quinta-feira, 19 de setembro de 2019

O Segundo Sexo - 50. Fatos e Mitos: Breton ou a Poesia (2)

Simone de Beauvoir



50. Fatos e Mitos






IV




BRETON OU A POESIA 



continuando...



Essa mulher única, a um tempo carnal e artificial, natural e humana, tem o mesmo sortilégio que os objetos equívocos que amam os surrealistas: é semelhante à colher-sapato, à mesa-lobo, à pedra de açúcar de mármore que o poeta descobre no mercado de bugigangas ou inventa em sonho; ela participa do segredo dos objetos familiares repentinamente descobertos em sua verdade; e do das plantas e das pedras. Ela é todas as coisas: 


Minha mulher de cabelos de fogueira
De pensamentos como relâmpagos de verão
De cintura de ampulheta
. . .Minha mulher de sexo de alga e confeitos antigos
. . .Minha mulher de olhos de savana


Mas principalmente ela é, para além de todas as coisas, a Beleza. A beleza não é para Breton uma ideia que se contempla e sim uma realidade que não se revela — portanto não existe — senão através da paixão; só pela mulher há beleza no mundo.

"É aí, bem no fundo do cadinho humano, nessa região paradoxal em que a fusão de dois seres que se escolheram realmente restitui a todas as coisas os valores perdidos do tempo dos antigos sóis, em que, entretanto, a solidão também reina violentamente, em virtude de uma dessas fantasias da Natureza que quer que em volta das crateras do Alasca a neve permaneça sob a cinza, aí foi que há anos pedi que fossem buscar a beleza nova, a beleza considerada exclusivamente para fins passionais."

"A beleza convulsiva será erótica, velada, explosivo-fixa, mágico-circunstancial, ou não será." 

É da mulher que tudo o que é, tira seu sentido. "É precisamente pelo amor e somente pelo amor que se realiza no mais alto grau a fusão da essência e da existência." Ela se realiza para os amantes e, conseqüentemente, para todo o mundo. "A recriação, a recoloração perpétua do mundo em um só ser, tal como se realizam pelo amor, iluminam com mil raios de lua o mundo da terra." Para todos os poetas — ou quase — a mulher encarna a Natureza; mas segundo Breton ela não a exprime somente: liberta-a. Porque a Natureza não fala uma linguagem clara, é preciso penetrar-lhe os arcanos para apreender sua verdade que é a mesma coisa que sua beleza: a poesia não é simplesmente o reflexo disso mas antes sua chave; e a mulher aqui não se distingue da poesia. Eis por que ela é a mediadora necessária, sem a qual toda a terra se cala: "A Natureza só está sujeita a iluminar-se e apagar-se, a me servir e desservir na medida em que se avivam e diminuem em mim as chamas de um fogo que é o amor, o único amor, o de um ser. Conheci, na ausência desse amor, verdadeiros céus vazios. Só faltava um grande íris de fogo saindo de mim para dar valor ao que existe.. . Contemplo até a vertigem tuas mãos abertas em cima de fogueira de cavacos que acabamos de acender e que crepita, tuas mãos encantadoras, tuas mãos transparentes que adejam sobre o fogo de minha vida." Toda mulher amada por Breton é uma maravilha natural: "Uma pequena avenca inesquecível subindo pelo muro interno de um velhíssimo poço". "... Não sei que de ofuscante e de tão grave que ela só podia lembrar... a grande necessidade física natural fazendo ao mesmo tempo sonhar com a displicência de certas flores altas que principiam a desabrochar." Mas, inversamente, toda maravilha natural confunde-se com a amada; é ela que exalta quando se comove com uma gruta, uma flor, uma montanha. Entre a mulher que aquece as mãos junto ao Teide e o próprio Teíde toda distância se extingue. O poeta invoca ambos numa mesma prece: "Teide admirável! Toma minha vida! Boca do céu ao mesmo tempo que dos infernos, prefiro-te assim enigmática, assim capaz de elevar às nuvens a beleza natural e de tudo devorar".

A beleza é mais ainda do que a beleza; ela confunde-se com a "noite profunda do conhecimento"; é a verdade, a eternidade, o absoluto; não é um aspecto temporal e contingente do mundo que a mulher liberta, é sua essência necessária, não uma essência imota como a imaginava Platão mas "explosívo-fixa". "Não descubro em mim outro tesouro senão a chave que me abre esse prado sem limites desde que te conheci, esse prado feito da repetição de uma só planta sempre mais alta, cujo balancim de amplitude sempre maior me conduzirá até a morte.. . Pois uma mulher e um homem que até o fim dos tempos deverão ser tu e eu, deslizarão por sua vez até a perda do atalho, se nunca retornar, na luz oblíqua, nos confins da vida e do esquecimento da vida... A maior esperança, isto é, a que resume todas as outras, é a esperança que isso aconteça para todos e que para todos dure, que o dom absoluto de um ser a outro, que não pode existir sem reciprocidade, seja aos olhos de todos, a única ponte natural e sobrenatural jogada sobre a vida."

Assim, pelo amor que inspira e partilha, a mulher é para todo homem a única salvação possível. Em Arcane 17, essa missão se amplia e precisa: a mulher deve salvar a humanidade. Breton desde sempre se inscreveu na tradição de Fourier que, reclamando a reabilitação da carne, exalta a mulher como objeto erótico; é normal que chegue à ideia saint-simoniana da mulher regeneradora. Na sociedade atual é o homem que domina, a ponto de constituir um insulto na boca de um Gourmont dizer de Rimbaud: "Temperamento de mulher!" Entretanto, "teria chegado o momento de valomar as ideias da mulher em detrimento das do homem, cuja falência se consuma assaz tumultuosamente hoje. .. Sim, é sempre a mulher perdida, a que canta na imaginação do homem, mas, ao fim de tantas provações para ela e para ele, deve ser também a mulher reencontrada. E antes de tudo é preciso que a mulher se reencontre a si mesma, que ela aprenda a se reconhecer através dos infernos a que a votou, sem um socorro mais do que problemático, a ideia que o homem em geral tem dela".

O papel que ela deveria desempenhar é antes de mais nada pacificador. "Sempre me estupidificou não ter sua voz se feito ouvir então, não ter ela pensado em tirar todo o proveito possível, todo o imenso proveito das duas inflexões irresistíveis e sem preço que lhe são dadas, uma para falar ao homem, outra para atrair a si toda a confiança da criança. Que prodígio, que futuro não teria tido o grande grito de recusa e de alarma da mulher, esse grito sempre em potência.. . Quando surgirá uma mulher simplesmente mulher para realizar o maior milagre, o de estender os braços entre os que vão lutar e dizer-lhes: Sois irmãos." Se a mulher se apresenta hoje como inadaptada, mal equilibrada, é em conseqüência do tratamento que lhe infligiu a tirania masculina; mas ela conserva um poder milagroso pelo fato de mergulhar suas raízes nas fontes vivas da vida, cujos segredos os homens perderam. "Mélusine, semi-retomada pela vida pânica, Mélusine de vínculos inferiores de pedregulhos ou ervas aquáticas, ou de penugem noturna, é a ela que eu invoco, só ela creio capaz de pôr fim à nossa época selvagem. É a mulher em sua totalidade, e no entanto tal qual é hoje, a mulher privada de seu alicerce humano, prisioneira de suas raízes movediças, como queiram, mas através destas em comunicação providencial com as forças elementares da Natureza. . . A mulher privada de seu equilíbrio humano, assim o quer a lenda, pela impaciência e pelo ciúme do homem."

Hoje convém, portanto, tomar o partido da mulher; enquanto se espera que lhe tenha sido restituído, na vida, seu verdadeiro valor, chegou a hora "de na arte pronunciar-se inequivocamente contra o homem em favor da mulher". "A mulher-criança, A arte deve preparar sistematicamente seu advento a todo império do sensível." Por que a mulher-criança? Breton explica-o: "Escolho a mulher-criança, não em oposição à outra mulher, mas porque nela e somente nela, me parece residir em estado de transparência absoluta, o outro (1) prisma de visão..."


(1) O grifo é de Breton. 


Na medida em que é simplesmente assimilada a um ser humano, a mulher será tão incapaz quanto os seres humanos masculinos de salvar este mundo em perdição; é a feminilidade como tal que introduz na civilização esse elemento outro, que é a verdade da vida e da poesia e que pode, só ele, libertar a humanidade.

Sendo a perspectiva de Breton exclusivamente poética, é exclusivamente como poesia, portanto como outro que a mulher é nela encarada. Na medida em que nos interrogaríamos do destino dela, a resposta estaria implicada no ideal do amor recíproco. Ela não tem outra vocação senão o amor; e isto não constitui nenhuma inferioridade, porquanto a vocação do homem é também o amor. Entretanto, gostaríamos de saber se, para ela também, o amor é a chave do mundo, revelação da beleza; encontrará ela essa beleza em seu amante? Ou em sua própria imagem? Será ela capaz da atividade poética que realiza a poesia através de um ser sensível ou se restringirá a aprovar a obra de seu homem? Ela é a poesia em si, no imediato, isto é, para o homem; não nos dizem se o é também para si. Breton não fala da mulher enquanto sujeito. Nunca evoca a imagem da mulher má. No conjunto de sua obra — a despeito de alguns manifestos e panfletos onde ele invectiva o rebanho dos humanos — ele se dedica, não a inventariar as resistências superficiais do mundo, mas sim a revelar-lhe a secreta verdade: a mulher só o interessa porque é uma "boca" privilegiada. Profundamente ancorada na Natureza, bem próxima da terra, ela se apresenta também como a chave do além, Há em Breton o mesmo naturalismo esotérico que nos gnósticos que viam na Sofia o princípio da Redenção e até da Criação, que em Dante escolhendo Beatriz para guia e em Petrarca iluminado pelo amor de Laura. E é por isso que o ser mais ancorado na Natureza, mais próximo da terra é também a chave do além. Verdade, Beleza, Poesia, ela é Tudo: uma vez mais, tudo na figura do Outro, Tudo exceto ela mesma.



continua...
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O SEGUNDO SEXO
SIMONE DE BEAUVOIR

Entendendo o eterno feminino como um homólogo da alma negra, epítetos que representam o desejo da casta dominadora de manter em "seu lugar", isto é, no lugar de vassalagem que escolheu para eles, mulher e negro, Simone de Beauvoir, despojada de qualquer preconceito, elaborou um dos mais lúcidos e interessantes estudos sobre a condição feminina. Para ela a opressão se expressa nos elogios às virtudes do bom negro, de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, como na louvação da mulher realmente mulher, isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem.

Todavia, não esquece Simone de Beauvoir que a mulher é escrava de sua própria situação: não tem passado, não tem história, nem religião própria. Um negro fanático pode desejar uma humanidade inteiramente negra, destruindo o resto com uma explosão atômica. Mas a mulher mesmo em sonho não pode exterminar os homens. O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro. A divisão dos sexos é, com efeito, um dado biológico e não um momento da história humana.

Assim, à luz da moral existencialista, da luta pela liberdade individual, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, agora em 4.a edição no Brasil, considera os meios de um ser humano se realizar dentro da condição feminina. Revela os caminhos que lhe são abertos, a independência, a superação das circunstâncias que restringem a sua liberdade.


4.a EDIÇÃO - 1970
Tradução
SÉRGIO MILLIET
Capa
FERNANDO LEMOS
DIFUSÃO EUROPÉIA DO LIVRO
Título do original:
LE DEUXIÊME SEXE
LES FAITS ET LES MYTHES



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Segundo Sexo é um livro escrito por Simone de Beauvoir, publicado em 1949 e uma das obras mais celebradas e importantes para o movimento feminista. O pensamento de Beauvoir analisa a situação da mulher na sociedade.

No Brasil, foi publicado em dois volumes. “Fatos e mitos” é o volume 1, e faz uma reflexão sobre mitos e fatos que condicionam a situação da mulher na sociedade. “A experiência vivida” é o volume 2, e analisa a condição feminina nas esferas sexual, psicológica, social e política.



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Leia também:




O Segundo Sexo - 37. Fatos e Mitos: a masturbação é considerada um perigo e um pecado

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O Segundo Sexo - 44. Fatos e Mitos: Montherlant ou o Pão do Nojo (2)

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