quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte II Imperialismo (2. O Pensamento Racial Antes do Racismo)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte II 
IMPERIALISMO

Se eu pudesse, anexaria os planetas. 
Cecil Rhodes 

2. O Pensamento Racial Antes do Racismo

     Afirmou-se várias vezes que a ideologia racial foi uma invenção alemã. Se assim realmente fosse, então o "modo de pensar alemão" teria influenciado uma grande parte do mundo intelectual muito antes que os nazistas se engajassem na malograda tentativa de conquistar o mundo. Pois se o hitlerismo exerceu tão forte atração internacional e intereuropeia durante os anos 30, é porque o racismo, embora promovido a doutrina estatal só na Alemanha, refletia a opinião pública de todos os países. Se a máquina de guerra política dos nazistas já funcionava muito antes de setembro de 1939, quando os tanques alemães iniciaram a sua marcha destruidora invadindo a Polônia, é porque Hitler previa que na guerra política o racismo seria um aliado mais forte na conquista de simpatizantes do que qualquer agente pago ou organização secreta de quintas-colunas. Fortalecidos pela experiência de quase vinte anos, os nazistas sabiam que o melhor meio de propagar a sua ideia estava na sua política racial, da qual, a despeito de muitas outras concessões e promessas quebradas, nunca se haviam afastado por amor à conveniência.[1] O racismo não era arma nova nem secreta, embora nunca antes houvesse sido usada com tão meticulosa coerência.
     A verdade histórica de tudo isso é que a ideologia racista, com raízes profundas no século XVIII, emergiu simultaneamente em todos os países ocidentais durante o século XIX. Desde o início do século XX, o racismo reforçou a ideologia da política imperialista. O racismo absorveu e reviveu todos os antigos pensamentos racistas, que, no entanto, por si mesmos, dificilmente teriam sido capazes de transformar o racismo em ideologia. Em meados do século XIX, as opiniões racistas eram ainda julgadas pelo critério da razão política: Tocque-ville escreveu a Gobineau a respeito das doutrinas deste último que "elas são provavelmente erradas e certamente perniciosas".[2] Mas já no fim daquele século concederam-se ao pensamento racista dignidade e importância, como se ele fosse uma das maiores contribuições espirituais do mundo ocidental.[3]
     Até o período da "corrida para a África", o pensamento racista competia com muitas ideias livremente expressas que, dentro do ambiente geral de liberalismo, disputavam entre si a aceitação da opinião pública.[4] Somente algumas delas chegaram a tornar-se ideologias plenamente desenvolvidas, isto é, sistemas baseados numa única opinião suficientemente forte para atrair e persuadir um grupo de pessoas e bastante ampla para orientá-las nas experiências e situações da vida moderna. Pois a ideologia difere da simples opinião na medida em que se pretende detentora da chave da história, e em que julga poder apresentar a solução dos "enigmas do universo" e dominar o conhecimento íntimo das leis universais "ocultas", que supostamente regem a natureza e o homem. Poucas ideologias granjearam suficiente proeminência para sobreviver à dura concorrência da persuasão racional. Somente duas sobressaíram-se e praticamente derrotaram todas as outras: a ideologia que interpreta a história como uma luta econômica de classes, e a que interpreta a história como uma luta natural entre raças. Ambas atraíram as massas de tal forma que puderam arrolar o apoio do Estado e se estabelecer como doutrinas nacionais oficiais. Mas, mesmo além das fronteiras dentro das quais a ideologia racial e a ideologia de classes formaram moldes obrigatórios de pensamento, a opinião pública livre as adotou de tal modo que não apenas os intelectuais, mas até grandes massas, rejeitam apresentações de fatos, passados ou presentes, que não se ajustem a uma delas.
     A extraordinária força de persuasão decorrente das principais ideologias do nosso tempo não é acidental. A persuasão não é possível sem que o seu apelo corresponda às nossas experiências ou desejos ou, em outras palavras, a necessidades imediatas. Nessas questões, a plausibilidade não advém nem de fatos científicos, como vários cientistas gostariam que acreditássemos, nem de leis históricas, como pretendem os historiadores em seus esforços de descobrir a lei que leva as civilizações ao surgimento e ao declínio. Toda ideologia que se preza é criada, mantida e aperfeiçoada como arma política e não como doutrina teórica. É verdade que, às vezes, como ocorreu no caso do racismo, uma ideologia muda o seu rumo político inicial, mas não se pode imaginar nenhuma delas sem contato imediato com a vida política. Seu aspecto científico é secundário. Resulta da necessidade de proporcionar argumentos aparentemente coesos, e assume características reais, porque seu poder persuasório fascina também a cientistas, desinteressados pela pesquisa propriamente dita e atraídos pela possibilidade de pregar à multidão as novas interpretações da vida e do mundo.[5] É graças a esses pregadores "científicos", e não a quaisquer descobertas científicas, que não há praticamente uma única ciência cujo sistema não tenha sido profundamente afetado por cogitações raciais.[6] Isso, por sua vez, levou vários historiadores, alguns dos quais se viram tentados a responsabilizar a ciência pela ideologia racista, a tomarem como causas certos resultados da pesquisa filológica ou biológica, quando se tratava de consequências da ideologia racista. A doutrina do "Direito da Força" precisou de vários séculos (do XVII ao XIX) para conquistar a ciência natural e formular a "lei" da sobrevivência dos mais aptos. E, se, para dar outro exemplo, a teoria de De Maistre e Schelling, que dizia serem as tribos selvagens resíduos em decomposição dos antigos povos, se houvesse ajustado tão bem aos mecanismos políticos do século XIX quanto a teoria do progresso, provavelmente pouco teríamos ouvido falar de "seres primitivos", e nenhum cientista teria perdido seu tempo à procura do "elo que faltava" entre o macaco e o homem. A culpa não é da ciência em si, mas de certos cientistas não menos hipnotizados pelas ideologias que os seus concidadãos menos cultos.
     Embora seja óbvio que o racismo é a principal arma ideológica da política imperialista, ainda se crê na antiga e errada noção de que o racismo é uma espécie de exagerado nacionalismo. Contudo, valiosos trabalhos de estudiosos, especialmente na França, provaram que o racismo não é apenas um fenômeno a-nacional, mas tende a destruir a estrutura política da nação. Diante da gigantesca competição entre a ideologia racial e a ideologia de classes pelo domínio do espírito do homem moderno, já houve quem se inclinasse a ver numa a expressão de tendências nacionais, que preparavam mentalmente para guerras civis, e na outra a expressão de tendências internacionais, isto é, a preparação mental para a guerra entre as nações. Essa confusão foi possível porque a Primeira Guerra Mundial continha uma curiosa mistura de antigos conflitos nacionais e novos conflitos imperialistas, mistura na qual os antigos lemas nacionais demonstraram ter ainda, para as massas dos países envolvidos, uma atração que superava qualquer objetivo imperialista. Contudo, a última guerra, com seus Quislings e colaboracionistas em toda parte, deveria ter provado que o racismo engendra conflitos civis em qualquer país, e que é um dos métodos mais engenhosos já inventados para preparar uma guerra civil.
     Porque a verdade é que as ideologias racistas ingressaram no palco da política ativa no momento em que os povos europeus já haviam preparado, e até certo ponto haviam realizado, o novo corpo político da nação. O racismo deliberadamente irrompeu através de todas as fronteiras nacionais, definidas por padrões geográficos, linguísticos, tradicionais ou quaisquer outros, e negou a existência político-nacional como tal. A. ideologia racial, e não a de classes, acompanhou o desenvolvimento da comunidade das nações europeias, até se transformar em arma que destruiria essas nações. Historicamente falando, os racistas, embora assumissem posições aparentemente ultranacionalistas, foram piores patriotas que os representantes de todas as outras ideologias internacionais; foram os únicos que negaram o princípio sobre o qual se constroem as organizações nacionais de povos — o princípio de igualdade e solidariedade de todos os povos, garantido pela ideia de humanidade.

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[1] Mesmo após o pacto germano-soviético (agosto de 1939), quando a propaganda nazista suspendeu todos os ataques ao bolchevismo, nunca renunciou à sua linha racista.
[2] "Lettres de Alexis de Tocqueville et de Arthur de Gobineau", em Revue des Deux Mondes, 1907, tomo 199; carta de 17 de novembro de 1853.
[3] A melhor análise histórica do pensamento racista, apresentada sob forma de "história de ideias", é de Erich Voegelin. (Rasse undStaat [Raça e Estado], Tuebingen, 1933.)
[4] Sobre as muitas opiniões conflitantes do século XIX, ver Carlton J. H. Hayes, A gene-ration of materialism, Nova York, 1941, pp. 111-2.
[5] "Huxley abandonou a sua própria pesquisa cientifica a partir dos anos 70, tão ocupado estava em seu papel de 'buldogue de Darwin', de latir e morder os teólogos" (Hayes, op. cit., p. 126). A paixão de Ernest Haeckel de popularizar os resultados científicos, tão forte quanto a sua paixão pela ciência, foi acentuada por um escritor nazista que o aplaudia, H. Bruecher, "Ernest Haeckel, ein Wegbereiter biologischen Staatsdenkens", em Nationalsozialistische Monatshefte, 1935, vol. 69. Dois exemplos um tanto extremos mostram do que são capazes os cientistas. Ambos eram reputados eruditos e escreveram durante a Primeira Guerra Mundial. O historiador de arte alemão, Josef Strzygowski, em seu Altai, Irem und Volkerwanderung (Leipzig, 1917), "descobriu" que a raça nórdica era constituída de alemães, ucranianos, armênios, persas, húngaros e turcos (pp. 306-7). A Sociedade de Medicina de Paris não apenas publicou um relatório sobre a "poliquesia" (defecação excessiva) e "bromidose" (cheiro de corpo) na raça alemã, mas propunha a análise da urina para a descoberta de espiões alemães; "verificava-se" que a urina alemã continha 20% de nitrogênio não-úrico contra 15% das outras raças! (Ver Jacques Barzun, Race, Nova York, 1937, p. 239.)
[6] Esse quidpro quo foi, em parte, resultado do zelo de estudiosos que queriam registrar cada circunstância na qual a raça tenha sido mencionada. Dessa forma, confundiam autores relativamente inofensivos, para quem a explicação pela raça era uma opinião possível e às vezes fascinante, com racistas completos. Tais opiniões, em si inócuas, eram propostas pelos primeiros antropólogos como pontos de partida para suas investigações. Um exemplo típico é a ingênua hipótese de Paul Broca, destacado antropólogo francês de meados do século passado, o qual afirmava que o "cérebro tem algo a ver com a raça, e a mensuração do formato do crânio é a melhor maneira de determinar o conteúdo do cérebro". (Citado por Jacques Barzun, op. cit., p. 162.) Ê óbvio que tal assertiva, sem o apoio de uma concepção da natureza do homem, é simplesmente ridícula.
Quanto aos filólogos do início do século XIX, cujo conceito de "arianismo" levou quase todos os estudiosos do racismo a contá-los entre os propagandistas ou até mesmo os inventores do pensamento racial, eles são tão inocentes quanto se possa ser. Se ultrapassaram os limites da pesquisa pura, foi porque desejavam incluir na mesma irmandade cultural o maior número de nações possível. Nas palavras de Ernest Seillière, Laphilosophie defimperialisme, 4 vols., 1903-6: "Houve uma espécie de intoxicação: a civilização moderna acreditava ter recuperado seu pedigree (...) e nasceu um organismo que abraçou numa única e mesma fraternidade todas as nações cuja língua mostrasse alguma afinidade com o sânscrito". (Préface, tomo I, p. XXXV.) Em outras palavras, esses homens ainda pertenciam à tradição humanística do século XVIII, e compartilhavam seu entusiasmo por povos estranhos e culturas exóticas. 

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