Hannah Arendt
Parte II
IMPERIALISMO
Se eu pudesse, anexaria os planetas.
Cecil Rhodes
Afirmou-se várias vezes que a ideologia racial foi uma invenção alemã. Se assim realmente
fosse, então o "modo de pensar alemão" teria influenciado uma grande parte do mundo
intelectual muito antes que os nazistas se engajassem na malograda tentativa de conquistar o
mundo. Pois se o hitlerismo exerceu tão forte atração internacional e intereuropeia durante os
anos 30, é porque o racismo, embora promovido a doutrina estatal só na Alemanha, refletia a
opinião pública de todos os países. Se a máquina de guerra política dos nazistas já funcionava
muito antes de setembro de 1939, quando os tanques alemães iniciaram a sua marcha
destruidora invadindo a Polônia, é porque Hitler previa que na guerra política o racismo seria
um aliado mais forte na conquista de simpatizantes do que qualquer agente pago ou organização
secreta de quintas-colunas. Fortalecidos pela experiência de quase vinte anos, os nazistas sabiam
que o melhor meio de propagar a sua ideia estava na sua política racial, da qual, a despeito de
muitas outras concessões e promessas quebradas, nunca se haviam afastado por amor à
conveniência.[1] O racismo não era arma nova nem secreta, embora nunca antes houvesse sido
usada com tão meticulosa coerência.
A verdade histórica de tudo isso é que a ideologia racista, com raízes profundas no século
XVIII, emergiu simultaneamente em todos os países ocidentais durante o século XIX. Desde o
início do século XX, o racismo reforçou a ideologia da política imperialista. O racismo absorveu
e reviveu todos os antigos pensamentos racistas, que, no entanto, por si mesmos, dificilmente
teriam sido capazes de transformar o racismo em ideologia. Em meados do século XIX, as
opiniões racistas eram ainda julgadas pelo critério da razão política: Tocque-ville escreveu a
Gobineau a respeito das doutrinas deste último que "elas são provavelmente erradas e
certamente perniciosas".[2] Mas já no fim daquele século concederam-se ao pensamento racista dignidade e importância, como se ele fosse uma das
maiores contribuições espirituais do mundo ocidental.[3]
Até o período da "corrida para a África", o pensamento racista competia com muitas ideias
livremente expressas que, dentro do ambiente geral de liberalismo, disputavam entre si a
aceitação da opinião pública.[4] Somente algumas delas chegaram a tornar-se ideologias
plenamente desenvolvidas, isto é, sistemas baseados numa única opinião suficientemente forte
para atrair e persuadir um grupo de pessoas e bastante ampla para orientá-las nas experiências e
situações da vida moderna. Pois a ideologia difere da simples opinião na medida em que se
pretende detentora da chave da história, e em que julga poder apresentar a solução dos "enigmas
do universo" e dominar o conhecimento íntimo das leis universais "ocultas", que supostamente
regem a natureza e o homem. Poucas ideologias granjearam suficiente proeminência para
sobreviver à dura concorrência da persuasão racional. Somente duas sobressaíram-se e
praticamente derrotaram todas as outras: a ideologia que interpreta a história como uma luta
econômica de classes, e a que interpreta a história como uma luta natural entre raças. Ambas
atraíram as massas de tal forma que puderam arrolar o apoio do Estado e se estabelecer como
doutrinas nacionais oficiais. Mas, mesmo além das fronteiras dentro das quais a ideologia racial
e a ideologia de classes formaram moldes obrigatórios de pensamento, a opinião pública livre as
adotou de tal modo que não apenas os intelectuais, mas até grandes massas, rejeitam
apresentações de fatos, passados ou presentes, que não se ajustem a uma delas.
A extraordinária força de persuasão decorrente das principais ideologias do nosso tempo não é
acidental. A persuasão não é possível sem que o seu apelo corresponda às nossas experiências
ou desejos ou, em outras palavras, a necessidades imediatas. Nessas questões, a plausibilidade
não advém nem de fatos científicos, como vários cientistas gostariam que acreditássemos, nem
de leis históricas, como pretendem os historiadores em seus esforços de descobrir a lei que leva
as civilizações ao surgimento e ao declínio. Toda ideologia que se preza é criada, mantida e
aperfeiçoada como arma política e não como doutrina teórica. É verdade que, às vezes, como
ocorreu no caso do racismo, uma ideologia muda o seu rumo político inicial, mas não se pode
imaginar nenhuma delas sem contato imediato com a vida política. Seu aspecto científico é
secundário. Resulta da necessidade de proporcionar argumentos aparentemente coesos, e
assume características reais, porque seu poder persuasório fascina também a cientistas,
desinteressados pela pesquisa propriamente dita e atraídos pela possibilidade de pregar à
multidão as novas interpretações da vida e do mundo.[5] É graças a esses pregadores "científicos", e não a quaisquer descobertas científicas, que não há praticamente
uma única ciência cujo sistema não tenha sido profundamente afetado por cogitações raciais.[6] Isso, por
sua vez, levou vários historiadores, alguns dos quais se viram tentados a responsabilizar a ciência pela
ideologia racista, a tomarem como causas certos resultados da pesquisa filológica ou biológica, quando se
tratava de consequências da ideologia racista. A doutrina do "Direito da Força" precisou de vários séculos
(do XVII ao XIX) para conquistar a ciência natural e formular a "lei" da sobrevivência dos mais aptos. E,
se, para dar outro exemplo, a teoria de De Maistre e Schelling, que dizia serem as tribos selvagens
resíduos em decomposição dos antigos povos, se houvesse ajustado tão bem aos mecanismos políticos do
século XIX quanto a teoria do progresso, provavelmente pouco teríamos ouvido falar de "seres
primitivos", e nenhum cientista teria perdido seu tempo à procura do "elo que faltava" entre o macaco e o
homem. A culpa não é da ciência em si, mas de certos cientistas não menos hipnotizados pelas ideologias
que os seus concidadãos menos cultos.
Embora seja óbvio que o racismo é a principal arma ideológica da política imperialista, ainda se crê na
antiga e errada noção de que o racismo é uma espécie de exagerado nacionalismo. Contudo, valiosos trabalhos de estudiosos, especialmente na França,
provaram que o racismo não é apenas um fenômeno a-nacional, mas tende a destruir a estrutura política
da nação. Diante da gigantesca competição entre a ideologia racial e a ideologia de classes pelo domínio
do espírito do homem moderno, já houve quem se inclinasse a ver numa a expressão de tendências
nacionais, que preparavam mentalmente para guerras civis, e na outra a expressão de tendências
internacionais, isto é, a preparação mental para a guerra entre as nações. Essa confusão foi possível
porque a Primeira Guerra Mundial continha uma curiosa mistura de antigos conflitos nacionais e novos
conflitos imperialistas, mistura na qual os antigos lemas nacionais demonstraram ter ainda, para as massas
dos países envolvidos, uma atração que superava qualquer objetivo imperialista. Contudo, a última
guerra, com seus Quislings e colaboracionistas em toda parte, deveria ter provado que o racismo engendra
conflitos civis em qualquer país, e que é um dos métodos mais engenhosos já inventados para preparar
uma guerra civil.
Porque a verdade é que as ideologias racistas ingressaram no palco da política ativa no momento em que
os povos europeus já haviam preparado, e até certo ponto haviam realizado, o novo corpo político da
nação. O racismo deliberadamente irrompeu através de todas as fronteiras nacionais, definidas por
padrões geográficos, linguísticos, tradicionais ou quaisquer outros, e negou a existência político-nacional
como tal. A. ideologia racial, e não a de classes, acompanhou o desenvolvimento da comunidade das
nações europeias, até se transformar em arma que destruiria essas nações. Historicamente falando, os
racistas, embora assumissem posições aparentemente ultranacionalistas, foram piores patriotas que os
representantes de todas as outras ideologias internacionais; foram os únicos que negaram o princípio
sobre o qual se constroem as organizações nacionais de povos — o princípio de igualdade e solidariedade
de todos os povos, garantido pela ideia de humanidade.
continua página 175...
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Parte II Imperialismo (2. O Pensamento Racial Antes do Racismo)
[1] Mesmo após o pacto germano-soviético (agosto de 1939), quando a propaganda nazista suspendeu todos os ataques ao
bolchevismo, nunca renunciou à sua linha racista.
[2] "Lettres de Alexis de Tocqueville et de Arthur de Gobineau", em Revue des Deux Mondes, 1907, tomo 199; carta de 17 de
novembro de 1853.
[3] A melhor análise histórica do pensamento racista, apresentada sob forma de "história de ideias", é de Erich Voegelin. (Rasse
undStaat [Raça e Estado], Tuebingen, 1933.)
[4] Sobre as muitas opiniões conflitantes do século XIX, ver Carlton J. H. Hayes, A gene-ration of materialism, Nova York, 1941,
pp. 111-2.
[5] "Huxley abandonou a sua própria pesquisa cientifica a partir dos anos 70, tão ocupado estava em seu papel de 'buldogue de
Darwin', de latir e morder os teólogos" (Hayes, op. cit., p. 126). A paixão de Ernest Haeckel de popularizar os resultados científicos,
tão forte quanto a sua paixão pela ciência, foi acentuada por um escritor nazista que o aplaudia, H. Bruecher, "Ernest Haeckel, ein Wegbereiter
biologischen Staatsdenkens", em Nationalsozialistische Monatshefte, 1935, vol. 69.
Dois exemplos um tanto extremos mostram do que são capazes os cientistas. Ambos eram reputados eruditos e escreveram
durante a Primeira Guerra Mundial. O historiador de arte alemão, Josef Strzygowski, em seu Altai, Irem und
Volkerwanderung (Leipzig, 1917), "descobriu" que a raça nórdica era constituída de alemães, ucranianos, armênios, persas,
húngaros e turcos (pp. 306-7). A Sociedade de Medicina de Paris não apenas publicou um relatório sobre a "poliquesia"
(defecação excessiva) e "bromidose" (cheiro de corpo) na raça alemã, mas propunha a análise da urina para a descoberta de
espiões alemães; "verificava-se" que a urina alemã continha 20% de nitrogênio não-úrico contra 15% das outras raças! (Ver
Jacques Barzun, Race, Nova York, 1937, p. 239.)
[6] Esse quidpro quo foi, em parte, resultado do zelo de estudiosos que queriam registrar cada circunstância na qual a raça
tenha sido mencionada. Dessa forma, confundiam autores relativamente inofensivos, para quem a explicação pela raça era
uma opinião possível e às vezes fascinante, com racistas completos. Tais opiniões, em si inócuas, eram propostas pelos
primeiros antropólogos como pontos de partida para suas investigações. Um exemplo típico é a ingênua hipótese de Paul
Broca, destacado antropólogo francês de meados do século passado, o qual afirmava que o "cérebro tem algo a ver com a
raça, e a mensuração do formato do crânio é a melhor maneira de determinar o conteúdo do cérebro". (Citado por Jacques
Barzun, op. cit., p. 162.) Ê óbvio que tal assertiva, sem o apoio de uma concepção da natureza do homem, é simplesmente
ridícula.
Quanto aos filólogos do início do século XIX, cujo conceito de "arianismo" levou quase todos os estudiosos do racismo a
contá-los entre os propagandistas ou até mesmo os inventores do pensamento racial, eles são tão inocentes quanto se possa
ser. Se ultrapassaram os limites da pesquisa pura, foi porque desejavam incluir na mesma irmandade cultural o maior
número de nações possível. Nas palavras de Ernest Seillière, Laphilosophie defimperialisme, 4 vols., 1903-6: "Houve uma
espécie de intoxicação: a civilização moderna acreditava ter recuperado seu pedigree (...) e nasceu um organismo que
abraçou numa única e mesma fraternidade todas as nações cuja língua mostrasse alguma afinidade com o sânscrito".
(Préface, tomo I, p. XXXV.) Em outras palavras, esses homens ainda pertenciam à tradição humanística do século XVIII, e
compartilhavam seu entusiasmo por povos estranhos e culturas exóticas.
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