terça-feira, 5 de julho de 2022

Poemança Africana: António Nunes (Cabo Verde)

Poemança Africana - 37


língua portuguesa


o poeta do quotidiano



o “Poema de amanhã", é uma esperança-certeza, uma antevisão dum futuro melhor – a independência de Cabo Verde


Mamãi!
sonho que, um dia,
em vez dos campos sem nada,
do êxodo das gentes nos anos de estiagem
deixando terras, deixando enxadas, deixando tudo,
das casas de pedra solta fumegando do alto,
dos meninos espantalhos atirando fundas,
das lágrimas vertidas por aqueles que partem
e dos sonhos, aflorando, quando um barco passa,
dos gritos e maldições, dos ódios e vinganças,
dos braços musculados que se quedam inertes,
dos que estendem as mãos,
dos que olham sem esperança o dia que há-de vir

– Mamãi!
sonho que, um dia,
estas leiras de terra que se estendem,
quer sejam Mato Engenho, Dacabalaio ou Santana,
filhas do nosso esforço, frutos do nosso suor,
serão nossas.

E, então,
o barulho das máquinas cortando,
águas correndo por levadas enormes,
plantas a apontar,
trapiches pilando
cheiro de melaço estonteando, quente,
revigorando os sonhos e remoçando as ânsias
novas seivas brotarão da terra dura e seca,
vivificando os sonhos, vivificando as ânsias, vivificando a Vida!...





Ritmo de pilão

Bate, pilão, bate,
que o teu som é o mesmo
desde o tempo dos navios negreiros,
de morgados,
das casas-grandes,
e meninos ouvindo a negra escrava
contando histórias de florestas, de bichos, de encanta-
[das...

Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
e a casa-grande perdeu-se,
o branco deu aos negros cartas de alforria
mas eles ficaram presos a terra por raízes de suor...

Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
desde o tempo antigo
dos navios negreiros...

(Ai os sonhos perdidos lá longe!
Ai o grito saído do fundo de nos todos
ecoando nos vales e nos montes,
transpondo tudo...
Grito que nos ficou de traços de chicote,
da luta dia a dia,
e que em canções se reflecte, tristes...)

Bate, pilão, bate

que o teu som é o mesmo
e em nosso músculo está
nossa vida de hoje
feita de revoltas!

Bate, pilão, bate!...





Poema de longe

Acendo um cigarro
e ponho-me a olhar
as casas que se elevam pela encosta…

Longe,

o Sol morre numa lagoa de sangue…

Entristeço-me.

Meus sonhos tornaram-se em nada,
minhas ambições nunca passaram de planos,
meus enlevos de amor nunca passaram de ânsias.





Terra

Nha Chica, conte-me
aquela história
de meus irmãos
hoje perdidos
no mundo grande…

Nha Chica, eu sei:
anos de seca,
gentes morrendo,
casas sem telhas,
de porta em porta
olhos crescendo
barriga inchando,
um dia tombam
de olhos vidrados
por qualquer canto…

Lisboa, América,
Dakar ou Rio:
— dentro de nós
surge esta ideia
partir! partir!

Resignados,
os que ficaram
ficam esperando
que as nuvens toldem
que a chuva caia
que o chão fecunde
cobrindo os montes
cobrindo as várzeas…

Ah, anos fartos!
Milho, feijão,
pilão cohindo,
fumo no ar,
riso nos lábios,
grog, cigarros,
batuques, bailes
e casamentos…

Olho estes campos,
olho estes mares,
e sinto a Vida
prendida à terra,
feita de sonhos
que um dia esvaem-se
— mas surgem sempre…






Literatura Cabo-verdiana







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António Nunes nasceu na cidade da Praia, capital da ilha de Santiago, Cabo Verde, a 9.12.1917 (e faleceu em Lisboa, a 14.5.1951, vítima de uma menigo-encefalite). Fixou-se em Lisboa, por volta de 1940, e nesta cidade conviveu assiduamente com o grupo neo-realista de que fazia parte o seu patrício Teixeira de Sousa, Manuel da Fonseca e Francisco José Tenreiro.
A sua estreia literária faz-se, em Cabo Verde, primeiro na imprensa, depois com o livro de poemas Devaneios, publicado em 1939, ao sabor ainda da estética anterior à Claridade. É aqui, em Lisboa, ao contacto com a nova geração neo-realista, que António Nunes se liberta dos cânones poéticos anteriores e envereda pela construção de um discurso poético social e autenticamente caboverdiano.
Estava-se no fim da Segunda Guerra Mundial e vivia-se em Cabo Verde a grande crise que viria a dar origem às fomes de 1943 e de 1947. De Lisboa, António Nunes integra a geração da Certeza, com o “Poema de Amanhã”, publicado no número 2 da folha dessa academia (Junho de 1944), considerado por Manuel Ferreira (1975) como “o ideário colectivo do grupo”.
Na sua fase ainda romântica António Nunes publicou o livro de poemas Devaneios (1938), que seriam, de facto, meros devaneios ou exercícios poéticos. Na fase posterior, de orientação neo-realista, publicou Poemas de Longe (1945).
Pedro da Silveira, poeta açoriano e estudioso da literatura cabo-verdiana, coadjuvado por Francisco José Tenreiro, pensou ainda em reunir todos os poemas de António Nunes da fase modernista. Poemas seria o título do livro e teria a seguinte organização: “iniciação”, com os poemas correspondentes a 1940-1942; “Poemas de Longe”, os aparecidos em caderno impresso sob esta designação; “Versos de Lisboa”, três poemas alheios à cabo-verdianidade; e “Outros Poemas”, contemporâneos ou posteriores ao Poemas de Longe. Contudo, por razões várias, o projecto não se concretizou.


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