Hannah Arendt
Parte I
ANTISSEMITISMO
Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória.
Roger Martin du Gard
Muitos ainda julgam que a ideologia nazista girou em torno do antissemitismo por acaso, e que desse
acaso nasceu a política que inflexivelmente visou a perseguir e, finalmente, exterminar os judeus. O
horror do mundo diante do resultado derradeiro, e, mais ainda, diante do seu efeito, constituído pelos
sobreviventes sem lar e sem raízes, deu à "questão judaica" a proeminência que ela passou a ocupar na
vida política diária. O que os nazistas apresentaram como sua principal descoberta — o papel dos judeus
na política mundial — e o que propagavam como principal alvo — a perseguição dos judeus no mundo
inteiro — foi considerado pela opinião pública mero pretexto, interessante truque demagógico para
conquistar as massas.
É bem compreensível que não se tenha levado a sério o que os próprios nazistas diziam. Provavelmente
não existe aspecto da história contemporânea mais irritante e mais mistificador do que o fato de, entre
tantas questões políticas vitais, ter cabido ao problema judaico, aparentemente insignificante e sem
importância, a duvidosa honra de pôr em movimento toda uma máquina infernal. Tais discrepâncias entre
a causa e o efeito constituem ultraje ao bom senso a tal ponto que as tentativas de explanar o antissemitismo parecem forjadas com o fito de salvar o equilíbrio mental dos que mantêm o senso de
proporção e a esperança de conservar o juízo.
Uma dessas apressadas explicações identifica o antissemitismo com desenfreado nacionalismo e suas
explosões de xenofobia. Mas, na verdade, o antissemitismo moderno crescia enquanto declinava o
nacionalismo tradicional, tendo atingido seu clímax no momento em que o sistema europeu de Estados
nações, com seu precário equilíbrio de poder, entrara em colapso.
Os nazistas não eram meros nacionalistas. Sua propaganda nacionalista era dirigida aos simpatizantes e
não aos membros convictos do partido. Ao contrário, este jamais se permitiu perder de vista o alvo
político supranacional. O "nacionalismo" nazista assemelhava-se à propaganda nacionalista da União
Soviética, que também é usada apenas como repasto aos preconceitos das massas. Os nazistas sentiam
genuíno desprezo, jamais abolido, pela estreiteza do nacionalismo e pelo provincianismo do Estado-nação. Repetiram muitas vezes que seu movimento, de âmbito internacional (como, aliás, é o movimento bolchevista),
era mais importante para eles do que o Estado, o qual necessariamente estaria limitado a um
território específico. E não só o período nazista mas os cinquenta anos anteriores da história
antissemita dão prova contrária à identificação do antissemitismo com o nacionalismo. Os
primeiros partidos antissemitas das últimas décadas do século XIX foram os primeiros a coligar
se em nível internacional. Desde o início, convocavam congressos internacionais, e
preocupavam-se com a coordenação de atividades em escala internacional ou, pelo menos,
intereuropeia.
Tendências gerais, como o declínio do Estado-nação coincidente com o crescimento do anti
semitismo, não podem ser explicadas por uma única razão ou causa. Na maioria desses casos, o
historiador depara com situação histórica complexa, na qual tem a liberdade (e isto quer dizer
perplexidade) de isolar um determinado fator como correspondente ao "espírito da época".
Existem, porém, algumas regras gerais que são úteis. A principal delas é a definição, por
Tocqueville (em L'Ancien Regime et Ia Révolution, livro II, capítulo 1), dos motivos do violento
ódio das massas francesas contra a aristocracia no início da Revolução — ódio que levou Burke
a observar que a Revolução se preocupava mais com "a condição de um cavalheiro" do que com
a instituição de rei. Segundo Tocqueville, o povo francês passou a odiar os aristocratas no
momento em que perderam o poder, porque essa rápida perda de poder não foi acompanhada de
qualquer redução de suas fortunas. Enquanto os nobres dispunham de vastos poderes, eram não
apenas tolerados mas respeitados. Ao perderem seus privilégios, e entre eles o privilégio de
explorar e oprimir, o povo descobriu que eles eram parasitas, sem qualquer função real na
condução do país. Em outras palavras, nem a opressão nem a exploração em si chegam a
constituir a causa de ressentimento: mas a riqueza sem função palpável é muito mais intolerável,
porque ninguém pode compreender — e consequentemente aceitar — por que ela deve ser
tolerada.
O antissemitismo alcançou o seu clímax quando os judeus haviam, de modo análogo, perdido as
funções públicas e a influência, e quando nada lhes restava senão sua riqueza. Quando Hitler
subiu ao poder, os bancos alemães, onde por mais de cem anos os judeus ocupavam posições
chave, já estavam qua-sejudenrein — desjudaízados —, e os judeus na Alemanha, após longo e
contínuo crescimento em posição social e em número, declinavam tão rapidamente que os
estatísticos prediziam o seu desaparecimento em poucas décadas. É verdade que as estatísticas
não indicam necessariamente processos históricos reais: mas é digno de nota que, para um
estatístico, a perseguição e o extermínio dos judeus pelos nazistas pudessem parecer uma
insensata aceleração de um processo que provavelmente ocorreria de qualquer modo, em termos
da extinção do judaísmo alemão.
O mesmo é verdadeiro em quase todos os países da Europa ocidental. O Caso Dreyfus não
ocorreu no Segundo Império, quando os judeus da França estavam no auge de sua prosperidade
e influência, mas na Terceira República, quando eles já haviam quase desaparecido das posições
importantes (embora não do cenário político). O antissemitismo austríaco tornou-se violento não sob o reinado de
Metternich e Francisco José, mas na República austríaca após 1918, quando era perfeitamente
óbvio que quase nenhum outro grupo havia sofrido tanta perda de influência e prestígio em
consequência do desmembramento da monarquia dos Habsburgos, quanto os judeus.
A perseguição de grupos impotentes, ou em processo de perder o poder, pode não constituir um
espetáculo agradável, mas não decorre apenas da mesquinhez humana. O que faz com que os
homens obedeçam ou tolerem o poder e, por outro lado, odeiem aqueles que dispõem da riqueza
sem o poder é a ideia de que o poder tem uma determinada função e certa utilidade geral. Até
mesmo a exploração e a opressão podem levar a sociedade ao trabalho e ao estabelecimento de
algum tipo de ordem. Só a riqueza sem o poder ou o distanciamento altivo do grupo que,
embora poderoso, não exerce atividade política são considerados parasitas e revoltantes, porque
nessas condições desaparecem os últimos laços que mantêm ligações entre os homens. A
riqueza que não explora deixa de gerar até mesmo a relação existente entre o explorador e o
explorado; o alheamento sem política indica a falta do menor interesse do opressor pelo
oprimido.
Contudo, o declínio dos judeus na Europa ocidental e central forma apenas o pano de fundo para
os eventos subsequentes, e explica tão pouco esses eventos como o fato de a aristocracia ter
perdido o poder explicaria a Revolução Francesa. Conhecer essas regras gerais é importante,
para que seja possível refutar as insinuações do aparente bom senso, segundo as quais o ódio
violento ou a súbita rebelião são necessariamente decorrentes do exercício de forte poder e de
abusos cometidos pelos que constituem o alvo do ódio, e que, consequentemente, o ódio
organizado contra os judeus só pode ter surgido como reação contra sua importância e o seu
poderio.
Mais séria parece outra argumentação: os judeus, por serem um grupo inteiramente impotente,
ao serem envolvidos nos conflitos gerais e insolúveis da época, podiam facilmente ser acusados
de responsabilidade por esses conflitos e apresentados como autores ocultos do mal. O melhor
exemplo — e a melhor refutação — dessa explicação, que é tão grata ao coração de muitos
liberais, está numa anedota contada após a Primeira Grande Guerra. Um antissemita alegava que
os judeus haviam causado a guerra. A resposta foi: "Sim, os judeus e os ciclistas". "Por que os
ciclistas?", pergunta um. "E por que os judeus?", pergunta outro.
A teoria que apresenta os judeus como eterno bode expiatório não significa que o bode
expiatório poderia também ser qualquer outro grupo? Essa teoria defende a total inocência da
vítima. Ela insinua não apenas que nenhum mal foi cometido mas, também, que nada foi feito
pela vítima que a relacionasse com o assunto em questão. Contudo, quem tenta explicar por que
um determinado bode expiatório se adapta tão bem a tal papel abandona nesse momento a teoria
e envolve-se na pesquisa histórica. E então o chamado bode expiatório deixa de ser a vítima
inocente a quem o mundo culpa por todos os seus pecados e através do qual deseja escapar ao
castigo; torna-se um grupo entre outros grupos, todos igualmente envolvidos nos problemas do mundo. O fato de ter sido
ou estar sendo vítima da injustiça e da crueldade não elimina a sua corresponsabilidade.
Até há pouco, a falta de lógica aparente na formulação da teoria do bode expiatório bastava para
descartá-la como escapista. Mas o surgimento do terror como importante arma dos governos
aumentou-lhe a credibilidade.
A diferença fundamental entre as ditaduras modernas e as tiranias do passado está no uso do
terror não como meio de extermínio e amedrontamento dos oponentes, mas como instrumento
corriqueiro para governar as massas perfeitamente obedientes. O terror, como o conhecemos
hoje, ataca sem provocação preliminar, e suas vítimas são inocentes até mesmo do ponto de
vista do perseguidor. Esse foi o caso da Alemanha nazista, quando a campanha de terror foi
dirigida contra os judeus, isto é, contra pessoas cujas características comuns eram aleatórias e
independentes da conduta individual específica. Na Rússia soviética a situação é mais confusa,
já que o sistema bolchevista, ao contrário do nazista, nunca admitiu em teoria o uso de terror
contra pessoas inocentes: tal afirmação, embora possa parecer hipócrita em vista de certas
práticas, faz muita diferença. Por outro lado, a prática russa é mais "avançada" do que a nazista
em um particular: a arbitrariedade do terror não é determinada por diferenças raciais, e a
aplicação do terror segundo a procedência sócio-econômica (de classe) do indivíduo foi
abandonada há tempos, de sorte que qualquer pessoa na Rússia pode subitamente tornar-se
vítima do terror policial. Não estamos interessados aqui na última consequência do exercício do
domínio pelo terror, que leva à situação na qual jamais ninguém, nem mesmo o executor, está
livre do medo; em nosso contexto, tratamos apenas da arbitrariedade com que as vítimas podem
ser escolhidas, e para isso é decisivo que sejam objetivamente inocentes, que sejam selecionadas
sem que se atente para o que possam ou não ter feito.
à primeira vista, isso pode parecer confirmação tardia da velha teoria do bode expiatório, e é
verdade que a vítima do terror moderno exibe todas as características do bode expiatório: no
sentido objetivo é absolutamente inocente, porque nada fez ou deixou de fazer que tenha alguma
ligação com o seu destino.
Há, portanto, uma tentação de voltar à explicação que automaticamente tira toda a
responsabilidade da vítima: ela parece corresponder à realidade em que nada nos impressiona
mais do que a completa inocência do indivíduo tragado pela máquina do terror, e a sua completa
incapacidade de mudar o destino pessoal. O terror, contudo, assume a simples forma do governo
só no último estágio do seu desenvolvimento. O estabelecimento de um regime totalitário requer
a apresentação do terror como instrumento necessário para a realização de uma ideologia
específica, e essa ideologia deve obter a adesão de muitos, até mesmo da maioria, antes que o
terror possa ser estabelecido. O que interessa ao historiador é que os judeus, antes de se
tornarem as principais vítimas do terror moderno, constituíam o centro de interesse da ideologia
nazista. Ora, uma ideologia que tem de persuadir e mobilizar as massas não pode escolher sua vítima arbitrariamente.
Em outras palavras, se o número de pessoas que acreditam na veracidade de uma fraude tão
evidente como os "Protocolos dos sábios do Sião" é bastante elevado para dar a essa fraude o
foro do dogma de todo um movimento político, a tarefa do historiador já não consiste em
descobrir a fraude, pois o fato de tantos acreditarem nela é mais importante do que a
circunstancia (historicamente secundária) de se tratar de uma fraude.
A explicação tipo bode expiatório escamoteia, portanto, a seriedade do antissemitismo e da
importância das razões pelas quais os judeus foram atirados ao centro dos acontecimentos.
Igualmente disseminada é a doutrina do "eterno antissemitismo", na qual o ódio aos judeus é
apresentado como reação normal e natural, e que se manifesta com maior ou menor virulência
segundo o desenrolar da história. Assim, as explosões do antissemitismo parecem não requerer
explicação especial, como consequências "naturais" de um problema eterno. É perfeitamente
natural que os antissemitas profissionais adotassem essa doutrina: é o melhor álibi possível para
todos os horrores. Se é verdade que a humanidade tem insistido em assassinar judeus durante
mais de 2 mil anos, então a matança de judeus é uma ocupação normal e até mesmo humana, e o
ódio aos judeus fica justificado, sem necessitar de argumentos.
O aspecto mais surpreendente dessa premissa é o fato de haver sido adotada por muitos
historiadores imparciais e até por um elevado número de judeus. Essa estranha coincidência
torna a teoria perigosa e desconcertante. Em ambos os casos, seu escapismo é evidente: como os
antissemitas desejam fugir à responsabilidade dos seus feitos, também os judeus, atacados e na
defensiva, ainda mais naturalmente recusam, sob qualquer circunstância, discutir a sua parcela
de responsabilidade. Contudo, as tendências escapistas dos apologistas oficiais baseiam-se em
motivos mais importantes e menos racionais.
O aparecimento e o crescimento do antissemitismo moderno foram concomitantes e interligados
à assimilação judaica, e ao processo de secularização e fenecimento dos antigos valores
religiosos e espirituais do judaísmo. Vastas parcelas do povo judeu foram, ao mesmo tempo,
ameaçadas externamente de extinção física e, internamente, de dissolução. Nessas condições, os
judeus que se preocupavam com a sobrevivência do seu povo descobriram, num curioso e
desesperado erro de interpretação, a ideia consoladora de que o antissemitismo, afinal de contas,
podia ser um excelente meio de manter o povo unido, de sorte que na existência de antissemitismo "eterno" estaria a eterna garantia da existência judaica. Essa atitude decerto
supersticiosa, relacionada com a fé em sua "eleição" por Deus e com a esperança messiânica,
era fortalecida pelo real fato de ter sido a hostilidade cristã, para os judeus, autêntico fator que,
durante muitos séculos, desempenhava o papel do poderoso agente preservador, espiritual e
político. Os judeus confundem o moderno antissemitismo com o antigo ódio religioso
antijudaico. Esse erro é compreensível: na sua assimilação, processada à margem do
cristianismo, os judeus desconheciam-lhe o aspecto religioso e cultural. Enfrentando o
cristianismo em declínio, os judeus podiam imaginar, em toda a inocência, que o antissemitismo
correspondia a uma espécie de retrocesso, à medieval e anacrônica "Idade das Trevas". A ignorância — ou a incompreensão do seu
próprio passado — foi, em parte, responsável pela fatal subestimação dos perigos reais e sem precedentes
que estavam por vir. Mas é preciso lembrar também que a inabilidade de análise política resultava da
própria natureza da história judaica, história de um povo sem governo, sem país e sem idioma. A história
judaica oferece extraordinário espetáculo de um povo, único nesse particular, que começou sua existência
histórica a partir de um conceito bem definido da história e com a resolução quase consciente de realizar
na terra um plano bem delimitado, e que depois, sem desistir dessa ideia, evitou qualquer ação política
durante 2 mil anos. Em consequência, a história política do povo judeu tornou-se mais dependente de
fatores imprevistos e acidentais do que a história de outras nações, de sorte que os judeus assumiam
diversos papéis na sua atuação histórica, tropeçando em todos e não aceitando responsabilidade precípua
por nenhum deles.
Após a catástrofe final, isto é, após a aniquilação quase completa dos judeus da Europa, a tese do antissemitismo eterno tornou-se mais perigosa do que nunca, pois ela poderia levar até à absolvição os mais
tenebrosos criminosos entre os antissemitas. Longe de garantir a sobrevivência do povo judeu, o antissemitismo ameaçou-o claramente de extermínio. Contudo, essa explicação do antissemitismo, tal como a
teoria do bode expiatório — e por motivos semelhantes —, sobreviveu ao confronto com a realidade, pois
ela acentua a absoluta inocência das vítimas do terror moderno, o que aparentemente é confirmado pelos
fatos. Em comparação com a teoria do bode expiatório, ela tem até a vantagem de responder à incômoda
questão "Por que os judeus e não outros?" de maneira simplória: eterna hostilidade.
É deveras notável que as doutrinas que ao menos tentam explicar o significado político do movimento
antissemita neguem qualquer responsabilidade específica da parte dos judeus e se recusem a discutir o
assunto nestes termos. Ao implicitamente recusarem abordar o significado da conduta humana,
assemelham-se às modernas práticas e formas dos governos que, por meio do terror arbitrário, liquidam a
própria possibilidade de ação humana. De certa forma, nos campos de extermínio nazistas os judeus eram
assassinados de acordo com a explicação oferecida por essas doutrinas à razão do ódio:
independentemente do que haviam feito ou deixado de fazer, independentemente de vício ou virtude
pessoais. Além disso, os próprios assassinos, apenas seguindo ordens e orgulhosos de sua desapaixonada
eficiência, assemelhavam-se sinistramente aos instrumentos "inocentes" de um ciclo inumano e impessoal
de eventos, exatamente como os considerava a doutrina do eterno antissemitismo.
Esses denominadores comuns entre a teoria e a prática não indicam, por si sós, a verdade histórica,
embora espelhem o caráter oportunista das opiniões popularmente propaladas, revelando e explicando por
que elas são tão facilmente aceitáveis pela multidão. O historiador se interessa por elas enquanto são parte
da história de que tratam, e na medida em que se interpõem no caminho de sua busca à verdade. Mas,
sendo contemporâneo dos eventos, o historiador é tão sujeito ao poder persuasório dessas opiniões como
qualquer outra pessoa.
Para o historiador dos tempos modernos é especialmente importante ter cuidado com as opiniões
geralmente aceitas, que dizem explicar tendências históricas, porque durante o último século foram
elaboradas numerosas ideologias que pretendem ser as "chaves da história", embora não passem de
desesperados esforços de fugir à responsabilidade.
Platão, em sua luta contra os sofistas, descobriu que a "arte universal de encantar o espírito com
argumentos" (Fedro, 261) nada tinha a ver com a verdade, mas só visava à conquista de opiniões, que são
mutáveis por sua pró-, pria natureza e válidas somente "na hora do acordo e enquanto dure o acordo"
(Teeteto, 172b). Descobriu também que a verdade ocupa uma posição muito instável no mundo, pois as
opiniões — isto é, "o que pode pensar a multidão", como escreveu — decorrem antes da persuasão do que
da verdade (Fedro, 260). A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e os modernos é simples: os
antigos se satisfaziam com a vitória passageira do argumento às custas da verdade, enquanto os modernos
querem uma vitória mais duradoura, mesmo que às custas da realidade. Em outras palavras, aqueles
destruíam a dignidade do pensamento humano, enquanto estes destroem a dignidade da ação humana. O
filósofo preocupava-se com os manipuladores da lógica, enquanto o historiador vê obstáculos nos
modernos manipuladores dos fatos, que destroem a própria história e sua inteligibilidade, colocada em
perigo sempre que os fatos deixam de ser considerados parte integrante do mundo passado e presente,
para serem indevidamente usados a fim de demonstrar esta ou aquela opinião.
É certo que seria difícil encontrar o caminho no labirinto dos fatos desarticulados, se fossem abandonadas
as opiniões e rejeitada a tradição. Contudo, essas perplexidades da historiografia são consequências
ínfimas se forem consideradas as profundas transformações do nosso tempo e o seu efeito sobre as
estruturas históricas do mundo ocidental. Dessas transformações resultou o desnudamento dos
componentes, antes ocultos, de nossa história. Isso não significa que o que desabou na crise (talvez a mais
profunda na história do Ocidente desde a queda do Império Romano) foi mera fachada que encobria esses
componentes, embora não passassem de fachada muitas coisas que, há apenas algumas décadas, eram
consideradas essenciais.
A simultaneidade entre o declínio do Estado-nação europeu e o crescimento de movimentos antissemitas,
a coincidência entre a queda de uma Europa organizada em nações e o extermínio dos judeus, preparado
pela vitória do antissemitismo sobre todos os outros ismos que competiam na luta pela persuasão e
conquista da opinião pública, têm de ser interpretadas como sério elemento no estudo da origem do antissemitismo. O antissemitismo moderno deve ser encarado dentro da estrutura geral do desenvolvimento do
Estado-nação, enquanto, ao mesmo tempo, sua origem deve ser encontrada em certos aspectos da história
judaica e nas funções especificamente judaicas, isto é, desempenhadas pelos judeus no decorrer dos
últimos séculos. Se no estágio final da desintegração os slogans antissemitas constituíam o meio mais
eficaz de inspirar grandes massas para levá-las à expansão imperialista e à destruição das velhas formas
de governo, então a história da relação entre os judeus e o Estado deve conter indicações elementares para entender a hostilidade entre certas camadas da
sociedade e os judeus. Trataremos disso no capítulo seguinte.
Se, além disso, a contínua expansão da ralé moderna — isto é, dos dé-classés provenientes de
todas as camadas — produziu líderes que, sem se preocuparem com o fato de serem ou não os
judeus suficientemente importantes para se tornarem o foco de uma ideologia política,
repetidamente viram neles a "chave da história" e a causa central de todos os males, então a
história das relações entre os judeus e a sociedade deve conter indicações elementares para
explicar a hostilidade entre a ralé e os judeus. Trataremos da relação entre os judeus e a
sociedade no terceiro capítulo.
O quarto capítulo ocupa-se do Caso Dreyfus, que foi uma espécie de ensaio geral para o
espetáculo do nosso próprio tempo. Analisamos o caso em todos os detalhes, dada a peculiar
oportunidade que oferece de, num breve momento histórico, revelar as potencialidades do antissemitismo, até então ocultas, como importante arma política dentro da estrutura política do
século XIX, e isto apesar da sua relativa sanidade.
Os três capítulos seguintes analisam, porém, apenas os elementos preparatórios, que chegaram
ao estágio da completa realização quando a decadência do Estado-nação e o surgimento do
imperialismo se destacaram concomitantemente no cenário político.
continua página 21...
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Parte I Antissemitismo (1. O Antissemitismo como uma ofensa ao bom senso)
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