Simone de Beauvoir
49. Fatos e Mitos
IV
BRETON OU A POESIA
(1) É de Breton o grifo.
Às vezes, os prodígios multiplicam-se; a desconhecida de 29 de maio, ondina que fazia um número de natação em um music-hall, fora anunciada por um trocadilho ouvido em um restaurante sobre o tema "Ondine, on dîne" (2); e sua primeira longa saída com o poeta fora minuciosamente descrita em um poema composto por ele onze anos antes. A mais extraordinária dessas feiticeiras é Nadja: ela prediz o futuro, de seus lábios brotam as palavras e as imagens que o amigo tem no mesmo instante no espírito; seus sonhos e desenhos são oráculos: "Sou a alma errante", diz ela; conduz-se na vida "de uma maneira singular, só se baseando na pura intuição e participando sem cessar do prodígio"; em torno dela o acaso objetivo semeia em profusão estranhos acontecimentos; ela é tão maravilhosamente liberta das aparências, que desdenha as leis e a razão: acaba num hospício. Era "um gênio livre, algo como um desses espíritos do ar que certas práticas mágicas permitem momentaneamente prender-se a alguma coisa mas aos quais não seria possível submeter-se". Por causa disso, ela malogra em desempenhar plenamente seu papel feminino. Vidente, pítia, inspirada, ela situa-se próximo demais das criaturas irreais que visitavam Gérard de Nerval; ela abre as portas do mundo supra-real: mas é incapaz de dá-lo porque não poderia dar-se ela própria. É no amor que a mulher se realiza e é realmente atingida; singular, aceitando um destino singular — e não flutuando sem raízes através do universo — é então que ela resume Tudo. O momento em que sua beleza atinge sua mais elevada expressão é essa hora da noite em que "ela é o espelho perfeito no qual tudo o que foi, tudo o que foi chamado a ser banha-se adoravelmente no que vai ser desta vez". Para Breton, "encontrar o lugar e a fórmula" confunde-se com o "possuir a verdade numa alma e num corpo". E essa posse só é possível no amor recíproco, amor carnal, bem entendido. "O retrato da mulher que se ama deve ser não somente uma imagem à qual se sorri, mas ainda um oráculo que se interroga"; mas só será oráculo se a própria mulher for outra coisa que não uma simples ideia ou imagem; deve ser "a pedra angular do mundo material"; para o vidente esse mesmo mundo é que é poesia e cumpre que nesse mundo ele possua realmente Beatriz. "O amor recíproco é o único que condiciona a magnetização total sobre a qual não há domínio possível, que faz com que a carne seja sol e marca esplêndida na carne, que o espírito seja nascente sempre jorrando, inalterável, sempre viva e cuja água se oriente uma vez por todas entre as maravilhas e os serpões".
(2) Trata-se de um trocadilho intraduzível: "Ondina, janta-se" (N. do T.).
Esse amor indestrutível só poderia ser único. O paradoxo da atitude de Breton está em que, dos Vases Communcants a Arcane 17, ele se obstina em dedicar um amor único e eterno a mulheres diferentes. Mas, a seu ver, são as circunstâncias sociais que, impedindo a liberdade de escolha, conduzem o homem a escolhas infelizes; de resto, através desses erros, ele busca em verdade uma mulher. E se ele recordar os rostos amados, "só descobrirá igualmente um em todos os rostos de mulheres: o último rosto amado (1)". "Quantas vezes, ademais, pude verificar que, sob aparências inteiramente dessemelhantes, de um a outro desses rostos um traço comum dos mais excepcionais procurava definir." À ondina de L'Amour fou, êle pergunta: "Sois vós finalmente essa mulher? É somente hoje que devíeis vir?" Mas em Arcane 17: "Bem sabes que, ao te ver pela primeira vez, sem hesitação te reconheci". Em um mundo acabado, renovado, o casal seria, em consequência de um dom recíproco e absoluto, indissolúvel: se a bem-amada é tudo, como haveria lugar para outra? Ela é essa outra também; e tanto mais plenamente quanto é mais ela mesma. "O insólito é inseparável do amor. Porque és única não podes deixar de ser sempre outra para mim, outra tu mesma. Através da diversidade dessas flores inumeráveis ao longe, é a ti cambiante que eu amo, de camisola vermelha, nua, de camisola cinzenta." E, a propósito de uma mulher diferente mas igualmente única, Breton escreve: "O amor recíproco tal qual o encaro, é um conjunto de espelhos que refletem, sob os mil ângulos que pode assumir para mim o desconhecido, a imagem fiel da pessoa que amo, sempre mais surpreendente de adivinhação de meu próprio desejo e mais dotada de vida".
(1) O grifo é de Breton.
continua...
280
_________________
O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR
Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.
Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.
Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.
4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES
______________________
Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.
No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.
________________________
Leia também:
O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado
O Segundo Sexo - 38. Fatos e Mitos: Mulher! És a porta do diabo
O Segundo Sexo - 39. Fatos e Mitos: A Mãe
O Segundo Sexo - 40. Fatos e Mitos: A Alma e a Ideia
O Segundo Sexo - 41. Fatos e Mitos: ... a expressão "ter uma mulher"...
O Segundo Sexo - 42. Fatos e Mitos: A mãe, a noiva fiel, a esposa paciente
O Segundo Sexo - 43. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo
O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)
O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (3)
O Segundo Sexo - 45. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (1)
O Segundo Sexo - 46. Fatos e Mitos: D. H. Lawrence ou o orgulho fálico (2)
O Segundo Sexo - 47. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (1)
O Segundo Sexo - 48. Fatos e Mitos: Claudel e a serva do Senhor (2)
O Segundo Sexo - 50. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (2)
Nenhum comentário:
Postar um comentário