segunda-feira, 18 de julho de 2022

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (36)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1



1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada




Memórias de duas jovens esposas




PRIMEIRA PARTE



XXXVIII – A VISCONDESSA DE L’ESTORADE À BARONESA DE MACUMER


Setembro


Querida, há para ti em Chantepleurs uma resposta bastante extensa à carta que me escreveste de Marselha. Essa viagem que realizais, como amantes, está tão longe de diminuir os temores que nela eu te exprimia que te peço para escrever para Nivernais, a fim de que te mandem a carta.

O ministério, dizem, resolveu dissolver as Câmaras. Se é uma desgraça para a Coroa, que devia empregar a última sessão dessa legislatura para fazer decretar as leis necessárias à consolidação do poder, também o é para nós: Luís só terá quarenta anos em fins de 1827. Felizmente, o meu pai, que consente em se fazer eleger deputado, pedirá demissão no momento oportuno.

Teu afilhado deu os primeiros passos sem a sua madrinha; ele, aliás, está admirável e começa a fazer-me desses pequenos gestos graciosos que mostram não ser ele mais unicamente um órgão que mama, uma vida brutal, e sim uma alma: seus sorrisos estão cheios de pensamentos. Fui tão favorecida no meu ofício de ama de leite que vou desmamar Armando em dezembro. Um ano de amamentação basta. As crianças que mamam demasiado tempo tornam-se tolas. Sou pelos adágios populares. Deves estar tendo um êxito louco na Itália, minha linda loura. Mil carinhos.






XXXIX – A BARONESA DE MACUMER À VISCONDESSA DE L’ESTORADE


        Roma, dezembro



Recebi tua infame carta que, a meu pedido, meu intendente me mandou de Chantepleurs. Oh! Renata... Mas poupo-te tudo o que a minha indignação poderia sugerir-me. Vou apenas contar-te os efeitos produzidos pela tua carta. De volta da encantadora festa que nos ofereceu o embaixador e onde brilhei com todo o meu esplendor, de onde Macumer voltou tão inebriado de mim que não poderia descrever, li a tua horrível resposta, e li-a para ele, chorando, correndo embora o risco de parecer-lhe feia. O meu querido abencerragem caiu-me aos pés chamando-me de tonta; levou-me à sacada do palácio onde estamos e de onde vemos parte de Roma: aí, sua linguagem foi digna da cena que se oferecia aos nossos olhos, pois havia um soberbo luar. Como já sabemos o italiano, seu amor expressado nessa língua tão flexível e favorável para a paixão se me afigurou sublime. Disse-me que embora fosses profetisa, ele preferia uma noite feliz, ou uma de nossas deliciosas manhãs, a uma vida inteira. Nesse sentido, ele já vivera mil anos. Ele queria que eu continuasse a ser sua amante e não ambicionava outro título que o de meu amante. Sente-se tão orgulhoso e feliz por se ver todos os dias o preferido que, se Deus lhe aparecesse e lhe concedesse optar entre viver ainda trinta anos segundo tua doutrina e ter cinco filhos, ou não ter mais do que cinco anos de vida dentro dos nossos queridos amores em flor, a sua escolha estaria feita: preferiria ser amado como eu o amo e morrer. Esses protestos murmurados ao meu ouvido, minha cabeça apoiada ao seu ombro, seu braço cingindo-me a cintura, foram perturbados, naquele momento, pelos gritos de um morcego que algum mocho surpreendera. Esse clamor de morte causou-me tão cruel impressão que Felipe me levou meio desmaiada para a cama. Mas tranquiliza-te! Embora esse horóscopo tenha repercutido em minha alma, hoje de manhã já vou bem. Ao levantar-me, pus-me de joelhos diante de Felipe e, com os olhos nos seus, com as suas mãos presas nas minhas, disse-lhe:

— Meu anjo, sou uma criança, e Renata bem pode ter razão: é, talvez, unicamente o amor que eu ame em ti; sabe pelo menos que não há outro sentimento em meu coração e que te amo, então, a meu modo. Enfim, se nas minhas maneiras, nas menores coisas da minha vida e de minha alma, houvesse algo que fosse contrário ao que querias ou esperavas de mim, dize-mo francamente! Quero saber! Terei prazer em ouvir-te e em não me orientar senão pela luz de teus olhos. Renata me apavora, ela me quer tanto! 

Macumer não teve voz para responder-me, rompia em prantos. Agora te agradeço, minha Renata; eu não sabia quanto era amada pelo meu belo, meu régio Macumer. Roma é a cidade onde se ama. Quando se tem uma paixão, é aqui que se deve vir para gozá-la: tem-se a arte e Deus como cúmplices. Em Veneza encontraremos o duque e a duquesa de Sória. Se me escreveres, escreve para Paris, pois deixaremos Roma daqui a três dias. A festa do embaixador era uma despedida.


p.s. — Querida imbecil, a tua carta bem mostra que só conheces o amor teoricamente. Fica, pois, sabendo que o amor é um princípio, cujos efeitos são todos tão dessemelhantes, que nenhuma teoria os poderia abarcar nem reger. Isto é para o meu doutorzinho de saias.



continua pág 329...

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[1] Esse magnífico caminho da Corniche: chama-se assim o caminho que, ao longo do Mediterrâneo, vai de Nice a Gênova.

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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