sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte III Totalitarismo (Prefácio - 2)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte III 
TOTALITARISMO

Os homens normais não sabem que tudo é possível. 
David Rousset 

Prefácio
     2 - 
          No tocante às provas em si, o fato de este livro haver sido concebido e escrito há tanto tempo não foi tão desvantajoso como se poderia supor, e isto se aplica ao que escrevemos tanto a respeito do totalitarismo nazista como do bolchevista. Uma das estranhezas da literatura sobre o totalitarismo é que as tentativas prematuras por parte de contemporâneos de escrever a sua "história" — que, segundo as regras acadêmicas, deveriam esbarrar na ausência de fontes impecáveis de documentação e no super envolvimento individual — resistem relativamente bem à prova do tempo. A biografia de Hítler por Konrad Heiden e a biografia de Stálin por Boris Souvarine, ambas escritas e publicadas nos anos 30, são em alguns aspectos mais precisas, e em quase todos os aspectos mais relevantes, que as biografias clássicas de Alan Bullock e Isaac Deutscher, respectivamente. Haverá muitas razões para isso, mas uma delas certamente é o simples fato de que o material documentário, em ambos os casos, tendeu a confirmar e a acrescentar ao que já se sabia há muito tempo, através de proeminentes desertores e relatos de outras testemunhas oculares.
     Podemos dizer um tanto drasticamente: não foi preciso o discurso secreto de Nikita Khrushchev para que soubéssemos que Stálin havia cometido crimes, nem que esse homem, que se supunha "loucamente desconfiado", havia decidido confiar em Hitler. Quanto a esse último fato, é a melhor prova de que Stálin «não era louco. Tinha razão de suspeitar de todos os que desejava ou se preparava para eliminar, e estes eram sempre os que ocupavam posição de destaque nos escalões superiores do partido e do governo, e confiava naturalmente em Hitler porque não lhe desejava mal. Quanto ao primeiro fato, as surpreendentes confissões de Khrushchev escondiam muito mais do que revelavam — pela óbvia razão de que tanto ele como os seus ouvintes estavam totalmente envolvidos na verdadeira história. Em consequência, indivíduos eruditos, com o seu amor profissional pelas fontes oficiais, minimizaram a gigantesca criminalidade do regime de Stálin, que, afinal de contas, não consistiu meramente na calúnia e no assassinato de uns poucos milhares de figuras importantes do campo político e literário, "reabilitáveis" postumamente, mas no extermínio de um número literalmente sem conta de milhões de pessoas que ninguém, nem mesmo Stálin, podia acusar de atividades "contra revolucionárias". Foi precisamente por admitir alguns crimes que Khrushchev escondeu a criminalidade do regime como um todo, e é contra essa camuflagem e contra a hipocrisia dos atuais dirigentes russos — todos treinados e promovidos por Stálin — que as gerações mais jovens de intelectuais russos entraram em rebelião quase aberta. Estes sabem tudo o que se pode saber a respeito de "expurgos em massa, e deportação e aniquilação de povos inteiros".[5] Além disso, a explicação de Khrushchev para os crimes que confessou era simplória: a demência de Stálin; mas escondia o aspecto mais característico do terror totalitário, que é desencadeado quando toda a oposição organizada já desapareceu e quando o governante totalitário sabe que já não precisa ter medo. Stálin iniciou os seus gigantescos expurgos não em 1928, quando admitia que "temos inimigos internos", e quando realmente tinha motivos de receio — pois sabia que Bukharin, convencido de que sua política "estava levando o país à fome, à ruína e a um regime policial",[6]  como realmente levou, o comparava a Gengis Khan —, mas em 1934, quando todos os antigos oponentes haviam "confessado os seus erros", e o próprio Stálin, no Décimo Sétimo Congresso do Partido, que ele também chamou de "Congresso dos Vencedores", havia declarado: "Neste Congresso (...) já não há o que provar e, ao que parece, não há ninguém mais a combater".[7]
     No que tange ao nosso conhecimento da era de Stálin, o arquivo de Smolensk, citado acima e publicado por Fainsod, é ainda sem dúvida o mais importante documento, e é deplorável que a primeira seleção, feita ao acaso, não tenha sido ainda seguida de outra mais extensa. A julgar pelo livro de Fainsod, há muito o que aprender no tocante ao período da luta de Stálin pelo poder em meados da década de 20: sabemos agora como era precária a posição do Partido,[8] não somente porque prevalecia no país um ânimo de franca oposição, mas também porque infestavam-no a corrupção e a embriaguez, que quase todas as exigências de liberalização eram acompanhadas de um anti-semitismo declarado[9] e que o esforço de coletivização e eliminação dos kulaks, de 1928 em diante, na verdade interrompeu a NEP, a Nova Política Econômica de Lênin, e com ela a embrionária reconciliação entre o povo e o seu governo.[10] Sabemos também como era feroz a oposição solidária de toda a classe camponesa, que achava "melhor não ter nascido do que aderir aos kolkhoz",[11] e condenava essas medidas, recusando-se a ser classificada em camponeses ricos, médios e pobres, para ser a seguir recrutada para a luta contra os kulaks,[12]  pois havia "alguém pior do que os kulaks, sentado em alguma parte, planejando a campanha de perseguição contra o povo";[13] e que a situação* não era muito melhor nas cidades, onde os trabalhadores se recusavam a cooperar com os sindicatos controlados pelo partido, chamando a gerência de "diabos bem-alimentados", "espiões hipócritas", entre outros epítetos.[14]
     Fainsod aponta, com razão, que esses documentos mostram claramente não apenas "o descontentamento geral", mas também a falta de qualquer "oposição suficientemente organizada" contra o regime como um todo. O que ele deixa de observar, e o que, em minha opinião, é igualmente corroborado pelas provas, é que existia uma alternativa óbvia para a tomada do poder por Stálin e a sua transformação da ditadura unipartidária em domínio total, e essa alternativa era a continuação da Nova Política Econômica tal como havia sido iniciada por Lênin.[15] Além disso, as medidas tomadas por Stálin com a introduçãcuiaPrimeiroílano Qüinqüenal, de 1928, quando o seu controle do partido era quase completo, demonstram que a transformação das classes em massas e a concomitante eliminação da solidariedade grupai são condições sine qua non do domínio total.
     Com relação ao período de inconteste domínio de Stálin, de 1929 em diante, o arquivo" de Smolensk tende a confirmar o que já sabíamos antes através de fontes menos irrefutáveis. Isso se aplica até a algumas de suas estranhas lacunas, especialmente quanto a dados estatísticos. Pois essa falta de dados prova apenas, neste ponto como em outros, que o regime de Stálin era cruelmente coerente: eram tratados como mentiras todos os fatos que não concordassem, ou pudessem discordar, com a ficção oficial, fossem dados sobre as colheitas de trigo, a criminalidade ou as reais ocorrências de atividades "contrarrevolucionárias". Todas as regiões e todos os distritos da União Soviética recebiam os seus dados estatísticos oficiais como recebiam as normas, não menos fictícias, que lhes eram destinadas pelos Planos Qüinqüenais.[16]
     Enumerarei brevemente alguns dos pontos mais importantes que antes apenas podíamos adivinhar, e que agora são confirmados pela prova documentária. Sempre suspeitamos, e agora sabemos, que o regime nunca foi "monolítico", mas "conscientemente construído em torno de funções superpostas, duplicadas e paralelas", e que o que segurava essa estrutura grotescamente amorfa era o mesmo princípio de liderança — o chamado "culto da personalidade" — que encontramos na Alemanha nazista;[17] que o ramo executivo desse governo não era o partido, mas a polícia, cujas "atividades operacionais não eram reguladas através de canais do partido";[18] que as pessoas inteiramente inocentes, as quais o regime liquidava aos milhões, os "inimigos objetivos" na linguagem bolchevista, sabiam que eram "criminosos sem crime";[19] que foi precisamente essa nova categoria, e não os antigos e verdadeiros inimigos do regime — assassinos de autoridades, incendiários ou terroristas —, que reagiu com a mesma "completa passividade" [20] que vimos tão bem na conduta das vítimas do terror nazista. Nunca duvidamos de que o "dilúvio de denúncias mútuas" durante o Grande Expurgo foi tão desastroso para o bem-estar econômico e social do país como foi eficaz para fortalecer o governante totalitário, mas só agora sabemos quão deliberadamente Stálin colocou essa "ominosa cadeia de denúncias em movimento",[21] quando proclamou oficialmente a 29 de julho de 1936: A qualidade inalienável de cada bolchevista nas condições atuais deve ser a capacidade de reconhecer um inimigo do Partido, não importa como ele se disfarce.[22] Pois, tal como a "soluçã,o final" de Hitler significava tornar realmente obrigatório para a elite do partido nazista o mandamento "Matarás", o pronunciamento de Stálin recomendava como regra de conduta para todos os membros do partido bolchevista:

"Levantarás falso testemunho". Finalmente, todas as dúvidas que ainda se poderiam alimentar quanto à verdade da teoria segundo a qual o terror dos anos 20 e 30 foi "o alto preço da dor", exigido pela industrialização e pelo progresso econômico, dissipam-se com esse primeiro documento do verdadeiro estado de coisas, relativo a uma região em particular.[23] O terror não produziu industrialização nem progresso. O que a eliminação dos kulaks, a coletivização e o Grande Expurgo produziram foi a fome, as caóticas condições da produção de alimentos e o despovoamento. As consequências têm sido uma perpétua crise na agricultura, uma interrupção do crescimento populacional e a incapacidade de desenvolver e colonizar o interior da Sibéria. Além disso, como o arquivo de Smolensk mostra em detalhes, os métodos stalinistas de governo conseguiram acabar com toda a competência e know-how técnico que o país havia adquirido após a Revolução de Outubro. Tudo isso é realmente um "preço" incrivelmente alto, cobrado não apenas em dor, pela abertura de vagas no partido e na burocracia do governo para setores da população que, muitas vezes, não eram apenas "politicamente analfabetos".[24] Na verdade, o preço do regime totalitário foi tão alto que ainda não foi inteiramente pago na Alemanha pós-nazista nem na Rússia pós-stalinista.  

Parte III Totalitarismo (Prefácio - 2)
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[5] Às vitimas do Primeiro Plano Qüinqüenal (Piatiletka: 1928-33), estimadas em 9 a 12 milhões de pessoas, é preciso adicionar aproximadamente 3 milhões de executados durante os Grandes Expurgos e de 5 a 9 milhões de deportados. Mas todas essas estimativas ainda parecem situar-se aquém da realidade factual. Prova disso são diversas execuções maciças (como a de milhares de pessoas, descoberta pelos alemães em Vinitsa, que data de 1937 ou 1938) e das quais nada se sabia no Ocidente. Isso reforça a semelhança existente entre os regimes nazista e bolchevista, a despeito das variantes entre esses dois modelos.
[6] Tucker, op. cit., pp. XVII-XVIII.
[7] Citado por Merle Fainsod em How Rússia is ruled, Cambridge, 1959, p. 516. Segundo Abdurakham Avtorkhanov (que, sob o pseudônimo de Uralov, publicou, em 1953, em Londres, o livro The reign of Stálin), numa reunião secreta do Comitê Central do Partido, realizada em 1936, Bukharin teria acusado Stálin de transformar o partido de Lênin em um Estado policial. De qualquer modo, segundo Fainsod (op. cit., pp. 449 ss.), o descontentamento geral era particularmente forte entre os componentes e, até 1928, as greves não eram raras na União Soviética.
[8] "O curioso não é que o Partido fosse vitorioso, mas que ele conseguiu simplesmente sobreviver" (Fainsod, op. cit., p. 38).
[9] Um relato de 1929 menciona violentas manifestações antissemitas durante uma reunião, estando os jovens do Komsomol tacitamente solidários com os atacantes dos judeus (ibid., pp. 49 ss.).
[10] Os relatórios de 1926 falam da diminuição dos participantes nas manifestações "contra-revolucionárias", o que corresponde "à trégua que o regime deu ao campesinato". Comparados aos de 1926, os relatórios de 1929-30 "parecem-se com os comunicados de uma frente de batalha" (ibid.,p. 177).
[11] Ibid., pp. 252ss.
[12] Ibid., especialmente pp. 240 ss. e 446 ss.
[13] Ibid. Todas as declarações desse tipo provêm dos relatórios da GPU; ver especialmente pp. 248 ss. Mas é bastante característico que tais observações tenham se tornado muito menos freqüentes após 1934, o começo do Grande Expurgo.
[14] Ibid.,p. 310.
[15] A literatura sobre esse assunto negligencia em geral tal alternativa, por causa da convicção — compreensível, embora historicamente insustentável — de que houve, de Lênin a Stálin, uma evolução normal. É verdade que Stálin se utilizava de terminologia leninista, mas, como lembra Tucker, "Stálin preencheu os velhos conceitos leninistas com o conteúdo novo, eminentemente stalinista" (Robert C. Tucker: "Stálin, Bukharin and history as conspiracy", em The Great Purge trial, Nova York, 1965, p. XVI). A diferença não consiste apenas na brutalidade — na "loucura" — de Stálin, mas também na insistência totalmente anti-leninista, por parte dele, de que a história se desenrola atualmente sob o signo da conspiração constante contra a revolução.
[16] Ver Fainsod, op. cit., especialmente pp. 365 ss.
[17] Ibid., pp. 93 e 71. É característico constatar que todas as mensagens, em todos os níveis, se referiam às obrigações para com "o camarada Stálin" e jamais para com o regime, o partido ou o país. A semelhança entre os dois sistemas — o nazista e o comunista — transparece da comparação entre as declarações dos chefes nazistas logo após a derrota alemã ("Hitler de nada sabia, os culpados eram os líderes locais, chefes de polícia" etc.) e dos escritores e intelectuais que, como Ilia Ehrenburg, compactuaram com o stalinismo, dizendo depois (cf. Tucker, op. cit., p. XIII) que "Stálin de nada sabia" quanto às atrocidades cometidas, a culpa sendo de tal ou qual chefe de polícia local.
[18] Ibid., pp. 166ss.
[19] As palavras são tiradas do apelo de "um elemento individualista" de 1936: "Não quero ser criminoso sem crime" (p. 229).
[20] Um relatório da GPU, de 1931, sublinha a "completa apatia" e passividade resultantes do terror exercido sobre os inocentes. Ele menciona a diferença entre a resistência inicial, quando um homem, "inimigo do regime", mobilizava dois milicianos no seu aprisionamento, e os aprisionamentos maciços, quando "um miliciano pode conduzir grandes grupos que marcham tranquilamente sem que ninguém sequer tente fugir" (p. 248).
[21] Ibid.,p. 135.
[22] Ibid., pp. 57-8. No tocante à histeria crescente e às denúncias maciças, ver também as pp. 222 e 229 ss. e a deliciosa história da p. 235, onde ficamos sabendo como um dos camaradas estava convicto de que "o camarada Stálin havia tido uma atitude conciliatória frente ap grupo trotskista-zinovievista", uma acusação que, na época, implicava no mínimo a expulsão imediata do partido. Mas ele não teve tal sorte. O orador seguinte acusou-o de ser "politicamente desleal" ao criticar o camarada Stálin, após o que ele prontamente "confessou" seu erro.
[23] Fainsod não é o único autor que tira conclusões desse tipo, embora elas sejam tão incompatíveis com os fatos revelados pelos documentos. O terror e a permanente instabilidade que ele cria permitem manter o totalitarismo, como contribuem também para organizar o sistema de satélites, enquanto a gradativa liberalização da Rússia soviética, embora levasse ao reforço da sua economia, a fez perder o controle tanto sobre os satélites quanto sobre os cidadãos.
[24] Quando, em 1922, os "professores reacionários", isto é, não pertencentes ao partido, foram eliminados, provocando protestos dos estudantes que quiseram manter o corpo docente de alto nível independentemente da filiação política, os expurgos atingiram de imediato os "elementos individualistas" entre os estudantes. Aliás, é provável que um dos alvos dos Grandes Expurgos fosse abrir carreiras à geração jovem criada após a Revolução e sem contato com o passado.

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