quinta-feira, 5 de setembro de 2019

O Segundo Sexo - 49. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (1)

Simone de Beauvoir



49. Fatos e Mitos






IV




BRETON OU A POESIA 






Apesar do abismo que separa o mundo religioso de Claudel do universo poético de Breton, há uma analogia no papel que designam à mulher: ela é um elemento de perturbação; ela arranca o homem do sono da imanência; boca, chave, porta, ponte, é Beatriz iniciando Dante no além. "O amor do homem pela mulher, se nos dedicamos um minuto à observação do mundo sensível, persiste em atapetar o céu de flores gigantes e selvagens. Permanece o mais terrível obstáculo ao espírito que sente sempre a necessidade de se acreditar em lugar seguro." O amor a outra conduz ao amor ao Outro. "É no mais alto período do amor eletivo por determinado ser que se abrem inteiramente as comportas do amor pela humanidade..." Mas, para Breton, o além não é uma céu estranho: existe aqui mesmo; desvenda-se a quem sabe afastar os véus da trivialidade quotidiana; o erotismo, entre outras coisas, dissipa a ilusão do falso conhecimento. "Em nossos dias, o mundo sexual... não deixou, ao que eu saiba, de opor à nossa vontade de penetração do universo seu inquebrável núcleo de noite." Chocar-se contra o mistério é a única maneira de o descobrir. A mulher é enigma e põe enigmas; suas múltiplas caras, em se adicionando, compõem "o ser único em que nos é dado ver o último avatar de Esfinge"; e é por isso que ela é revelação. "Eras a própria imagem do segredo", diz Breton a uma mulher amada. E um pouco adiante: "A revelação que me trazia, antes mesmo de saber em que consistia, soube que era uma revelação". Isso significa que a mulher é poesia. É o papel que desempenha também em Gérard de Nerval; mas em Sylvie e Aurélia ela tem a consciência de uma recordação ou de um fantasma, porque o sonho, mais verdadeiro do que o real, não coincide exatamente com este. Para Breton, a coincidência é perfeita: só há um mundo; a poesia está objetivamente presente nas coisas e a mulher é, sem equívoco, um ser de carne e osso. Encontramo-la, não num meio sono, mas bem acordados, durante um dia vulgar que tem sua data como todos os outros dias do calendário — 5 de abril, 12 de abril, 4 de outubro, 29 de maio — e num cenário comum: um café, uma esquina. Mas sempre ela se distingue por algum traço insólito. Nadja "caminha de cabeça erguida contrariamente aos demais passantes. . . curiosamente pintada. . . Nunca vira olhos assim". Breton interpela-a. "Ela sorriu, mas muito misteriosamente, dir-se-ia, como que com conhecimento de causa." Em L'Amour fou: "Essa jovem mulher que acabava de entrar estava como que envolvida em vapor — vestida de fogo?... E posso bem dizer que naquele lugar, a 29 de maio de 1934, essa mulher era escandalosamente bela" (1). De imediato o poeta reconhece que ela tem um papel a desempenhar em seu destino; por vezes, é apenas um papel fugidio, secundário; assim a menina com olhos de Dalila em Les Vases Communicants. Mesmo então pequenos milagres nascem em torno dela: tendo um encontro com essa Dalila, Breton no mesmo dia lê um artigo simpático assinado por um amigo perdido de vista há muito tempo e chamado Sansão. 


(1) É de Breton o grifo.


Às vezes, os prodígios multiplicam-se; a desconhecida de 29 de maio, ondina que fazia um número de natação em um music-hall, fora anunciada por um trocadilho ouvido em um restaurante sobre o tema "Ondine, on dîne" (2); e sua primeira longa saída com o poeta fora minuciosamente descrita em um poema composto por ele onze anos antes. A mais extraordinária dessas feiticeiras é Nadja: ela prediz o futuro, de seus lábios brotam as palavras e as imagens que o amigo tem no mesmo instante no espírito; seus sonhos e desenhos são oráculos: "Sou a alma errante", diz ela; conduz-se na vida "de uma maneira singular, só se baseando na pura intuição e participando sem cessar do prodígio"; em torno dela o acaso objetivo semeia em profusão estranhos acontecimentos; ela é tão maravilhosamente liberta das aparências, que desdenha as leis e a razão: acaba num hospício. Era "um gênio livre, algo como um desses espíritos do ar que certas práticas mágicas permitem momentaneamente prender-se a alguma coisa mas aos quais não seria possível submeter-se". Por causa disso, ela malogra em desempenhar plenamente seu papel feminino. Vidente, pítia, inspirada, ela situa-se próximo demais das criaturas irreais que visitavam Gérard de Nerval; ela abre as portas do mundo supra-real: mas é incapaz de dá-lo porque não poderia dar-se ela própria. É no amor que a mulher se realiza e é realmente atingida; singular, aceitando um destino singular — e não flutuando sem raízes através do universo — é então que ela resume Tudo. O momento em que sua beleza atinge sua mais elevada expressão é essa hora da noite em que "ela é o espelho perfeito no qual tudo o que foi, tudo o que foi chamado a ser banha-se adoravelmente no que vai ser desta vez". Para Breton, "encontrar o lugar e a fórmula" confunde-se com o "possuir a verdade numa alma e num corpo". E essa posse só é possível no amor recíproco, amor carnal, bem entendido. "O retrato da mulher que se ama deve ser não somente uma imagem à qual se sorri, mas ainda um oráculo que se interroga"; mas só será oráculo se a própria mulher for outra coisa que não uma simples ideia ou imagem; deve ser "a pedra angular do mundo material"; para o vidente esse mesmo mundo é que é poesia e cumpre que nesse mundo ele possua realmente Beatriz. "O amor recíproco é o único que condiciona a magnetização total sobre a qual não há domínio possível, que faz com que a carne seja sol e marca esplêndida na carne, que o espírito seja nascente sempre jorrando, inalterável, sempre viva e cuja água se oriente uma vez por todas entre as maravilhas e os serpões". 


(2) Trata-se de um trocadilho intraduzível: "Ondina, janta-se" (N. do T.).


Esse amor indestrutível só poderia ser único. O paradoxo da atitude de Breton está em que, dos Vases Communcants a Arcane 17, ele se obstina em dedicar um amor único e eterno a mulheres diferentes. Mas, a seu ver, são as circunstâncias sociais que, impedindo a liberdade de escolha, conduzem o homem a escolhas infelizes; de resto, através desses erros, ele busca em verdade uma mulher. E se ele recordar os rostos amados, "só descobrirá igualmente um em todos os rostos de mulheres: o último rosto amado (1)". "Quantas vezes, ademais, pude verificar que, sob aparências inteiramente dessemelhantes, de um a outro desses rostos um traço comum dos mais excepcionais procurava definir." À ondina de L'Amour fou, êle pergunta: "Sois vós finalmente essa mulher? É somente hoje que devíeis vir?" Mas em Arcane 17: "Bem sabes que, ao te ver pela primeira vez, sem hesitação te reconheci". Em um mundo acabado, renovado, o casal seria, em consequência de um dom recíproco e absoluto, indissolúvel: se a bem-amada é tudo, como haveria lugar para outra? Ela é essa outra também; e tanto mais plenamente quanto é mais ela mesma. "O insólito é inseparável do amor. Porque és única não podes deixar de ser sempre outra para mim, outra tu mesma. Através da diversidade dessas flores inumeráveis ao longe, é a ti cambiante que eu amo, de camisola vermelha, nua, de camisola cinzenta." E, a propósito de uma mulher diferente mas igualmente única, Breton escreve: "O amor recíproco tal qual o encaro, é um conjunto de espelhos que refletem, sob os mil ângulos que pode assumir para mim o desconhecido, a imagem fiel da pessoa que amo, sempre mais surpreendente de adivinhação de meu próprio desejo e mais dotada de vida". 


(1) O grifo é de Breton.




continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente

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O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)

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