terça-feira, 27 de outubro de 2020

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (2)

 Simone de Beauvoir




02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR




PRIMEIRA PARTE

FORMAÇÃO
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CAPÍTULO II
A   M O Ç A





É igualmente esse complexo que vai pesar sobre suas realizações intelectuais. Observou-se muitas vezes que a partir da puberdade a jovem perde terreno nos domínios intelectuais e artísticos. Há muitas razões para isso. Uma das mais frequentes está em que a adolescente não encontra em volta de si os incentivos que oferecem a seus irmãos; ao contrário: querem que ela seja também uma mulher e é-lhe preciso acumular as tarefas de seu trabalho profissional com as que sua feminilidade implica. A diretora de uma escola profissional faz a propósito as observações seguintes: 


A jovem torna-se repentinamente um ser que ganha a vida trabalhando. Tem novos desejos, que nada têm a ver com a família. Acontece frequentemente que deva fazer um esforço assaz considerável... Ela volta à noite para seu lar tomada de um cansaço colossal e com a cabeça cheia das ocorrências do dia... Como é então recebida? A mãe manda-a logo fazer alguma compra. Há também que terminar as tarefas caseiras deixadas em suspenso e cumpre-lhe ainda cuidar de sua roupa. É-lhe impossível dar atenção a todos os pensamentos íntimos que continuam a preocupá-la. Sente-se infeliz, compara sua situação com a do irmão que não tem deveres a cumprir em casa e revolta-se [1].

[1] Citado por Liepmann, Jeunesse et sexualité.

Os trabalhos caseiros ou as tarefas mundanas que a mãe não hesita em impor à estudante, à aprendiz, acabam de exauri-la. Vi, durante a guerra, alunas que eu preparava para Sèvres esmagadas pelas atividades familiares que se acrescentavam ao trabalho escolar: uma teve o mal de Pott, outra uma meningite. A mãe — vê-lo-emos — mostra-se surdamente hostil à libertação da filha, e mais ou menos deliberadamente esforça-se por freá-la. Respeitam o esforço que faz o adolescente para se tornar homem e desde logo lhe dão uma grande liberdade. Da moça exigem que fique em casa, fiscalizam-lhe as saídas: não a encorajam em absoluto a escolher seus divertimentos, seus prazeres. É raro ver mulheres organizarem sozinhas uma longa viagem, a pé ou de bicicleta, ou dedicar-se a um jogo como o de bilhar, de bolas etc. Além de uma falta de iniciativa que provém de sua educação, os costumes tornam-lhe a independência difícil. Se passeiam pelas ruas, olham-nas, abordam-nas. Conheço moças que, sem serem absolutamente tímidas, não encontram nenhum prazer em passear sozinhas por Paris porque, importunadas sem cessar, precisam andar sempre de atalaia: com isso todo o prazer se esvai. Se as estudantes correrem as ruas em bandos alegres como fazem os estudantes, dão espetáculo; andar a passos largos, cantar, falar alto, rir, comer uma maçã, são provocações, desde logo são insultadas ou seguidas ou abordadas. A despreocupação torna-se de imediato uma falta de compostura; esse controle de si a que a mulher é obrigada, e se torna uma segunda natureza na "moça bem comportada", mata a espontaneidade; a experiência viva é com isso dominada, do que resultam tensão e tédio. Esse tédio é comunicativo: as moças aborrecem-se logo umas das outras; não se prendem mutuamente a sua prisão; e é uma das razões que fazem tão necessária a companhia dos rapazes. Essa incapacidade de se bastar a si mesma engendra uma timidez que se estende por toda a vida e deixa marca em seu próprio trabalho: elas pensam que os triunfos brilhantes são reservados aos homens. Não ousam visar alto demais. Viu-se que, comparando-se com os meninos, as meninas de 14 anos diziam: "Os meninos são melhores". Essa convicção é debilitante. Incita à preguiça e à mediocridade. Uma moça que não tinha nenhuma deferência particular pelo sexo forte criticava a covardia de um homem; observaram-lhe que ela era também muito medrosa: "Ora uma mulher não é a mesma coisa", declarou com complacência.

A razão profunda desse derrotismo está em que a adolescente não se imagina responsável por seu futuro; julga inútil exigir muito de si mesma, porquanto não é dela finalmente que deve depender seu destino. Longe de se dedicar ao homem porque se sente inferior a ele, é porque a ele se acha destinada que, aceitando a ideia de sua inferioridade, ela a constitui.

Não será com efeito aumentando seu valor humano que ela se valorizará aos olhos dos homens: será moldando-se aos sonhos deles. Quando é ainda inexperiente, ela nem sempre o percebe. Acontece-lhe manifestar a mesma agressividade que os rapazes; tenta conquistá-los com uma autoridade brutal, uma franqueza orgulhosa: essa atitude leva-a quase certamente ao malogro. Da mais servil à mais altiva todas aprendem que para agradar-lhes é preciso abdicar. Suas mães as aconselham a não mais tratar os rapazes como colegas, a não darem os primeiros passos, a assumirem um pape] passivo. Se desejam esboçar uma amizade, um namoro, devem evitar cuidadosamente parecer tomar a iniciativa; os homens não gostam de mulher-homem, nem de mulher culta, nem de mulher que sabe o que quer: ousadia demais, cultura, inteligência, caráter, assustam-nos. Na maioria dos romances, como observa G. Eliot, é a heroína loura e tola que ganha da morena de caráter viril; e no Moinho à Beira do Floss, Maggie tenta em vão inverter os papéis; morre finalmente e é Lucy, a loura, que casa com Stephen; no Último dos Moicanos, é a insossa Alice que conquista o coração do herói e não a corajosa Clara; em Little Women a simpática Joe não passa de uma amiga de infância para Laurie: ele dedica seu amor à insípida Amy de cabelos encaracolados. Ser feminina é mostrar-se impotente, fútil, passiva, dócil. A jovem deverá não somente enfeitar-se, arranjar-se, mas ainda reprimir sua espontaneidade e substituir, a esta, a graça e o encanto estudados que lhe ensinam as mais velhas. Toda afirmação de si própria diminui sua feminilidade e suas probabilidades de sedução. O que torna relativamente fácil o início do rapaz na existência é que sua vocação de ser humano não contraria a de macho: já sua infância anuncia esse destino feliz. É realizando-se como independência e liberdade que ele adquire seu valor social e concomitantemente seu prestígio viril: o ambicioso, como Rastignac, visa ao dinheiro, à glória e às mulheres num mesmo movimento: uma das estereotipias que o estimulam é a do homem poderoso e célebre, que as mulheres adulam. Para a jovem, ao contrário, há divórcio entre sua condição propriamente humana e sua vocação feminina. E é por isso que a adolescência é para a mulher um momento tão difícil e tão decisivo. Até então, ela era um indivíduo autônomo: cumpre-lhe renunciar à sua soberania. Não somente ela é, como seus irmãos e de uma maneira mais aguda, cruelmente atormentada entre o passado e o futuro, mas ainda um conflito se estabelece entre sua reivindicação original, que é de ser indivíduo em atividade, liberdade, e suas tendências eróticas e solicitações sociais que a convidam a se assumir como objeto passivo. Ela se apreende espontaneamente como o essencial, de que maneira, pois, poderá concordar em tornar-se o inessencial? Mas se não posso realizar-me enquanto Outro, como renunciarei a meu Eu? Eis o angustiante dilema em face do qual a mulher em formação se debate. Oscilando do desejo ao nojo, da esperança ao medo, recusando o que almeja, está ainda em suspenso entre o momento da independência infantil e o da submissão feminina: é essa incerteza que lhe dá, ao sair da idade ingrata, um gosto ácido de fruto verde.

A jovem reage de maneira muito diferente segundo suas escolhas anteriores. A mulher comum, a futura matrona pode resignar-se facilmente à sua metamorfose; entretanto, ela pode também ter haurido em sua condição de burguesa, dona da casa, um pendor pela autoridade que a leva a revoltar-se contra o jugo masculino: ei-la disposta a fundar um matriarcado e não a tornar-se objeto erótico e criada. Será esse muitas vezes o caso das irmãs mais velhas que assumiram, muito jovens, importantes' responsabilidades. O "menino falhado", ao descobrir que é mulher, experimenta por vezes uma decepção violenta que a pode conduzir diretamente à homossexualidade; entretanto, o que ela procurava, na independência e na violência, era a posse do mundo, embora possa não querer renunciar ao poder de sua feminilidade, às experiências da maternidade, a toda uma parte de seu destino. Geralmente a jovem consente em sua feminilidade através de certas resistências: já no estádio do coquetismo infantil, em face do pai, em seus devaneios eróticos, ela conheceu o encanto da passividade; descobre-lhe o poder; à vergonha que lhe inspira sua carne, mistura- se muito cedo certa vaidade. Tal mão que a comoveu, tal olhar que a perturbou, era um chamado, uma prece; seu corpo apresenta-se-lhe como dotado de virtudes mágicas; é um tesouro, uma arma; tem orgulho dele. Seu coquetismo, que não raro desaparecera durante os anos de infância autônoma, ressuscita. Ela experimenta arrebiques e penteados; em lugar de esconder os seios, faz-lhes massagens para que cresçam, estuda o sorriso diante dos espelhos. A ligação entre a inquietação e a sedução é tão estreita que, em todos os casos em que a sensibilidade erótica não desperta, não se observa, no sujeito, nenhum desejo de agradar. Experiências mostram que doentes sofrendo de insuficiência tireoidiana, e consequentemente apáticas, tristonhas, podiam ser transformadas mediante injeção de extratos glandulares: põem-se a sorrir, tornam-se alegres e dengosas. Ousadamente, os psicólogos imbuídos de metafísica materialista declararam que o coquetismo era um "instinto" secretado pela glândula tireoidiana; mas essa explicação obscura só é válida aqui para a primeira infância. O fato é que em todos os casos de deficiência orgânica — linfatismo, anemia etc. o corpo é suportado como um fardo. Estranho, hostil, ele não espera nem promete nada; quando recobra seu equilíbrio e sua vitalidade, logo o sujeito o reconhece como seu e através dele transcende para outrem.

Para a jovem, a transcendência erótica consiste em aprender a se tornar presa. Ela torna-se um objeto; e apreende-se como objeto; é com surpresa que descobre esse novo aspecto de seu ser: parece-lhe que se desdobra. Ao invés de coincidir exatamente consigo, ei-la que começa a existir fora. Assim, em L'Invitation à la valse de Rosamond Lehman, vê-se Olivia descobrir num espelho uma imagem desconhecida: é ela-objeto erguido repentinamente em face de si mesma; a emoção que experimenta é transtornante mas dissipa-se depressa:



Desde algum tempo, uma emoção particular acompanhava o minuto em que se olhava assim dos pés a cabeça: de maneira imprevista e rara, acontecia que visse diante de si uma estranha, um novo ser.  

Isso produziu-se duas ou três vezes. Ela olhava-se num espelho, via-se. Mas que acontecia?... Agora o que via era outra coisa: um rosto misterioso, a um tempo sombrio e radioso; uma cabeleira transbordante de movimentos e de força e como que percorrida por correntes elétricas. Seu corpo — seria por causa do vestido — parecia-lhe juntar-se harmonicamente: centrar-se, desabrochar, flexível e estável ao mesmo tempo: vivo. Tinha diante de si, como um retrato, uma jovem de cor-de-rosa que todos os objetos do quarto, refletidos no espelho, pareciam enquadrar, apresentar, murmurando: é você...


O que deslumbra Olivia são as promessas que acredita ler nessa imagem em que reconhece seus sonhos infantis e que é ela própria; mas a moça ama também, na sua presença carnal, esse corpo que a maravilha como o de uma outra. Ela se acaricia a si própria, beija a curva do ombro, a concavidade do braço, contempla o seio, as pernas; o prazer solitário torna-se pretexto para devaneios, neles busca uma terna posse de si. No adolescente, há uma oposição entre o amor de si mesmo e o impulso erótico que o impele para o objeto a ser possuído: seu narcisismo desaparece geralmente no momento da maturidade sexual. Ao passo que na mulher, sendo ela um objeto passivo para o amante como para si mesma, há em seu erotismo uma indistinção primitiva. Num movimento complexo, ela visa a glorificação de seu corpo através das homenagens dos homens a quem se destina esse corpo; e seria simplificar as coisas dizer que ela quer ser bela para seduzir ou que busca seduzir para se assegurar que é bela: na solidão de seu quarto, nos salões em que tenta atrair os olhares, não separa o desejo do homem do amor a seu próprio eu. Essa confusão é manifesta em Maria Bashkirtseff. Já vimos que uma desmama tardia a predispôs, mais vivamente do que qualquer outra criança, a querer ser encarada e valorizada por outrem; desde a idade de 5 anos até sair da adolescência, ela dedica todo o seu amor à sua imagem; admira loucamente suas mãos, seu rosto, sua graça, escreve: "Sou minha heroína..." Quer ser cantora para ser olhada por um público deslumbrado e em compensação medi-lo altivamente; mas esse "autismo" traduz-se por sonhos romanescos; desde a idade de 12 anos sente-se amorosa: é que espera ser amada e não procura, na adoração que deseja inspirar, senão a confirmação daquela que dedica a si mesma. Sonha que o duque de H., por quem está apaixonada sem nunca lhe ter falado, se prosterna a seus pés: "Serás ofuscado pelo meu esplendor e me amarás... Só és digno de uma mulher como espero ser". É a mesma ambivalência que encontramos em Natacha de Guerra e Paz:


Mamãe tampouco me compreende. Deus meu, como sou espirituosa! Um verdadeiro encanto, essa Natacha! prosseguiu falando a si mesma na terceira pessoa e colocando a exclamação na boca de um personagem masculino que lhe atribuía todas as perfeições de seu sexo. Tem tudo, tudo para ela. É inteligente, gentil e bonita, e hábil. Nada, monta muito bem a cavalo, canta deliciosamente. Sim, pode-se dizer, deliciosamente...  

Tinha voltado naquela manhã àquele amor a si mesma, àquela admiração por sua pessoa, que constituíam seu estado de alma habitual, "Que encanto, essa Natacha! dizia ela; fazendo falar um terceiro personagem coletivo e masculino. É jovem, é bonita, tem uma bela voz, não incomoda ninguém: deixem-na portanto sossegada!"


Katherine Mansfield descreveu também, no personagem de Beryl, um caso em que o narcisismo e o desejo romanesco de um destino de mulher se misturam estreitamente:


Na sala de jantar, à luz piscante do fogo da lareira, Beryl tocava guitarra sentada numa almofada. Tocava para si mesma, cantava a meia voz e observava-se. O brilho das chamas espelhava-se em seu sapato, no ventre rubicundo da guitarra e em seus dedos brancos...  

"Se estivesse lá fora e olhasse para dentro pela janela, espantar-me-ia bastante em me ver assim", pensava. Tocou o acompanhamento em surdina; não cantava mais, escutava.  

"Da primeira vez que te vi, menina, tu te acreditavas muito só! Estavas sentada com teus pezinhos sobre a almofada e tocavas guitarra. Deus meu! Nunca o poderei esquecer..." Beryl ergueu a cabeça e pôs-se a cantar:  

Até a lua está lassa. Mas batiam fortemente à porta. A cara avermelhada da criada surgiu... Não, não suportaria aquela mulher estúpida. Fugiu para o salão escuro e pôs-se a andar de um lado para outro. Oh! estava agitada, agitada. Em cima da lareira havia um espelho. Apoiando-se nos braços contemplou sua pálida imagem. Como era bela! Mas não havia ninguém para percebê-lo, ninguém... Beryl sorriu e realmente seu sorriso era tão adorável que sorriu de riovo.. . (Prelúdio).


continua página 77...

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O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (2)


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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.




"O que é uma mulher?"



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