Fechada na concepção de riqueza, com a inspiração soberana da prosperidade material, a gerência republicana acabou em processos consentâneos da materialidade, e que deram em decomposição moral, sucumbindo até aquela tradição de desinteresse, plantada na política nacional com os Andradas, Feijó, Lino Coutinho... com a intransigente limpeza de mãos, constante até ontem. Limitados ao influxo da mentalidade política portuguesa, os que tentaram fazer a soberania nacional brasileira acharam-se prisioneiros dessa mesma mentalidade, mas o coração era-lhes livre, naturalmente adverso ao influxo de imoralidade em que se caracterizara a gestão da metrópole. E foi assim que tivemos, naqueles primeiros tempos, a torpe improbidade pecuniária do Conde dos Arcos, Barbacena, José Clemente, Ledo, Carneiro, o próprio Pedro I, a contrastar com a rigidez de honestidade trazida ao governo pelos Andradas, e que se impôs ao mesmo Vilela Barbosa, para ser intransigente virtude em Feijó e os companheiros, até constituir-se em indefectível tradição ao longo de todo o segundo Império. Aí, porém, lavrava a corrupção em toda a vida política, afrouxando-se tanto as molas da moralidade que, finalmente, já era efeito imediato da honestidade pessoal do monarca, por dignidade íntima, um tanto calculada, talvez. Era preciso isto, em todo caso, para conservar-se a tradicional limpeza de mão dos homens de governo. E tanto que, retirado esse último freio, a política nacional veio até a integral impureza. Nos primeiros tempos, um Floriano ainda foi a imaculada figura, não suspeitada nem pelos mais encarniçados e odientos adversários. Mas, este mesmo, em atos e gestos bem explícitos, já teve necessidade de atacar e descascar a improbidade de homens públicos, emporcalhados em dinheirices. No alto posto, destacados na posição, nos primeiros tempos da República, a maior parte dos políticos terá sido de limpos, por timidez, cálculo, ou mesmo honestidade essencial. E não tardou, porém, que a vida política decaísse, com o espetáculo de cupidez que vai até a desonestidade qualificada, até a concussão manifesta.
E a gerência republicana se faz como ruptura de todos os diques de moralidade, para a torrente de bandalheiras, maior fecundidade do regime. Nem podia ser de outro modo. Sem chama de ideal, sem qualquer outra concepção de grandeza além da pujança material; na nulidade das exigências morais, incaracterizados para as formas de dignidade pessoal, com a identidade de apetites; quando os antagonismos são raros grunhidos em ameaça ao que comeu demais, os profissionais da governança oligárquica tinham que chegar a isto, que já é a confessada corrupção de todos os processos em uso, franco desbarato de reputações. Em verdade, a política atual ostenta-se num repugnante repasto de suínos: a lavagem-ração, que focinhos vorazes revolvem à cata do mais sólido e mais volumoso, para os molares a que nada resiste e que de nada refugam. Sobe o fartum, tresanda o azedume, e as mandíbulas mais trituram, para a insaciável deglutição. Contemplem-se as chamadas campanhas políticas: disputas enfezadas, fúria de vilipêndio, no galgar o poder, para onde avançam faces escancaradas, ou o olhar lampejante, de quem antevê a comezaina. Ambição de gozo rasteiro, cegueira na paixão de poderio, levam-lhe as almas nesses mesmos instantes que parecem de desprendida luta. E marcham sem embaraços de escrúpulos, indiferentes ao asco, sem hesitações de lealdade, através de todos os contatos... No mais, no normal da carreira, passam ao influxo da máxima universalmente aceita: Não firas, não te atormentes, não lutes, não propugnes!... Busca o que comer... Vê onde há o que tirar, tira!... Só há uma inferioridade – a mesquinhez de meios... Então, a grande e essencial ambição cabe num caderno de cheques, e a dignidade maior leva-se numa limousine. O clássico adoequatio rei et intelectus traduziu-se como aproveitar e encher, porque dissolvida a política no dinheiro, desnudada a miséria mental, já não há vileza que os acabrunhe: qualquer que seja a crosta imunda a romper, levam-lhe as mãos, e trazem o bocado. Orgulho de si mesmo, um dos donos, fala da causa como política sem rancores e sem prevenções, numa pátria destinada a realizar o sonho da fraternidade humana... Também a bacorinhada no cocho é de irmãos... e, empanzinada, sonha, o seu sonho de fartura...
De transigências e conluios, os políticos republicanos passaram naturalmente a traficâncias, preço do prestígio falso em que se elevam como chefes rapaces, de um oligarquismo cruamente parasitário. Na contemplação da vida pública, pensa-se numa ceva de salteadores covardes, ladrões que se aproveitassem de um desastre para instância das suas façanhas. Quando se irritam da desigualdade na partilha, é o espetáculo das retaliações entre quadrilheiros desleais na própria quadrilha. Sim: numa política de despudorado assalto às posições, os mais ousados se confundem, a cada passo, com os assaltantes apanhados pela polícia. A própria carreira de politicagem se faz em estágios bem-definidos: garantir o estômago a coberto de esforços, acima da incapacidade pessoal; dar emprego aos da família, igualmente incapazes; fazer negociata em arredondadas quantias; alcançar o poder incontrastável, superior a tudo, até a moral. E o povo já não pode separar, em cada um deles, no conjunto da vida, o que é crapulismo político da conduta pessoal. A nação sente-se vencida nas suas resistências orgânicas, depauperada nessa desenvolvida rapacidade, cuja realidade lhe é oferecida ao liquidarem-se os quadriênios, em exposições financeiras que são traslados de falências morais. Estas páginas se multiplicariam em volumes, se fora para transcrever quanto provadamente tem sido referido de desonestas negociatas, cujo líquido vai, em uma boa parte, para o bolso dos grandes prestígios políticos. Já ninguém se espanta do faminto da véspera, hoje montado na fortuna, graças a qualquer parentesco de acaso, numa qualquer das touceiras oligárquicas. Pobretões de ontem, ou de anteontem, ei-los, quase todos, em ostensiva abastança, quando não preclara riqueza. Aquela orgulhosa pobreza, que uma tradição extinta ligava ao nome de republicano – Feijó... Floriano; tal seria descrédito nesta República de afortunados e de endinheirados. A origem das súbitas abastanças, ninguém a pede. Quando se admitia a geração espontânea, era nas infusões podres que ela se dava: quem negará que a política republicana está em grau de geração espontânea?... O Brasil é uma terra de paz, e o povo está convencido de que, quaisquer outros que venham será para pior ainda; então, tapa as narinas, e deixa para aí a decomposição. Os oligarcas de acaso fazem do mando prestígio: empoleirados, pregam os filhos nos altos bons lugares, fomentam os bons negócios para os genros, e não esquecem os mais parentes. É a solidariedade de sangue, essencial, primitiva... Quando os ratos tiverem uma política será certamente, assim, nesse padrão.
Os nomes e o concreto dos fatos nada mais provariam, quando a generalidade da ignomínia já é convicção na consciência de todos. E se o intuito aqui é o de achar remédio para a miséria, mais vale evitar o escândalo da menção literal, em particularizações que seriam, nesta queda de tônus moral, para mais desmoralização. Todavia, se um caso pode ser expressão bastante da conjunta degradação, é dever citá-lo, sobretudo porque ele tem a significação de um símbolo; foi a negociata a que a voz oficial chamou de o maior escândalo do mundo. Pois bem, os negociadores desse maior escândalo do mundo eram da judicatura, e fizeram o seu ninho no seio da suprema corte de justiça da República. Todos sabemos que há ali juízes pessoalmente impecáveis; é possível, mesmo, que nenhum dos juízes-ministros tenha sentido o contato da dinheirama da nação, roubado daquele canal: nem por isso é menos simbólico – aquele recinto convertido em caverna. E a probidade individual do juiz perde significação nessa preamar, que, afogando todos os escrúpulos, fez de um serviço do Tribunal o pretexto de escândalo arranjado às escancaras, sem que ninguém, dos que faziam o prestígio do mesmo Tribunal, contra o escândalo protestasse. Houve que vedar o escândalo anulado, de fato, pela desproporção do saque, que já não podia passar no orçamento. O Estado fez confiscar o que tinha sido fraudado – dezenas de milhares de contos, a título de publicação de atos do Tribunal... E ficou nisso, livres os negociadores, com o que ainda lhes ficou pelos dedos, de acionarem o Estado, para reaver o confisco...
O ostensivo e livre desfrutar da economia da nação, essa política converteu o Estado em multiplicada manjedoura, onde todo provento é forragem, para a ração que desafia o asco, e cuja contemplação trava o pensamento, com a emoção, que é dó, revolta, ódio, lancinante compaixão, desespero... No reflexo desta miséria sobre a vida ambiente, criaram-se as gírias correntes – pirata, cavação, bancar, comer, transação... para dizer tudo em que a vida comum repete a política geral, percebida numa criadagem infiel, a espiar, delatar, trair, roubar... no espetáculo de uma trama viva, de larvas entre bolores.
Como implícita justificação, os nossos politiqueiros fazem correr a fama da desmoralização dos homens políticos, todos a explorarem o poder em proveito próprio... Só a inteira ignorância, refinada em má-fé, poderia sustentar que os homens de governo, nas verdadeiras democracias – Inglaterra, França, Estados Unidos... sejam criaturas que consentissem sujar a reputação em negócios escusos. Não que a alma do político profissional não seja a mesma – vendida ao sucesso; mas, por toda parte onde há opinião pública, necessária sanção do sucesso, os políticos definidores, os homens de governo, são rigorosamente limpos de mãos. Quando haviam suspeitado de Lloyd George, o temível político a desafiar adversários pôde francamente patentear a lisura da sua conduta em negócios de dinheiro; Caillaux, na insofismável situação de quem, em plena guerra, é suspeito de conivência com o inimigo, a tratar com adversários temíveis e implacáveis, se não pôde livrar-se da condenação, acintosamente acusado de enriquecimento, demonstrou irrecusavelmente, aos mesmos inimigos, a pureza dos seus haveres, apenas herdados. Ali mesmo, o tenaz perseguidor de Caillaux, Clemenceau, nunca poupado, mais de uma vez apontado como amigo dos ingleses, meio século de culminante prestígio político, chefe de governo, ou oposição, a tombar ministérios; é o intelectual que tem de escrevinhar em jornais para fazer recursos de vida e habitar o modestíssimo rés do chão da Rua Franklin, cuja melhor ornamentação são as belíssimas fotografias da Acrópole, que lhe circundam a sala de trabalho. Nos Estados Unidos, o país dos dólares vencedores, onde negócio é soberano, a minar todos os veios, a política governamental tem tratado sempre de ser inacessível ao poder da corrupção. Pouco importa um Melon, ou um Hughes, arquimilionários chamados à confiança do chefe da nação: aí, governo, eles isolam-se completamente da burra onde capitalizam para a honra superior de gerir os negócios do Estado. E, tanto, que um puro homem de ciência, puro em tudo, puro principalmente na política, Wiliam James, num livro de pura ciência, a dar um exemplo de processos psíquicos, o sentimento de honra, deixa a fórmula, ali invariável: “Um juiz, um homem de Estado devem à honra da sua toga não misturar-se a negócios de dinheiro, perfeitamente compatíveis com a honra dos simples particulares”.[1] Sim: há uma consciência pública, e, na formidável disputa democrática das posições, ai daquele que desliza!... O adversário o precipita sem contemplações... Agora mesmo, com o banco dos réus para o ministro que consentiu no assalto às reservas do petróleo...
[1] Psycikigy, I, cap. XII.
Neste particular, apodrecemos totalmente, quando nos Estados realmente democráticos ainda subsiste um cerne inacessível à corrupção. É destino do Brasil, em vista da péssima qualidade dos dirigentes, haver, da civilização, os males e vícios em que ela degenera, antes de aproveitar as vantagens e benefícios que nela se encontram. Apodrecemos, antes de feitos. Quando Roma começa a corromper-se, Momsen, sem hesitação, define-lhe a causa: “... Por sobre, tudo, a essencial imoralidade, inerente a um regime de puro capital, devorava o coração da sociedade e da República, e substituía os sentimentos de humanidade e patriotismo por um absoluto egoísmo”.[2] Aqui, se as riquezas ainda são vasqueiras, a respectiva corrupção já vai alastrada e profunda. É certo que ainda não há uma potente concentração de capitais brasileiros, mas já nos alcançaram, agravadas em abandono, as mazelas e penas que formam a atmosfera do capitalismo. Somos um dos países de escolha do capital cosmopolita, o mais implacável, aqui desinteressado de tudo que não seja a crua espoliação, no caso, mais privilegiado que o capital nacional de qualquer dos pujantes e infelizes povos ricos. Convencidos de uma só superioridade, a riqueza e grandeza material, ansiosos de fartas receitas, que formam o seu uso-fruto, os nossos dirigentes fazem todas as facilidades ao capital estrangeiro, que seja francamente o senhor, contanto que venha, e não tenha cerimônias, nem hesite na espoliação e no domínio, ainda que, finalmente, venha a constituir-se dreno de toda a economia nacional, um Estado no Estado, em incontrastável tirania.
[2] Op. cit., III, 337.
E aí estão as arquipotentes, como arquissugadoras, empresas estrangeiras, a que foram deixados os mais importantes e rentosos serviços públicos municipais dos principais centros urbanos do país, inclusive as grandes capitais – Rio-São Paulo. De fato, Bond and chair, Light and Power, são senhoras incontrastáveis da parte mais povoada, mais rica do Brasil. A receita das duas é mais forte que a do Estado – União. Força, luz, transportes, gás, águas... tudo está nas suas gavetas. É bem de ver que tal desenfreio de exploração não seria possível se as poderosas empresas não conhecessem os meios próprios a obter que os nossos dirigentes não lhes contivessem a ganância, e se os não empregassem bem a propósito. Quem poderá dizer quantos aparentados de políticos prestigiosos são nominalmente empregados da Light?... e da Bond and Chair... O já citado universitário americano, Coolidge, falando do ponto de vista americano, houve de consignar, todavia, que no Porto Rico, já a legislação teve de intervir para proteger a população contra a exploração das empresas congêneres, que por lá funcionam. Aqui, essas empresas ganharam até a imprensa, com voz, apenas, para cantar a perfeição dos serviços em que os cariocas são sugados pelas multiplicadas hirudíneas. Desse coro participa a própria imprensa independente.
Sim: à medida que a política republicana mergulhava na ignomínia, surgia uma imprensa independente, vingadora do brio nacional. E foi de ver como o brio vingador aproveitava das misérias vingadas. O escândalo como programa-chamariz veio a ser a nudez de ignomínias em que tudo se desmoralizou. Vendido A., ladrão B., concussionário F... e F., B., A., mesmo quando não fossem bem exatas as acusações, já definitivamente vilipendiados, emudeciam, na inutilidade de qualquer defesa, ou alegavam calúnia. Para o público, já afrontado com os atos menos lisos, a deslavada campanha de impropérios era a mesma escola de desmoralização. O tom exclusivamente pessoal das críticas; a ausência de qualquer critério – moral, político, ou social, nas odientas acusações; a sensível nota de despeito, inveja, maldade; a inclemência dos ataques no viso patente do escândalo interesseiro; tudo tornava absolutamente suspeita a mesma imprensa, absolutamente ineficaz para curar a política periclitante, e que, também, já era escândalo. E, assim, como decaía a política, avolumava a tiragem da imprensa que, em escândalo, explorava os escândalos dos dirigentes. Se a política se tornava um balcão, a imprensa vingadora estendia-lhe em face o balcão do anúncio, tão ufano sobre ela como a corrupção governamental sobre a outra imprensa. E, agora, se cotejamos – jornal submetido ao balcão do anúncio e jornal submisso, a mando do governo, só se destaca, para pior o que tanto depende do governo como aceita a brida do anúncio. Então, entre balcão e interesses governamentais, como haver campanhas realmente purificantes, em vista da simples justiça, que não subvenciona, nem anuncia?...________________
"Manoel Bomfim morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."
Bomfim, Manoel, 1868-1932
O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).
http://www.fundar.org.br/bbb/index.php/project/o-brasil-nacao-vol-ii-manoel-bonfim/
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