalizada deixasse de manter uma ligação genuína com o país de adoção. Aqueles que eram desnaturalizados dessa forma tornavam-se apátridas. Durante a guerra, os principais Estados europeus acharam necessário reformar suas leis para poderem cancelar a naturalização" (John Hope Simpson, The refugee problem, Institute of International Affairs, Oxford, 1939, p. 231). O grupo de apátridas criado pela revogação da naturalização era ínfimo; contudo, esse precedente expôs os cidadãos naturalizados ao perigo de se tornarem apátridas. O cancelamento de naturalizações em massa, como foi introduzido pela Alemanha nazista em 1933, quando atingiu todos os alemães naturalizados de origem judaica, geralmente precedia a desnacionalização de cidadãos natos pertencentes a categorias semelhantes; e a introdução de leis que permitiam a desnaturalização por simples decreto, como as da Bélgica e de outras democracias do Ocidente nos anos 30, geralmente precedia a desnaturalização em massa; um bom exemplo é a prática do governo grego com relação aos refugiados armênios: de 45 mil refugiados armênios, mil foram naturalizados entre 1923 e 1928. Depois de 1928, uma lei que visava à naturalização de todos os refugiados com menos de 22 anos de idade foi suspensa e, em 1936, todas as naturalizações foram canceladas pelo governo. (Ver Simpson, op. c/í.,p. 41.)
[21] Vinte e cinco anos após o regime soviético ter repudiado 1,5 milhão de russos, calculava-se que pelo menos 350 mil a 450 mil ainda eram apátridas — o que é uma porcentagem elevadíssima, quando se considera o tempo decorrido desde a fuga inicial. (Ver Simpson, op. cit., p.559; Eugene M. Kulischer, The displacement ofpopulation in Europe, Montreal, 1943; Winifred N. Hadsel, "Can Europe's refugees find new homes?", em Foreign Policy Reports, agosto de 1943, vol. X, n? 10) É verdade que os Estados Unidos haviam colocado os imigrantes apátridas em pé de igualdade com os outros estrangeiros, mas isso só havia sido possível porque esse país, o país da imigração par excellence, sempre considerou quaisquer recém-chegados como seus próprios cidadãos em potencial, independentemente de sua nacionalidade anterior.
[22] O American Friends Service Bulletin (General Relief Bulletin, março de 1943) publica o relato de um de seus colaboradores na Espanha que havia deparado com o problema de "um homem que havia nascido em Berlim, na Alemanha, mas é considerado de origem polonesa, porque seus pais nasceram na Polônia, e é, portanto (...) apátrida, mas que alega ser de nacionalidade ucraniana e que foi, portanto, reclamado pelo governo russo para ser repatriado e servir no Exército Vermelho".
[*] Vilna — atual Vilnius, capital da Lituânia soviética — fez, até 1919, parte da Rússia; depois, até 1939, da Polônia; depois da Lituânia; e agora da URSS.
[23] Lawrence Preuss, "La dénationalisation imposée pour des motifs politiques", em Revue Internationale Française du Droit des Gens, 1937, vol. IV, n?s 1, 2, 5.
[24] Uma lei italiana de 1926 contra "emigração abusiva" parecia prenunciar medidas de desnaturalização contra refugiados antifascistas; contudo, a partir de 1929, a política de desnaturalização foi abandonada e estabeleceram-se organizações fascistas no exterior. Dos 40 mil membros da Unione Popolare Italiana da França, pelo menos 10 mil eram autênticos refugiados antifascistas, mas apenas 3 mil não tinham passaporte. Ver Simpson, op. cit., pp. 122 ss.
[25] A primeira lei desse tipo foi uma medida francesa, tomada durante a guerra em 1915, que se relacionava apenas a cidadãos naturalizados de origem inimiga que houvessem conservado sua nacionalidade original. Portugal foi muito mais longe num decreto de 1916 que desnaturalizava automaticamente todas as pessoas nascidas de pai alemão. A Bélgica emitiu uma lei em 1922 que cancelava a naturalização de pessoas que houvessem cometido atos contra a nação durante a guerra, e a reafirmou com um novo decreto de 1934, tipicamente vago, que falava de pessoas manquant gravement à leurs devoirs de citoyen belge. Na Itália, desde 1926, qualquer pessoa que não fosse "digna da cidadania italiana" ou constituísse ameaça à ordem pública podia ser desnaturalizada. O Egito e a Turquia, em 1926 e 1928 respectivamente, aprovaram leis segundo as quais as pessoas que constituíssem ameaça à ordem social podiam perder sua naturalização. A França ameaçou desnaturalizar os seus novos cidadãos que cometessem atos contrários aos interesses da França (1927). A Áustria, em 1933, podia privar da nacionalidade austríaca qualquer um dos seus cidadãos que cometesse atos hostis à Áustria no exterior, ou deles participassem. Finalmente, a Alemanha, em 1933, seguiu de perto os vários decretos russos sobre nacionalidade emitidos desde 1921, declarando que qualquer pessoa "residente no exterior" podia, a critério das autoridades, ser privada da nacionalidade alemã.
[25a] De uma ordem do Hauptsturmführer Dannecker, de 10 de março de 1943, referente à "deportação de 5 mil judeus da França, cota de 1942". O documento (cópia fotostática no Centro de Documentation Juive de Paris) é parte dos Nuremberg Documents n? RF 1216. Medidas semelhantes foram tomadas contra os judeus búlgaros. Cf. ibidem o relevante memorando de L. R. Wagner, datado de 3 de abril de 1943, Documento NG 4180.
[26] S. Lawford Childs {op. cit.) deplora o fato de que o Pacto da Liga das Nações não contenha "nenhuma concessão para os refugiados políticos, nenhum alivio para os exilados". A tentativa das Nações Unidas de obter, pelo menos para um pequeno grupo de apátridas — os chamados "apátridas de jure" —, uma melhora de status legal não passou de um simples gesto de reunir os representantes de pelo menos vinte países, mas com a garantia explícita de que a participação na conferência não implicaria quaisquer obrigações. Mesmo assim, ainda era extremamente duvidoso que a conferência pudesse ser realizada. Ver a notícia no New York Times, 17 de outubro de 195*», p. 9.
[27] As únicas defensoras do direito de asilo eram aquelas poucas sociedades cujo objetivo especial era a proteção dos direitos humanos. A mais importante delas, a Ligue des Droits de VHomme, patrocinada pela França e com ramificações em todos os países democráticos da Europa, agia como se a questão ainda fosse simplesmente a salvação de indivíduos perseguidos em virtude de suas convicções e atividades políticas. Essa suposição não tinha sentido, por exemplo, no caso de milhões de refugiados russos e era simplesmente absurda para os judeus e armênios. A Ligue não estava equipada, ideológica ou administrativamente, para enfrentar esses problemas. Como não queria enfrentar a nova situação, tropeçava ao tentar exercer as funções que eram muito melhor resolvidas por qualquer uma das muitas agências de caridade que os próprios refugiados haviam criado com o auxílio dos seus compatriotas. Ao se tornarem objeto de uma organização de caridade ineficaz, os Direitos do Homem caíram em descrédito ainda maior.
[28] Os numerosos e diferentes esforços dos legisladores no sentido de simplificar o problema declarando uma diferença entre o apátrida e o refugiado — como argumentar "que o status do apátrida é caracterizado pelo fato de não ter nacionalidade, enquanto o do refugiado é determinado por sua perda de proteção diplomática" (Simpson, op. cit., p. 232) — foram sempre anulados pelo fato de que "todos os refugiados são apátridas para fins práticos" (Simpson, op. cit., p. 4).
[29] A formulação mais irônica dessa expectativa geral foi feita por R. Yewdall Jermings, "Some international aspects of the refugee question", em British Yearbook of International Law, 1939: "O status do refugiado naturalmente não é permanente. O objetivo é que ele se liberte dessa condição o mais depressa possível, ou pela repatriação, ou pela naturalização no país de refúgio".
[30] Apenas os russos, sob todos os aspectos a aristocracia dos apátridas, e os armênios, que foram equiparados ao status russo, chegaram a ser reconhecidos oficialmente como "apátridas", colocados sob a proteção da Agência Nansen da Liga das Nações, e contemplados com documentos que lhes permitiam viajar livremente.
[31] Childs, op. cit. O motivo dessa desesperada exigência de rapidez era o temor de todos os governos de que o menor gesto positivo "pudesse encorajar os países a se descartarem de seus residentes indesejáveis e de que muitos daqueles que, de outra forma, permaneceriam em seus países, mesmo em condições de séria desvantagem, pudessem emigrar" (Louise W. Holborn, "The legal status of political refugees, 1920-38", em American Journal of International Law, 1939).
Ver também Georges Mauco (em Esprit, ano 7, n? 82, julho de 1939, p. 590): "A equiparação dos refugiados alemães ao status de outros refugiados sob os cuidados da Agência Nansen teria solucionado melhor o problema. (...) Mas os governos não queriam estender os privilégios já concedidos a uma nova categoria de refugiados, o que, além do mais, ameaçaria aumentar o seu número indefinidamente".
[32] Aos 600 mil judeus da Alemanha e da Áustria que eram apátridas em potencial em 1938, devem ser acrescentados os judeus da Romênia (o presidente da Comissão Federal Romena de Minorias, professor Dragomir, havia acabado de anunciar ao mundo a iminente revisão da cidadania de todos os judeus romenos) e da Polônia (cujo ministro do Exterior, Beck, havia oficialmente declarado que a Polônia tinha o excesso de 1 milhão de judeus). Ver Simpson, op. cit., p. 235.
[33] É difícil saber o que ocorreu primeiro, se a relutância dos Estados-nações em naturalizar os refugiados (com a chegada destes, a prática de naturalização tornou-se cada vez mais limitada e a prática da desnaturalização cada vez mais comum), ou a relutância dos refugiados em aceitar outra cidadania. Em países com populações minoritárias, como a Polônia, os refugiados russos e ucranianos tinham uma clara tendência de se incorporarem às minorias russa e ucraniana sem, contudo, exigirem cidadania polonesa. (Ver Simpson, op. cit., p. 364).
A conduta dos refugiados russos é bem típica. O passaporte Nansen descrevia o portador comopersonne d'origine russe, porque "ninguém ousaria dizer ao emigrante russo que ele não tinha nacionalidade ou era de nacionalidade duvidosa". (Ver Marc Vichniac, "Le status international des apatrides", em Recueil des Cours de VAcadêmie de Droit International, vol. XXXIII, 1933.) Uma tentativa de dar a todos os apátridas cartões de identidade uniformes foi contestada pelos portadores de passaportes Nansen, que alegavam que o seu passaporte era "um símbolo do reconhecimento legal de seu status peculiar". (Ver Jermings, op. cit.). Antes do início da guerra, nem mesmo os refugiados da Alemanha estavam ansiosos por se incorporar à massa dos apátridas e preferiam a descrição refugie provenant d'Allemagne, com o seu vestígio de nacionalidade. 
Mais convincentes do que as queixas de países europeus acerca das dificuldades de assimilar refugiados são as declarações de países de ultramar, que concordam com os primeiros quanto ao fato de que "de todos os imigrantes europeus, os menos fáceis de serem assimilados são os que vêm da Europa meridional, oriental e central". "Canada and the doctrine of peaceful changes", editado por H. F. Angus em International studies conference: demographic questions: peaceful changes, 1937, pp. 75-6). 
[34] Jermings, op. cit.
[35] Uma circular das autoridades holandesas (7 de maio de 1938) chama expressamente cada refugiado de "estrangeiro indesejável" e define o refugiado como um "estrangeiro que deixou o país pela força das circunstâncias" ("L'emigration, problème révolutionnaire", em Esprit, n? 82, julho de 1939, p. 602).
[36] Lawrence Preuss, op. cit., descreve nestes termos a difusão da ilegalidade: "O ato ilegal inicial do país que desnacionaliza [uma pessoa] (...) coloca a nação expulsora na posição de infratora da lei internacional, uma vez que suas autoridades violam a lei do país para o qual o apátrida é expulso. Esse país, por sua vez, não pode descartar-se dele (...) a não ser violando (...) a lei de um terceiro país.(...) [O apátrida depara com a seguinte alternativa]: ou viola a lei do país onde reside (...) ou viola a lei do país para o qual é expulso".
Sir John Fischer Williams ("Denationalisation", em British Year Book of International Law, VII, 1927) conclui dessa situação que a desnacionalização é contrária à lei internacional; contudo, na Conference pour Codification du Droit International realizada em Haia, em 1930, o governo finlandês foi o único a afirmar que "a perda da nacionalidade (...) jamais deve constituir punição (...) nem ser usada para que um pais se desfaça de uma pessoa indesejável através da expulsão".
[37] A diferença entre um cidadão naturais, Childs, op. cit., chegou à triste conclusão de que "a verdadeira dificuldade em receber um refugiado é esta: se ele demonstrar ser um mau elemento (...) não há maneira de o país livrar-se dele". Depois propôs a criação de "centros de transição", que, em outras palavras, substituiriam a pátria, mas só para fins de deportação.  
[38] Dois casos de naturalização em massa no Oriente Próximo foram claramente .excepcionais: um envolveu os gregos expulsos da Turquia que o governo grego naturalizou em bloco em 1922, porque se tratava realmente de um minoria grega, mesmo que formada por cidadãos juridicamente estrangeiros; o outro beneficiou os refugiados armênios da Turquia estabelecidos na Síria, Líbano e outros países ex-otomanos, isto é, uma população com a qual todo o Oriente Próximo compartilhava a cidadania turco-otomana ainda poucos anos antes.
[39] Quando uma onda de refugiados encontrava membros de sua própria nacionalidade já estabelecidos no país para o qual haviam imigrado — como foi o caso dos armênios e italianos na França, por exemplo, e dos judeus por toda parte —, ocorria um certo retrocesso na assimilação daqueles que haviam estado lá havia mais tempo. Pois o seu auxílio e solidariedade só podiam ser mobilizados por um apelo à nacionalidade original que tinham em comum com os refugiados. Isso era do interesse imediato dos países inundados de refugiados, mas incapazes, ou não desejosos, de lhes dar auxílio direto ou o direito de trabalhar. Em todos esses casos, os sentimentos nacionais do grupo mais antigo foi "um dos principais fatores da bem-sucedida fixação dos refugiados" (Simpson, op. cit., pp. 45-6), mas, apelando para essa consciência e solidariedade nacional, os países receptores naturalmente aumentavam o número de elementos não-assimilados, que assim prolongavam a sua condição real de estrangeiros. Para citar apenas um caso: 10 mil refugiados italianos bastaram para que se adiasse indefinidamente a assimilação de quase 1 milhão de imigrantes italianos na França.
[40] O governo francês, seguido por outros países ocidentais, introduziu nos anos 30 um número cada vez maior de restrições para os cidadãos naturalizados: eram eliminados de certas profissões por até dez anos da naturalização, não tinham direitos políticos etc.
[41] Simpson, op. cit., p. 289.
[42] Na prática, qualquer sentença a que for condenado será insignificante, comparada com um mandado de expulsão, cancelamento do direito de trabalhar ou um decreto que o mande para um campo de internamente. Um nipo-americano da costa ocidental dos Estados Unidos, que estivesse na prisão quando o Exército ordenou o internamente de todos os americanos de ascendência japonesa, não teria sido forçado a desfazer-se dos seus bens a qualquer preço; teria permanecido onde estava, munido de um advogado para cuidar dos seus interesses; e, se tivesse a sorte de receber uma sentença longa, voltaria honesta e tranquilamente ao seu antigo negócio ou profissão, mesmo que esta fosse a de ladrão. Sua sentença condenatória garantia-lhe os direitos constitucionais que nenhuma atitude, mesmo de total lealdade, lhe poderia garantir, uma vez que a sua cidadania fosse posta em dúvida.
[43] O fato de que o mesmo princípio de formação das elites funcionou muitas vezes nos campos de concentração totalitários, onde a "aristocracia" era constituída de criminosos e alguns "gênios", isto é, artistas ou escritores, mostra quão intimamente são relacionadas as posições sociais desses grupos.
[44] Na França, por exemplo, ficou comprovado que uma ordem de expulsão que emanasse da polícia era muito mais grave do que outra que viesse "apenas" do Ministério do Interior, e que o ministro do Interior só raramente podia cancelar uma expulsão ordenada pela polícia, enquanto o processo oposto dependia, muitas vezes, somente de suborno. Constitucionalmente, a policia está subordinada ao Ministério do Interior.
[44a]  Em fevereiro de 1939, o Ministério do Interior do Reich e da Prússia apresentou o "projeto de uma lei referente à aquisição e à perda da nacionalidade alemã" que ia muito além da legislação de Nuremberg. Segundo esse projeto, todos os filhos de "judeus, judeus de sangue misto ou pessoas de outro sangue estrangeiro" (que nunca poderiam vir a ser cidadãos do Reich de qualquer forma) também não tinham mais o direito à nacionalidade, "mesmo que o pai tivesse nacionalidade alemã por nascimento". Essas medidas já não estavam interessadas na legislação antijudaica, como ficou evidenciado por uma opinião emitida a 19 de julho de 1939 pelo ministro da Justiça, que sugeriu que "as palavras judeu e judeu de sangue misto fossem omitidas da lei e substituídas por 'pessoas de sangue estrangeiro', ou 'pessoas de sangue não-alemão ou não-germânico' [nicht artverwandt]". Uma interessante faceta desse plano de aumentar extraordinariamente a população apátrida da Alemanha nazista diz respeito aos enjeitados, que são considerados explicitamente apátridas, "até que uma investigação de suas características raciais possa ser feita". Eis aqui, deliberadamente invertido, o princípio de que todo indivíduo nasce com direitos inalienáveis garantidos por sua nacionalidade: agora todo indivíduo nasce sem direitos, a não ser que mais tarde se possa determinar o contrário. O dossiê original referente ao projeto dessa legislação, incluindo as opiniões de todos os ministérios e do Alto Comando da Wehrmacht, encontra-se nos arquivos do Yiddish Scientific Institute, Nova York.
[45] Quanto ao papel dos judeus na formulação dos Tratados das Minorias, ver Macartney, op. cit., pp. 4, 213, 281 epassim; David Erdstein, Le status juridique des minorités en Europe, Paris, 1932, pp. 11 ss; Oscar J. Janowsky, op. cit.
[46] Essa noção não é, de modo algum, privilégio da Alemanha nazista, embora somente um autor nazista ousasse expressá-la: "É verdade que continuará a existir uma questão dos refugiados mesmo quando já não exista a questão dos judeus; mas, como os judeus constituem uma porcentagem tão alta dos refugiados, a questão dos refugiados será bem mais simples" (Kaber-mann, "Das internationale Flflchtlingsproblem" [O problema internacional dos refugiados], em Zeitschri.fi für Politik, vol. 29, 3, 1939).

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